28 Fevereiro 2016
Para o diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil, Átila Roque, o Estado brasileiro não está conseguindo focar e dar prioridade ao enfrentamento dos altos índices de homicídio, que é a maior emergência humanitária que o Brasil vive. A Anistia lança hoje, no Rio de Janeiro, o relatório completo com um debate.
O artigo 5o da Constituição Brasileira garante a inviolabilidade do direito à vida. Mas as conclusões apresentadas pela Anistia Internacional no relatório “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, que será lançado hoje, revela que estamos violando sistematicamente o direito à vida no Brasil. São cerca de 58 mil homicídios por ano no país. É uma letalidade altamente seletiva: 77% das vítimas são jovens negros, moradores da periferia. Como se essas vidas não tivessem valor algum para a nossa sociedade e para o Estado. Ao invés de o Brasil reagir com políticas públicas para enfrentar uma situação duas vezes superior à considerada epidêmica pela Organização Mundial de Saúde, o Congresso avança em pautas que tendem a dirimir direitos conquistados e a expor ainda mais essa população à violência, como a tentativa de reduzir a maioridade penal e a proposta de revogação do Estatuto do Desarmamento. “Há uma focalização dos homicídios e da penalização em um certo tipo de pessoa, de um determinado território”, explica Átila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. “São sujeitos considerados ‘matáveis’, quase descartáveis. É como se a cada dois dias derrubássemos um avião lotado de jovens – e isso não é notícia no jornal.”
A boa notícia é que a sociedade brasileira, por meio dos movimentos sociais, está reagindo aos retrocessos e omissões.
A entrevista é de Maria Carolina Trevisan, publicada por Jornalistas Livres, 24-02-2016.
Eis a entrevista.
O relatório apresentado pela Anistia Internacional este ano evidencia uma série de graves violações a direitos humanos e revela que o parlamento reforça medidas conservadores, na contra-mão do enfrentamento às violações. Há alguma surpresa, na sua opinião?
O que chamou a atenção da Anistia no caso do Brasil no ano passado, foi a agressividade da agenda conservadora no âmbito do Legislativo, que fez avançar a sua pauta. Terminamos o ano com muitos direitos importantes sob risco. São propostas que estão em tramitação ou já foram aprovadas na Câmara e aguardam confirmação do Senado. Percebemos que, diante de um certo vazio de lideranças no Congresso, acabou acontecendo a ascensão de uma liderança muito oportunista no sentido de engavetar uma série de propostas que significam um grave retrocesso em várias áreas importantes para a agenda de direitos humanos e que agora estão sujeitos a serem aprovados pelo Congresso.
É possível destacar algum avanço na garantia de direitos humanos no país?
Um ponto positivo foi que houve uma mobilização importante da sociedade na defesa desses direitos, especialmente de parcelas bastante significativas da juventude, tanto no que diz respeito à tentativa de redução da maioridade penal, como no que se refere aos direitos das mulheres e, mais para o final do ano, a mobilização dos estudantes, com várias manifestações importantes. Isso mostra que apesar do enorme baixo astral da agenda legislativa e do enorme descrédito que as instituições e os partidos estão sofrendo devido à crise do próprio modelo político, existe ainda uma força de participação da sociedade muito disposta a não recuar nas conquistas da democracia.
Diante desse cenário conservador atuante no Congresso, qual a importância das Comissões Parlamentares de Inquérito que se instauraram e se mantiveram ativas, como, por exemplo, a CPI contra o genocídio da juventude negra?
Tivemos duas CPIs tratando especificamente do genocídio da juventude negra, uma na Câmara e outra no Senado. A Anistia vem tentando, há um ano e meio, mobilizar a sociedade e pautar, no marco da campanha Jovem Negro Vivo, a agenda do alto índice de homicídios no Brasil, o impacto que isso tem sobre a juventude brasileira e a juventude negra em particular. A gente vem demandando, por um lado, que a própria sociedade rompa essa cortina de silêncio e invisibilidade sobre essa agenda e por outro lado que o Estado coloque esse tema no marco de prioridades que a gente acha que ele deve ter. O fato de o Congresso ter respondido com as CPIs merece destaque. Foram momentos em que essa agenda entrou de maneira muito qualificada no debate parlamentar. Em geral, esse debate chega no parlamento por vias muito tortas e marcadas por estereótipos e preconceitos, com uma visão conservadora, como aconteceu no debate sobre a redução da maioridade penal. Foram momentos em que esse debate pode chegar à agenda do Legislativo de maneira muito mais qualificada.
Em relação aos índices de homicídio, quais as tendências observadas pela Anistia?
Os dados mais recentes mostram uma assustadora continuidade no crescimento desses índices. No último Mapa da Violência, a curva dos últimos 10 anos, referentes ao homicídio de jovens entre 15 e 29 anos, há uma situação bastante dramática. Quando você olha os jovens brancos, há um decréscimo da ordem de 33%. Quando você olha, nessa mesma faixa de idade, os jovens negros, há um crescimento de 33%. Ou seja é um espelho invertido, o que leva a gente a pensar que em grande medida, a taxa de homicídios de jovens negros é o que está sustentando a taxa de homicídios na faixa tão alta de 56 mil, ou 58 mil, segundo o Fórum de Segurança Pública Brasileiro.
O fato é que o Brasil vive uma situação que pode ser considerada de emergência, de epidemia de homicídio. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, uma taxa de homicídios por cem mil habitantes, acima de 10, já pode ser considerada epidêmica. O Brasil, em média, está em mais ou menos 25 homicídios por cem mil habitantes. Ou seja, nós estamos mais no patamar da calamidade, porque 60 mil mortos por homicídio no ano é muito acima de várias guerras.
É uma taxa muito expressiva e que preocupa por sua seletividade racial e geracional.
A taxa absoluta de quase 60 mil homicídios por ano é muito alta sob qualquer aspecto. A taxa relativa, de 25 homicídios por 100 mil habitantes também é muito alta, porque está muito acima do patamar de epidemia. A taxa por idade e o registro por cor também são muitos elevados. Mais de 50% dessas mortes são de jovens. E entre os jovens, 77% são negros. Isso significa uma focalização da vitimização de jovens negros e pobres, da periferia. Mostra que há uma letalidade altamente seletiva.
Como o Estado reage? Há um desenho de política pública para enfrentar essa situação?
O Juventude Viva [programa federal com desdobramentos municipais, desenhado especialmente para enfrentar o homicídio de jovens negros] é uma gota no oceano. É um programa que, quando você olha o conceito, é um meritório. Agora, o alcance dele, diante da tragédia que estamos vivendo é absolutamente pífio, para não dizer quase ridículo, considerando o tamanho do problema que a gente enfrenta no Brasil. O Governo Federal, o ministro da Justiça, vem há anos prometendo e adiando a publicação de um Plano Nacional de Redução de Homicídios, que traria um conjunto de iniciativas integradas, que envolveria o Estado e a União, focados na redução de homicídios. Nós estamos esperando isso há oito anos. A última vez que o ministro Cardoso prometeu isso foi no ano passado, no encerramento do encontro anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quando ele disse que o plano estaria pronto e seria apenas questão de fechar os detalhes, para lançar não um “plano” mas um “pacto”. Estamos até agora esperando esse pacto. Já passou um ano desse momento.
Então, isso tudo sugere que estamos vivendo um impasse: o Estado brasileiro não está conseguindo focar e dar prioridade àquilo que é a maior emergência humanitária que o Brasil vive. É uma situação que, daqui a 10 anos, vai nos deixar na mesma ou pior. Porque se você não fizer alguma coisa, de forma organizada para reverter isso, isso não vai se reverter naturalmente. Pelo contrario. O que a gente deve assistir é o que estamos começando a ver nos dados: uma focalização cada vez maior dos homicídios, com a penalização cada vez maior de um certo tipo de pessoa, de um determinado território, que estão sendo considerados sujeitos ‘matáveis’, quase descartáveis, e a sociedade, o Estado consegue dormir todos os dias com essa tragédia. São 30 mil mortes de jovens por ano, é como se a cada dois dias você estivesse derrubando um avião lotado de jovens, 77% negros, e isso não é notícia no jornal.
O relatório diz que um dos pontos importantes para combater essa violência é a transparência na área da segurança pública. Como o senhor vê o posicionamento do governador Geraldo Alckmin, que impôs sigilo de 50 anos aos registros dos Boletins de Ocorrência?
Essa medida do governador Alckmin é inacreditável. Vai na contra-mão do que pedem os especialistas e dessa reivindicação por maior transparência e por maior sistematização dos dados. São Paulo, que já foi um evento nessa área, está entre os estados que no passado deram exemplo, junto com o Rio de Janeiro. Hoje está caminhando a passos largos para um retrocesso gravíssimo. Se essa medida se confirmar, vai ser realmente assustador.
O que temos hoje no Brasil é uma situação em que a participação da polícia nos índices de homicídios é muito alta, ainda que os dados sejam fragmentados. Mostram que a participação do Estado, através da polícia, nesse total de homicídios é altíssima. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, olhando apenas os “autos de resistências”, ou seja, não estamos falando de todas as mortes que envolvem policiais, mas se a gente olhar apenas a situação em que a própria polícia diz que matou em legítima defesa, nós tivemos uma média nos últimos quatro anos de 15%. Ou seja, cerca de 15% do total de homicídios ocorridos no Rio de Janeiro são de pessoas mortas pelas mãos da polícia, supostamente em ações de legítima defesa. Mas diversas pesquisas mostram que essas mortes tratam-se de execuções sumárias e não de resistência seguida de morte. O relatório “Você matou meu filho”, lançado pela Anistia no ano passado, faz uma análise dos autos de resistência ocorridos no Rio em 2014 e também uma análise histórica desde 2011: há fortes indícios que a maioria dos casos de auto de resistência se tratou, na verdade, de execuções.
Então é correto afirmar que uma parte importante dos homicídios no Brasil é causada pela polícia.
Temos uma situação em que a polícia é parte do problema. A gente tem dificuldade de falar do conjunto do Brasil porque não há transparência, coleta uniformizada por parte das instâncias do estado, que têm responsabilidade sobre o controle e o monitoramento das ações policiais, com medidas efetivas nesses casos. O Ministério Público se omite e não atua no marco da sua responsabilidade constitucional, afinal de contas cabe ao MP o controle externo da ação policial, que não está fazendo isso. A Justiça, por sua vez, atua de maneira lenta, quase parada. Então, o número de situações que chega a qualquer tipo de responsabilização é quase nulo e a Polícia Civil também não investiga esses episódios. É quase uma cadeia de cumplicidade. Embora seja uma palavra forte, é como se tivesse todo um sistema funcionando para manter e autorizar a má atuação da polícia, no sentido de que ela pode continuar exercendo um papel de executora de pessoas consideradas traficantes ou bandidos, ou que quer que seja.
Como isso se reflete no sistema prisional?
O campo da Segurança Pública e da Justiça no Brasil, que em qualquer sociedade funciona como um termômetro, um importante patamar de cidadania, está se revelando num enorme déficit de Justiça, uma enorme violência. O que a gente vê é esse sistema funcionando para penalizar um certo tipo de pessoa, muito mais como um fator de repressão, controle e até eliminação de um certo perfil de cidadão do que uma instância recuperadora, garantidora de um patamar de civilidade e eventualmente de punição e responsabilização daquela pessoa que está em confronto com a lei.
É, na verdade, um instrumento de controle e supressão de direitos da própria vida de uma certa parte da população. Ao traçar um paralelo entre a taxa de homicídios (quase 60 mil por ano) e a taxa de resolução de homicídios (entre 5 e 8%), ou seja, menos de 8% obtém qualquer resultado da Justiça, encontra-se um número altíssimo de impunidade. Como pode um país em que o crime contra a vida é praticamente impune, ter, esse mesmo país, a quarta maior população prisional do mundo? É um país que está prendendo a pessoa errada! A maior parte dessas quase 600 mil pessoas que estão hoje nas prisões, nas piores condições possíveis, não cometeram crimes violentos, não cometeram crimes contra a vida. São pessoas que cometeram crimes contra o patrimônio ou o chamado “tráfico de drogas”, porque o usuário é enquadrado como traficante, e 40% dos presos estão em prisão provisória – passam mais tempo na prisão do que no final das contas é a pena.
Sobre o posicionamento político do Brasil, o que significa o país não ter se candidatado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, como chama a atenção o relatório?
Isso foi visto como uma surpresa negativa. Desde o início o Brasil tem participado e ocupado assento na Comissão de Direitos Humanos. Pela primeira vez, o Brasil declinou da participação. É muito surpreendente que um país como o nosso, que tem reivindicado uma posição de protagonismo internacional político e econômico, no momento em que tem a oportunidade de ocupar um lugar de importância como essa comissão, espaço em que os Estados membro das Nações Unidas exerce seu mandato fundamental de monitorar as condições de direitos humanos do mundo, se furte voluntariamente a ocupar esse lugar. O Brasil está quase dizendo para o mundo que ele é um ator secundário. Quase declarando e assinando com firma reconhecida que não tem competência para estar em um espaço global de defesa dos direitos humanos tão importante como a comissão.
O Brasil também não ratificou o Tratado sobre Comércio de Armas.
Quando o tratado foi aprovado, o Brasil foi um dos primeiros países a assinar, aderiu imediatamente. Mas desde então, a ratificação ainda não foi feita. O que cria uma enorme frustração e uma reversão de expectativas. Havia uma expectativa de que o Brasil fosse um dos primeiros a ratificar, dada a importância desse tratado no mundo de hoje. É mais fácil exportar arma do que banana. Existe muito mais controle do comércio internacional sobre banana do que armas de porte médio e pequeno, as que mais matam. Hoje o Brasil está mandando uma sinalização muito negativa ao não priorizar, não pressionar o Congresso.
No conjunto dos países pesquisados pela Anistia, como vai o Brasil? Há algum motivo de orgulho?
A Anistia não faz ranking. Normalmente não traçamos esse paralelo porque a gente prefere não comparar países. Mas podemos dizer que nós estamos entre os países que mais mata no mundo. Provavelmente em termos absolutos corre o risco de ser o país que mais mata e está entre os mais desiguais e mais violentos, mantendo um nível muito alto de violência de defensores de direitos humanos.
Se você olha o volume de pessoas mortas no campo ou lideranças indígenas camponesas que são assassinadas, o Brasil é dos países que mais mata no mundo. Então, se você traçar um paralelo, o cenário dos direitos humanos no Brasil não nos orgulha. Tem avanços pontuais, mas estamos vivendo um momento em que tem uma grave ameaça de retrocesso. Ainda não se configurou porque ainda não foram medidas aprovadas, foram parcialmente aprovadas.
Espera-se que a reação da sociedade possa reverter a situação. Mas estamos falando de grandes riscos. A situação brasileira não corresponde aos avanços que nós logramos em outras esferas, como o protagonismo global, a luta contra a pobreza, o avanço da democracia. O Brasil obteve grandes avanços ao longo dos últimos 30 anos do ponto de vista da Constituição, mas mantém ainda um patamar alto de violação, devido à dificuldade de implementação desse marco legal avançado, que não corresponde ao que nós gostaríamos de ver.
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“É como se a cada dois dias derrubássemos um avião lotado de jovens” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU