Por: André | 19 Julho 2016
“Minha especulação sobre isto, e é mera especulação, é que comparado com o ataque ao aeroporto de Istambul ou os ataques de Bruxelas ou de Paris, onde havia grupos maiores de indivíduos que estavam altamente motivados, bem equipados, com bons recursos e bem planejados, o ataque que vimos em Nice na quinta-feira foi executado por um indivíduo provavelmente desencantado que estava mais inspirado do que os outros diretamente instruídos através de uma cadeia de comandos”.
A reflexão é de John Lichfield e Harry Cockburn, em artigo publicado por Página/12, 16-07-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Novamente a França tinha começado a respirar normalmente.
A Copa da UEFA de 2016 passou sem um ataque terrorista. O presidente François Hollande tinha anunciado que o estado de emergência, declarado depois dos ataques de 13 de novembro, terminaria neste mês. As férias de verão estavam começando. A economia começava a dar sinais de vida.
E agora acontece isso. O ataque de caminhão sobre a multidão que assistia aos fogos de artifício pelo aniversário da Revolução Francesa na esplanada de Nice tem todos os ingredientes de um plano diabólico planejado pelo Estado Islâmico.
O ataque aconteceu no dia em que os franceses e os ocidentais celebravam os valores da democracia e da fraternidade. Apontou para as famílias, incluindo crianças e bebês, em um momento de alegria e descontração. Apontou para uma cidade que simboliza a França como o destino turístico mais popular do mundo e um modelo da alegria de viver.
Há algo dupla e triplamente perturbador no uso de um banal caminhão baú de 20 toneladas para provocar 84 mortes brutais, cruéis e sem sentido. Os serviços de segurança podem munir-se com armas de fogo e explosivos para vigiar e controlar. Mas, como se pode deter um caminhão jogado contra uma multidão? Pode ser que o autor do atentado da quinta-feira tenha sido um “lobo solitário” não controlado diretamente pelo Estado Islâmico. Isso também seria dupla e triplamente perturbador.
Talvez o Estado Islâmico não consiga movimentar todos os peões, mas sua estratégia e propaganda imploraram aos simpatizantes para que encontrem seus próprios métodos e oportunidades para matar os “sujos franceses e estadunidenses” e outros “malfeitores”.
Até agora, nenhum grupo extremista assumiu o ataque, mas a agência de notícias do Estado Islâmico, Amaq, disse aos partidários que “esperaram a confirmação de quem estava por trás do massacre”. Mohamed Lahouaiej Bouhlel, de 31 anos, morador de Nice com dupla nacionalidade francesa-tunisiana, foi identificado como o homem que realizou o ataque. Era conhecido pela polícia francesa por crimes menores, incluindo roubo e violência, mas não tinha sido vinculado a nenhuma atividade terrorista e não estava na lista de suspeitos dos serviços de inteligência.
O aumento dos chamados “lobos solitários” é uma ameaça crescente para os serviços de inteligência, e que o Estado Islâmico capitalizou, disse Will Geddes, especialista em segurança. Falando para a BBC Radio 5 Life, Geddes disse: “Tudo faz parte de um meio muito inteligente e insidioso de recrutamento que os extremistas islâmicos estão usando atualmente. Eles mantêm as redes daqueles que sabem planejar um ataque limitado e estão recorrendo aos desencantados e inclusive àqueles com doenças mentais. Essa comunidade é muito mais suscetível a este recrutamento remoto”.
“Na situação anterior os indivíduos iam a um campo de treinamento no Afeganistão, no Paquistão ou no Iraque. Estas mudanças são o que eu chamo de lobos solitários, que foram recrutados remotamente e, portanto, fazem com que sejam incrivelmente difíceis de ser detectados pelas agências de inteligência”.
Minha especulação sobre isto, e é mera especulação, é que comparado com o ataque ao aeroporto de Istambul ou os ataques de Bruxelas ou de Paris, onde havia grupos maiores de indivíduos que estavam altamente motivados, bem equipados, com bons recursos e bem planejados, o ataque que vimos em Nice na quinta-feira foi executado por um indivíduo provavelmente desencantado que estava mais inspirado do que os outros diretamente instruídos através de uma cadeia de comandos.
Os ataques de 13 de novembro em Paris foram, em um sentido, enganosos. Necessitavam de considerável logística e planejamento. A verdadeira guerra que o Ocidente enfrenta agora – não apenas na França – foi abertamente presumida pelos líderes do Estado Islâmico. Trata-se de ataques aleatórios e planejados exclusivamente por indivíduos, sobre uma Europa que se apresenta como o “ventre leve” do Ocidente, exclusivamente guiados pelo Evangelho jihadista do ódio e da vingança.
O objetivo também foi claramente estabelecido: provocar uma reação branda contra as populações muçulmanas da Europa, a começar pelos 4,7 milhões de muçulmanos na França. Isto, por sua vez, acredita o Estado Islâmico, recrutará mais jovens muçulmanos para a sua causa.
Depois dos ataques de Charlie Hebdo em fevereiro do ano passado, do Bataclan de Paris e outros ataques em novembro e os ataques de Bruxelas em março, esta estratégia fracassou. Foi graças à grande maioria de cidadãos franceses e belgas comuns que não houve reação violenta antimuçulmana. Foi graças às grandes maiorias das populações muçulmanas na Europa que rechaçaram a retorcida lógica do Estado Islâmico.
Mas, quanto tempo podemos esperar que dure tanta tolerância e sentido comum? A escolha de Nice como alvo, calculada ou não pelo Estado Islâmico, é potencialmente explosiva.
Paris e Bruxelas são cosmopolitas, de tendência esquerdista, de pensamento amplo. Nice é de longe a mais direitista das cidades da França, um bastião da mais dura versão da centro-direita de Nicolas Sarkozy e também da extrema direita da Frente Nacional.
Grande parte da sua população branca descende dos colonos franceses pied noir, que foram obrigados a deixar a Argélia no começo dos anos 1960. Nice também tem uma grande população muçulmana. Vive dentro das fronteiras da cidade, não encerrada nos banlieu (subúrbios) ou nos subúrbios multirraciais pobres como em Paris ou Lyon.
Se alguém quisesse acender a mecha de uma guerra racial na França, Nice seria uma escolha inteligente.
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A verdadeira guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU