16 Fevereiro 2016
Poderão discordar de mim aqui, mas, de qualquer forma, irei categoricamente afirmar: não há uma figura pública no mundo, hoje, com uma imagem definida por uma frase mais enganadora do que o Papa Francisco, líder cuja frase que mais o caracteriza há quase três anos permanece valendo: “Quem sou eu para julgar?” Dita em relação à sua atitude para com a comunidade gay, esta frase vem sendo tomada para dar a entender uma aceitação papal sobre o tema, sugerindo um papa tranquilo, ao estilo “cada um na sua”. Mas a realidade não poderia ser mais diferente.
O artigo é de John L. Allen Jr, publicado por Crux, 15-02-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na verdade, Francisco é uma das figuras mais julgadores que há por aí, no sentido de nunca deixar criticar quando ele acha que há algo errado. Durante a sua atual visita ao México, nós tivemos vários exemplos disso: desde a sua denúncia dos cartéis de drogas até os seus fortes apelos por justiça aos imigrantes e indígenas.
Porém, há mais um grupo no México que está sob o juízo afiado do pontífice: os cerca de 170 bispos católicos. Em um marcante discurso de 4.500 palavras aos prelados no sábado – uma das alocuções mais desenvolvidas e detalhadas de seu papado –, Francisco apresentou uma visão do tipo de episcopado que ele crê a Igreja estar precisando atualmente.
Na ocasião, o papa estava falando aos mexicanos porque acontece de estar no México, mas ele, indubitavelmente, diria quase a mesma coisa para os bispos de outros lugares. Em uma palavra, o seu argumento se resume a isto: nós vivemos em um mundo quebrado e ferido, e a única resposta eficiente que a Igreja pode dar não é o poder ou o privilégio, nem uma influência institucional ou manobras políticas, mas uma integridade e proximidade pessoal com as vítimas daquilo que ele chama de “cultura do descarte”.
“A única força capaz de conquistar o coração dos homens é a ternura de Deus”, disse Francisco, refletindo sobre o legado da “Virgen Morenita”, conforme os mexicanos se referem à Nossa Senhora de Guadalupe.
Francisco elencou uma série de maneiras que os bispos podem acabar não expressando tal ternura:
• uma “autossuficiência arrogante”
• um medo da “transparência” – “a Igreja não precisa da obscuridade para trabalhar”
• a corrupção pelo “materialismo vulgar”
• “ilusões sedutoras dos acordos feitos”
• “críticas [fofocas] e intrigas”
• “projetos vãos de carreira”
• “clubes estéreis de interesses ou compadrios”
• “adormentar sobre os próprios louros”
• uma tentação da distância e do clericalismo
• certa “frieza e indiferença”
• o “triunfalismo e aurorreferencialidade"
“Não há necessidade de ‘príncipes’”, concluiu o papa, “mas duma comunidade de testemunhas do Senhor”. Esta é uma lista parcial, mas se for esta linguagem de um papa que não julga, podemos imaginar como seria a de um que julgasse.
Quando eu estava na faculdade, aprendemos ser um princípio básico da interpretação textual que os legisladores não emitem opiniões inibidoras contra certos comportamentos a menos que eles estejam, de fato, acontecendo no momento. O Código de Hamurabi, por exemplo, exigia salários justos para os condutores de bois porque, na época, eles estavam sendo explorados. O código nada dizia sobre bullying cibernético, porque ninguém o fazia.
Segundo essa lógica, poder-se-á supor que o Papa Francisco pediu aos bispos mexicanos a evitarem as tentações que ele listou porque acredita que, pelo menos, alguns prelados, em certo momento, sucumbiram a eles. Na verdade, não é preciso ser um especialista em Igreja para perceber isso. Ao longo dos anos, muitos bispos no México estiveram estreitamente alinhados com os centros tradicionais de riqueza e poder político, e este legado está vivo ainda hoje.
Quando Francisco se referiu ao risco de “acordos feitos por debaixo da mesa”, por exemplo, muitos mexicanos se lembraram de uma polêmica que rompeu pouco antes de o pontífice chegar, um caso envolvendo o presidente Enrique Peña Nieto e a primeira-dama Angélica Rivera. Em resumo, a sugestão é que influentes autoridades eclesiásticas arranjaram uma anulação matrimonial para Rivera em 2009, permitindo que os dois se casassem em uma cerimônia católica, supostamente em troca de favores políticos no futuro.
Pode-se citar múltiplos exemplos, como a maneira que as principais autoridades da Igreja mexicana apoiaram o fundador dos Legionários de Cristo, o falecido Marcial Maciel Degollado, apesar das graves acusações de abuso sexual, em grande parte por causa de seu histórico de angariar dinheiro e forjar laços com as elites.
De maneira geral, pensemos na longa história de uma relação próxima entre o trono e o altar no México, relação que mesmo décadas de legislação anticlerical não a erradicou por completo; pensemos também no ainda forte grupo dentro do episcopado que prefere mover-se em círculos VIP e a condenar os males de um Estado secular ao invés de se engajar nos problemas concretos na base.
Usando a linguagem bíblica sobre a Igreja como sendo a Noiva de Cristo, Francisco concluiu a sua fala aos bispos com uma advertência. “Ai de nós, pastores”, disse ele, “se deixarmos vagar a sua Esposa, porque, na tenda por nós construída, não se encontra o Esposo”. Com certeza, a análise do papa não foi tão sombria quanto se poderia imaginar com o que se disse até então. Ele elogiou os bispos mexicanos em vários fronts, incluindo o papel deles no enfrentamento do que Francisco chama “o desafio deste nosso tempo”, ou seja: a migração. Ele deixou claro a sua confiança na capacidade destes prelados em se levantar diante dessa situação.
O tempo vai dizer até onde foi positivo ter Francisco guiando os bispos nessa direção, a qual será determinada sobretudo pelo tipo de prelados que ele vai nomear em seguida. Enquanto isso, se se fosse perguntar para a maioria dos bispos mexicanos neste exato momento se Francisco é, realmente, o papa do “Quem sou eu para julgar?”, muito provavelmente a resposta que dariam seria: “Tá brincando?”
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‘Quem sou eu para julgar?” Dirão os bispos mexicanos: É o Papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU