Por: André | 01 Julho 2016
Em 1996, ele escapou por um milagre do sequestro de seus irmãos pelo Grupo Islâmico Armado. Morando, atualmente, no Marrocos, Jean-Pierre Schumacher aceitou conversar com Jeune Afrique em um diálogo ao mesmo tempo comovente e enternecedor de esperança.
Fonte: http://bit.ly/29coFxM |
A reportagem é de Nadia Lamlili e publicada por Jeune Afrique, 28-06-2016. A tradução é de André Langer.
Cantos gregorianos de incrível pureza elevam-se do Mosteiro de Nossa Senhora de Atlas. Na capela, seis monges trapistas terminam suas vésperas antes de fazer a última refeição do dia e debruçar-se sobre os estudos da noite. Logo mais, esta ilha católica cercada pelas montanhas mergulhará no silêncio da noite.
Parece que estamos em Tibhirine, na Argélia, em uma das cenas do filme Homens e Deuses, que conta a história dos sete monges assassinados pelo Grupo Islâmico Armado, em 1996. Mas, na verdade, estamos em Midelt, no Marrocos, uma cidade situada a 1.500 metros no coração do Médio Atlas e que abriga, desde 2000, o último sobrevivente da carnificina. O irmão Jean-Pierre Schumacher, 92 anos, o porteiro noturno do Mosteiro de Tibhirine no momento do drama, nos acolhe com um sorriso radiante. Mas ele hesita em contar o que ele viveu na noite em que os religiosos foram sequestrados.
“Ser conhecido me incomoda um pouco. Um monge deve ser discreto”, desliza em uma voz quase inaudível. No entanto, ele já contou sua experiência em dois livros, L’Esprit de Tibhirine [O Espírito de Tibhirine], de Nicolas Ballet (Seuil, 2012), e Le Dernier Moine de Tibhirine [O último monge de Tibhirine], de Freddy Derwahl (Albin Michel, 2012), e deu entrevistas a alguns jornais cristãos. Mas ele acaba aceitando dar um testemunho.
O violento sequestro
Tudo começou no dia 24 de dezembro de 1993, quando os monges receberam a visita de homens vestidos com trajes militares que reivindicaram ser do Grupo Islâmico Armado. Seu emir, um certo Sayah Attia, veio encontrar o médico, o irmão Luc, para tratar dos jihadistas nas montanhas de Medea. Mas, o Pe. Christian, o prior e responsável pelo mosteiro, assegurou-lhes habilmente que o médico é asmático e que não suportava o deslocamento até as montanhas. A partir desta noite, os monges sabiam que os terroristas poderiam voltar.
Mas eles decidiram permanecer “para servir a Deus”. Por ordem do exército argelino, no entanto, eles começaram a fechar as portas mais cedo todas as noites. “Em 1996, no dia 27 de março, eu estava no meu quarto ao lado do portão que eu fechei com um grande ferrolho, como fazia todas as noites. A 1h da madrugada, eu fui acordado por barulhos vindos de fora. Eu pensei: pronto, eles chegaram!”, recorda-se o sobrevivente.
O monge pensou que eles vinham apenas para ver o médico e pedir medicamentos. No banheiro, ele reconheceu a voz do Pe. Christian, que perguntava atrás do portão: “Quem é o chefe?” Alguém respondeu: “Sou eu o chefe; você deve obedecer!” “Nesse momento eu percebi que era preciso desconfiar, porque não se fala, de modo geral, com esse tom de voz com um monge”. Mais tarde ele ficará sabendo que os terroristas fizeram o guarda do mosteiro refém, ele que se alojava ao lado da estrada, e que eles o tinham ordenado abrir todas as portas. Um dos terroristas lhe perguntou: “Eles são sete?”, e ele respondeu: “É como dizes”.
Foi graças à resposta do guarda que o irmão Schumacher, assim como o Pe. Amédée – que morava no térreo e que tinha tomado a precaução de trancar sua porta –, puderam escapar do sequestro.
Estranhamente, os terroristas não sabiam que os monges estavam em nove. Eles foram, pois, diretamente no médico, que sempre dormia com a porta aberta por causa da asma, e em seguida no prior, assim como nos cinco monges que estavam no andar de cima. Os quartos onde ficavam os convidados do mosteiro e um grupo de religiosas não foram vistoriados. Quanto ao guarda, Mohamed, ele conseguiu fugir no momento em que queriam matá-lo.
“Ele me disse, quando saiu do seu esconderijo na manhã seguinte, que ele tinha ouvido um deles dizer ao outro: ‘Vai buscar uma corda, vou mostrar a este guarda o que é o Grupo Islâmico Armado’”, lembra-se o sobrevivente. Alguns instantes mais tarde, o barulho cessou. Jean-Pierre Schumacher pensou que eles tinham ido embora. De repente, alguém bateu à sua porta. “Eu pensei que fosse um deles. Mas era o Pe. Amédée e um dos convidados do mosteiro, o Pe. Thierry Becker, que vieram me dizer que os nossos irmãos tinham desaparecido”.
Uma missa com os paramentos vermelhos, sinal dos mártires
Qualquer comunicação com as autoridades era impossível, pois os fios do telefone tinham sido cortados. Por causa do toque de recolher imposto pelo Exército, o irmão Jean-Pierre e o padre Amédée tiveram que esperar até às 5h para ir até a caserna militar da cidade para registrar um boletim de ocorrência.
Dois dias se passaram. Sem notícias dos monges, os dois decidem ir a Argel, na sede da diocese, onde se encontravam outras comunidades cristãs em perigo. “Nós levamos de Tibhirine uma panela com 30 litros de sopa de feijão que o irmão Luc tinha preparado para nós antes de ser sequestrado. Naquela noite, nós convidamos todo o mundo para comer e dissemos: ‘A janta foi preparada pelo irmão Luc”.
No final de abril, o irmão Schumacher decide ir a Fez, no Marrocos, onde se encontra a comunidade religiosa dos trapistas cistercienses. O padre Amédée, por sua vez, foi obrigado a permanecer na Argélia para a administrar o mosteiro à distância, por medo de que fosse invadido. Do dia 21 de maio, o Grupo Islâmico Armado anuncia o assassinato dos monges sequestrados.
“Eu estava rezando no nosso mosteiro de Fez, conta o padre Schumacher, quando um irmão entrou e a plenos pulmões pôs-se a gritar: ‘Os padres foram mortos’. ‘Não é preciso ficar triste, respondi-lhe. O que estamos para viver é alguma coisa muito grave e ao mesmo tempo muito bonita. Se devemos celebrar uma missa para eles, não será nem com a cor preta ou roxa, cores do luto, mas o vermelho, sinal dos mártires’”.
O funeral dos monges aconteceu no dia 02 de junho em Argel. Naquele dia, o irmão Jean-Pierre Schumacher descobre que somente as cabeças foram encontradas e que não havia nenhum vestígio dos corpos. Após a cerimônia, os caixões foram transportados pelo Exército para o mosteiro de Tibhirine, onde foram enterrados. Mas foi somente em março passado que a Argélia aceitou fornecer amostras à Justiça francesa, que abriu uma investigação para apurar os fatos em 2003.
Em 2000, após passar quatro anos em Fez, o irmão Schumacher parte para Midelt junto com outros monges trapistas para um pequeno mosteiro confiado a eles pelas freiras franciscanas, que moraram nele durante 30 anos. Seu objetivo é perpetuar o espírito de Thibirine nesta região montanhosa. Midelt oferece aos monges um ambiente ideal para o exercício do seu culto no meio de uma população berbere inteiramente muçulmana. Dos monges de Tibhirine, está vivo ainda apenas o irmão Jean-Pierre Schumacher, uma vez que o Pe. Amédée morreu em 2008.
Neste mosteiro marroquino cercado por muros, ele construiu sem nostalgia – porque os monges se recusam a cultivar a triste lembrança do passado – um memorial, com as imagens dos seus sete irmãos assassinados.
Em uma estante é possível ler o testamento do Pe. Christian, o prior, escrito em 1993, do qual extraímos o seguinte trecho: “Eu sei do desprezo que pesa sobre os argelinos de modo geral. Conheço também as caricaturas do Islã promovidas por alguns muçulmanos. É muito fácil tranquilizar a consciência identificando essa forma religiosa com os integrismos de seus extremistas. A Argélia e o Islã são, para mim, outra coisa: são um corpo e uma alma”.
É também em respeito ao islã e aos muçulmanos que o último monge de Tibhirine nunca pensou em voltar para a França, apesar de tudo o que viveu. “Eu gostei dos anos que passei em Tibhirine no meio da população muçulmana. É por esta mesma razão que eu fiquei no Marrocos e onde conto, com a graça de Deus, poder terminar meus dias”, sorri.
No dia 21 de maio, ele celebrou, com os outros monges do seu mosteiro, o 20º aniversário de morte dos seus irmãos. Na ocasião, rezaram uma missa com paramentos vermelhos. Para que suas almas repousem em paz.
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Argélia: eu, irmão Jean-Pierre Schumacher, último monge de Tibhirine - Instituto Humanitas Unisinos - IHU