07 Março 2016
Condução coercitiva, com caráter claramente fanfarrão, é primeiro passo para prisão sem julgamento. Lulismo tem limites e contradições evidentes — mas são seus méritos que levam elites a odiá-lo.
O comentário é de Antonio Martins, editor de Outras Palavras, publicada por Outras Palavras, 04-03-2016.
Eis o artigo.
O ex-presidente Lula está, neste momento, em alguma dependência da Polícia Federal, levado sob coerção para prestar depoimento. As informações são contraditórias e confusas: não se sabe se irá à sede da PF na Lapa, se será conduzido a Curitiba ou ouvido por delegados em um hotel em São Paulo.
A coerção foi determinada pelo juiz paranaense Sérgio Moro, na 24ª etapa – “Aletheia” – da chamada Operação Lava Jato. O objetivo declarado é apurar suposto favorecimento que Lula teria recebido, de empreiteiras, em imóveis cuja propriedade é atribuída a ele, em Atibaia e Guarujá.
Porém, os passos que precederam a coerção são claros, tanto no terreno jurídico quanto no político e midiático. Nos últimos dias, a força-tarefa de juízes e procuradores que constitui a Lava Jato passou a operar freneticamente, num aparente esforço para consumar a prisão do ex-presidente. Na quarta-feira (2/3), divulgou-se com alarde que o empresário Leo Pinheiro, sócio e ex-presidente da construtora OAS, estaria decicido a fazer delação premiada que comprometeria Lula.
Em seguida, silêncio: tiro perdido? Ontem, foi a vez de a revista IstoÉ anunciar a possível delação, com idêntico sentido, do senador Delcídio do Amaral (PT-MT) – que aparentemente ocorreu de fato, o que não significa ser verídica. Agora, vem a coerção, acompanhada de medidas destinadas a produzir alarde. Duzentos policiais federais envolvidos. Invasão do Instituto Lula, das casas do ex-presidente e de seu filho, para suposta apreensão de provas… Ainda que Lula tenha cometido crimes, guardará os indícios em seus computadores, depois de sofrer anos de perseguições?
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No terreno político, há movimentação paralela mas igualmente frenética. Aproveitando-se da fraqueza e da falta completa de iniciativa e ânimo, por parte do governo Dilma, um grupo de parlamentares tenta aprovar no Congresso Nacional — a toque de caixa e sem qualquer debate com a sociedade — um conjunto de medidas claramente regressivas. Estão entre elas:
a) a concessão do petróleo do pré-sal para corporações estrangeiras;
b) a “independência” do Banco Central em relação a autoridades eleitas – que o colocaria diretamente sob controle da aristocracia financeira;
c) a escandalosa blindagem das empresas que obtiverem concessão de serviços públicos (para que a sociedade seja impedida de examinar e rever os contratos);
d) a limitação de gastos não financeiros do Estado (o que poderia levar a redução real do salário-mínimo e das aposentadorias).
A articulação entre as frentes jurídica e política é evidente. A agenda regressiva no Congressso é impulsionada pelos senadores José Serra (PSDB-SP) e Romero Jucá (PMDB-RR). Mas quem comanda seu avanço são dois dos parlamentares mais enterrados no lodaçal do Congresso – Eduardo Cunha e Renan Calheiros, os presidentes da Câmara e Senado.
A estes a mídia e a Lava Jato permitem e estimulam que dirijam a pauta nacional sem qualquer tipo de constrangimento. Ou seja: não se está diante de uma cruzada moralizadora, de uma Operação Mãos Limpas despartidarizada. O que há é uma campanha que usa a bandeira do combate à corrupção como biombo para obter, sem o risco do debate democrático, objetivos que não seriam alcançados de outro modo. O sentido político da Lava Jato tem sido desnudado numa série de textos do jornalista Luís Nassif, um dos quais é essencial.
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As piores mentiras são, sempre, as meias verdades. O que torna esta operação jurídico-política mais danosa é o fato de se basear em fatos concretos. As revelações da Lava Jato não são invenções brotadas da imaginação fértil de Sérgio Moro. Assim como no caso do “Mensalão”, o PT herdou e reproduziu as práticas corruptas que o Estado brasileiro impõe, desde que fundado, aos que o habitam.
No primeiro episódio, o elo de ligação foi o marqueteiro Marcos Valério, que serviu sucessivamente a tucanos e petistas – mantendo idêntico modus operandi. Agora é o senador Delcídio do Amaral.
Nomeado por Fernando Henrique Cardoso para a diretoria de Gás e Energia da Petrobŕas, em 2000, articulou-se desde então com Nestor Cerveró e Paulo Roberto Costa, hoje os dois principais delatores da Lava Jato. Em 2001, sentiu o esgotamento do velho esquema e bandeou-se para o PT, partido pelo qual elegeu-se senador, em 2002. Foi acolhido e, tal qual Marcos Valério, manteve métodos idênticos. Não é de estranhar que este autêntico homem-bomba seja igualmente rechaçado, agora, por tucanos e governistas.
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O que mais deu força à Lava Jato não foram suas revelações – alguém ignora a corrupção endêmica ao Estado brasileiro? – mas o novo ambiente político em que ela vicejou, após o início do segundo governo Dilma.
Conforme destacou com precisão Guilherme Boulos, a presidente abre mão, sem pudor algum, de tudo que diferenciava o petismo dos governos das elites. No desespero para salvar a própria pele, entrega o único trunfo que a distinguiria da pilhagem praticada pelo Estado brasileiro. Seus atos sugerem que desistiu do que havia de mais positivo no lulismo: a modesta (porém efetiva) redistribuição de riquezas; a política externa independente (que tanto incomodou a Washington); a tentativa de retomar um projeto desenvolvimentista (ainda voltado aos velhos paradigmas, mas ao menos não submisso à aristocracia financeira).
Lula sobreviveu ao “mensalão” porque pôde mostrar, em 2006, que seu projeto o distinguia. A campanha udenista de Serra e da mídia esbarrou em algo nítido na consciência coletiva. A corrupção do Estado brasileiro é, todos sabem, atávica; mas o lulismo indicava que as maiorias não estavam condenadas a padecer eternamente. Que dizer de Dilma, que, em 2016, entrega o pré-sal, propõe uma contra-reforma fiscal que levará à redução real do salário mínimo e quer reduzir os direitos previdenciários – enquanto tolera os lucros recordes dos bancos? Como defender um governo que trabalha com afinco, todos os dias, para tornar-se indefensável?
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Bem pouco resta, em todo o mundo, das velhas democracias que herdamos das revoluções dos séculos XVII ao XX. Mas seus símbolos persistem e podem ser reavivados, porque são conquistas coletivas. Os filósofos iluministas cujas ideias ajudaram a superar a crise do mundo medieval apoiaram-se no que houvera de melhor na Antiguidade clássica. Talvez seja necessário retornar aos ideais das revoluções modernas para retirar inspiração, nos dias tormentosos que vivemos.
Num mundo em crise, surgem por toda parte fenômenos estranhos. Nos EUA, um senador marginalizado do Partido Democrata converteu-se num candidato à presidência com chances reais de vitória. Na Inglaterra, o velho Partido Trabalhista, depois de amortecido e privado de sua alma, reviveu graças ao impulso de Jeremy Corbin, um socialista sincero. A coerção de Lula é um símbolo poderoso. O Brasil tem sido, desde o início deste século, um país inspirador para outro mundo possível. Diante deste ataque, seremos capazes de inventar uma alternativa?
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Lula, preso político? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU