A poesia nos prepara para a busca de Deus. Artigo de José Tolentino Mendonça

Mais Lidos

  • Esquizofrenia criativa: o clericalismo perigoso. Artigo de Marcos Aurélio Trindade

    LER MAIS
  • O primeiro turno das eleições presidenciais resolveu a disputa interna da direita em favor de José Antonio Kast, que, com o apoio das facções radical e moderada (Johannes Kaiser e Evelyn Matthei), inicia com vantagem a corrida para La Moneda, onde enfrentará a candidata de esquerda, Jeannete Jara.

    Significados da curva à direita chilena. Entrevista com Tomás Leighton

    LER MAIS
  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

01 Junho 2016

A poesia opera o desmantelamento da crosta que cobre a realidade, desnuda o nosso coração, nos expõe a uma compreensão mais profunda e mais total da vida e das suas expressões: a sua noite e o seu dia, o seu direito e o seu inverno, a sua palavra e o seu silêncio.

O comentário é do padre, poeta e teólogo português José Tolentino Mendonça, professor e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa. O artigo foi publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 29-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A afirmação central, e tão citada, de Jesus no Evangelho de João (10, 11), que estamos acostumados a ver por toda a parte traduzida como "Eu sou o bom pastor", admite, porém, outra possibilidade de sentido: "Eu sou o belo pastor". E é esse, aliás, o sentido natural do adjetivo em questão, o termo grego kalós. Mas o que fazer com uma afirmação desse tipo?, perguntamo-nos. Haverá espaço para um anúncio centrado na beleza?

Habitualmente, preferimos apresentar a religião através do caminho da ética ou da dogmática, do Bem e da Verdade, e, quanto à beleza, permanecemos em silêncio, um silêncio constrangedor, como o dos israelitas quando preferiam que Moisés se cobrisse o rosto com um véu para atenuar a intensidade do esplendor que emanava ao descer do Sinai (Ex 35, 30). "O belo é só / o início do tremendo", explica Rainer Maria Rilke, na primeira das Elegias de Duíno.
 
A beleza não é unicamente manifestação: é mysterium fascinosum que se revela. Nesse sentido, ela atrai, agita coração e razão, transforma, agarra, transfigura. Por isso, devemos interrogar o silêncio ensurdecedor que, na maioria dos casos, a práxis religiosa reserva à beleza.

Urge, porém, que estabeleçamos um preâmbulo: o chamado retorno ao motivo da beleza não está hipotecado nos desvios decorativos que fazem a alegria de uma certa sensibilidade contemporânea. Romano Guardini dizia que o inimigo mortal de beleza são precisamente os estetismos. Uma teologia cristã da beleza, por exemplo, deve se fazer de surda a esses cantos de sereia, para se constituir como esforço de reaproximação ao núcleo mais sensível, consistente e decisivo da experiência da fé bíblica. Os outros dois transcendentais, Verdade e Bondade, não têm a possibilidade de atrair o homem, a menos que este se sinta tocado pela beleza.

Beleza e esplendor da verdade

A Platão devemos o sintagma: "A beleza é o esplendor da verdade". O autor do Fedro nos aconselha a nos tornarmos semelhante à própria beleza. Platão, assim, explicava que o impacto da beleza em nós, seres feridos pela beleza, é, acima de tudo, uma experiência antropológica: "Quem admira a beleza sente um suor e uma ascensão incomum: porque, assim que os olhos absorvem o eflúvio da beleza, ele se acende, e, com o calor, alimenta-se a sua substância…".

Simone Weil, no seu afiadíssimo ensaio Deus em Platão, sintetiza: "A ideia de Platão é que a beleza age de modo duplo, primeiro através do choque que provoca a recordação do outro mundo e, depois, como fonte material de uma energia diretamente utilizável para o progresso espiritual".

A misteriosa luta de Jacó com Deus (Gn 32, 25-32) explica a irrupção do divino como ímpeto de uma beleza mais forte que nos vence, beleza irresistível, sem nunca cessar de ser indizível. As palavras conclusivas desse texto são: "Ao nascer do sol, Jacó atravessou Fanuel e mancava por causa da coxa". O encontro com a beleza é tão decisivo que se dá um antes e um depois, é uma época nova da nossa vida que começa. E é interessante o detalhe de Jacó que sai mancando da luta com o Anjo. Ele está ferido, porque o Belo fere, não tem nada de superficial.

Uma beleza que se contempla

Moisés nos aparece no relato bíblico como o amigo de Deus, aquele com quem Deus fala "face a face, como um homem fala com outro" (Ex 33, 11). Mas, quando pede a Deus para Se mostrar, Deus faz passar diante dele "o (Seu) esplendor", deixando ver apenas "as costas" (Ex 33, 18-23). A beleza de Deus permanece, assim, irrepresentável, transcendental, envolta em mistério.

Os deuses, ao contrário, adorados pelos povos vizinhos têm uma substância que é definida, um corpo, uma imagem, um nome que é recitado. O Deus da Bíblia deixa em silêncio as possibilidades de representação, é transumante e impronunciável. A Sua beleza é apenas vislumbrada.

As teofanias são acontecimentos desarmantes, pois Deus foge do declarado e do nítido, e Se apresenta no imperceptível, naquilo que é apenas sussurrado, "o murmúrio de uma brisa suave" (1Reis 19, 12). O Código da Aliança é peremptório: nenhum corpo servirá de representação de Deus, seja ele "a imagem esculpida em forma de ídolo: imagem de homem ou de mulher, imagem de animal terrestre, de pássaro que voa no céu, de réptil que rasteja sobre a terra, ou imagem de peixe que vive nas águas que estão sob a terra" (Dt 4, 16-18).

O Deus Santo é, literalmente, o Deus separado das imagens, o Deus totalmente outro em relação ao design das representações. Mas o Seu mistério resplandece, revela-se, e isso é a beleza. A beleza não é um atributo, um campo à parte, uma moeda de troca, uma consolação, uma técnica, um código simbólico, um artifício, uma especialidade, um suplemento, como se o Ser e a beleza fossem de algum modo separáveis. A beleza é uma metafísica concreta, uma teologia visual, um ponto de união entre o mundo invisível e o mundo visível.

Poesia e experiência espiritual

Não se trata de substituir os profetas pelos poetas, nem de pretender que a literatura substitua o âmbito e a finalidade em que a teologia opera: em vez disso, muito simplesmente, trata-se de perceber o modo pelo qual a poesia (e a literatura em geral) prepara o coração humano à experiência espiritual.

Dou um exemplo para esclarecer em que terreno nos movemos. No relato do processo da sua conversão, o escritor Paul Claudel ressalta um fato que a muitos pareceu, e vai parecer, surpreendente: o papel-chave desempenhado pelo encontro com a poesia de Rimbaud. Foi lendo os insuspeitos volumes das Iluminações Uma temporada no inferno – que com razão podem ser classificados como puramente profanos – que, no entanto, Claudel sentiu se abrir nele, pela primeira vez, como ele escreve, uma fissura no materialismo prático em que vivia, enquanto, ao mesmo tempo, percebia a marca viva, quase física, que o espiritual pode deixar.

A "ação seminal" e decisiva da poesia no seu encontro com a fé consistiu nessa capacidade que a poesia e a arte têm de descrever a experiência espiritual não como algo impalpável, invisível e abstrato, mas como uma verdade que nos dilacera o coração, um estado fisiológico elementar, uma comoção que nos sacode, um sismo primário e visceral que nos faz estremecer, nos faz cair ao longo do caminho de Damasco, que é sempre aquele que estamos, incessantemente, percorrendo. Habitualmente, nós olhamos para os símbolos religiosos de modo apenas abstrato e moral.

Os artistas, em vez disso, descrevem a partir de dentro as "entranhas da baleia": isto é, fundem o conhecimento do divino com a trêmula e palpitante escuridão da experiência. Não é de se admirar, portanto, que Paul Claudel confesse agradecer todos os dias a Deus pela existência de Rimbaud, já que, sem a propedêutica que a sua poesia tinha representado para ele, ele nunca teria chegado a Ele.

Com razão, o teólogo Hans Urs von Balthasar repetia, que contra aquela espécie de nó górdio insolúvel que a atual secularização introduz, historicizando o absoluto e absolutizando o elemento histórico, só os poetas e os artistas são capazes de propor vias de fuga.

Por isso, a poesia nos prepara para a busca de Deus. Ela opera o desmantelamento da crosta que cobre a realidade, desnuda o nosso coração, nos expõe a uma compreensão mais profunda e mais total da vida e das suas expressões: a sua noite e o seu dia, o seu direito e o seu inverno, a sua palavra e o seu silêncio.