13 Janeiro 2016
Os Kaingang, a tribo do menino de dois anos assassinado no final do ano em Santa Catarina, peregrinam pelo litoral catarinense durante o verão para manter a tradição do artesanato. Moradores de cinco aldeias do Oeste e três do Rio Grande do Sul comercializam cestarias em Laguna, Pinheira, Garopaba, e são constantemente expulsos. De locais públicos.
A reportagem é de Aline Torres, publicada por El País, 12-01-2016.
Os pais do menino Vitor, Sônia e Arcelino, nasceram em aldeias distintas do Rio Grande do Sul. Migraram há quase duas décadas para Condá, uma aldeia às margens do rio Uruguai, que sobreviveu à Guerra do Contestado e aos roubos de terras dos funcionários do Serviço de Proteção ao Índio.
Preencher o vazio demográfico do Oeste catarinense era um desafio para o Império, que, como solução, estimulou três ondas pioneiras: pastoril, extrativista e de expansão agrícola. Se o Oeste precisava crescer, os indígenas eram vistos como entraves.
Com as terras expropriadas, os Kaingang da Condá viviam abrigados em barracos de lona no centro da cidade até a década de 90. Na época, muitos foram espancados por moradores do município. A repulsa da sociedade fez com que fossem removidos para o local.
A aldeia Condá tem 2.300 hectares e fica na zona rural. Cerca de 800 pessoas vivem lá. O isolamento fez com que muitos indígenas sequer aprendessem o português. Eles falam Jê. Durante o inverno produzem sua arte para vender no verão. Família que ganha bem lucra no máximo 800 reais por mês. Nos meses frios o dinheiro aperta. Os pais de Vitor torciam por boas vendas no veraneio para adquirirem uma geladeira.
Os Kaingang também são alvo dos integrantes dos Conselhos Tutelares, que vigiam o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente, por carregarem as crianças para o trabalho. “Como vamos proibir? Eles precisam aprender nosso ofício. Meu filho não gosta de mendigar, de pedir esmola, mas vender ele adora”, disse Sônia.
Os pais de Vitor estão convictos: não deixarão de trabalhar. “É isso o que fazemos, é a nossa cultura. Se me entrego deixo de pensar nos meus filhos e netos, daí eles que terão que vencer esse preconceito. Vamos continuar lutando e as pessoas terão que nos aceitar”, disse Arcelino.
O historiador Clóvis Brighenti explica o ódio contra a etnia relacionando justamente com o trabalho. Para os imigrantes europeus, que povoaram Santa Catarina, a terra serve para produzir, para explorar. Para os Kaingang, é parte do sagrado. Assim foi construída a ideia de que os índios são vagabundos, que deixam o mato crescer ao invés de plantar. A maledicência repetida se enraizou como verdade. “Desde a escola eu já sofria. Me chamavam de suja, de bugre, de macaca. Falavam que eu morava nos matos, que era filha de vagabundos”, lembrou a vice-cacique da Condá, Márcia Rodrigues.
A intolerância, no entanto, não é novidade. Durante o Império foram criados aldeamentos para os Kaingang. Para fugir da morte, aceitavam a evangelização dos freis capuchinhos. Em 1910 foi criado o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), transformando esses locais em reservas.
Segundo o antropólogo Diego Eltz, a partir da década de 40, com a ditadura varguista, os Kaingang sofreram um processo de expulsão das suas terras e só puderam reivindicar moradia a partir de 1988, após promulgação da Constituição.
Preencher o vazio demográfico do Oeste catarinense era um desafio para o império. E se o Oeste precisava crescer, os indígenas eram vistos como entraves
O Relatório Figueiredo, desaparecido por 45 anos, apurou essas matanças e torturas. Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, o documento foi encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7.000 páginas preservadas, em abril de 2013. Em um dos trechos, o relator Jader de Figueiredo descreve sua indignação:
“É espantoso que existe na estrutura administrativa do país repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Vendera-me crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. A fertilidade de sua cruenta história registra até crucificações, os castigos físicos eram considerados fatos normais nos Postos Indígenas. Os espancamentos, independentes da idade ou sexo, participavam da rotina e só chamavam atenção quando, aplicados de modo exagerado, ocasionavam a invalidez ou a morte. Havia uns que requisitavam a perversidade, obrigando pessoas a castigarem seus entes queridos. Via-se, então filhos baterem em mães, irmão espancar irmã. O tronco, era todavia, o mais encontradiço de todos os castigos. Consistia na trituração dos tornozelos da vítima”.
A SPI tinha 130 postos em 18 Estados brasileiros e foi extinta em 1967, dando origem a Funai (Fundação Nacional do Índio). Além da vida, os Kaingang perderam terras em todo seu território, que compreende os três Estados do Sul e São Paulo. Brighenti explica: “Os indígenas representam o passado que incomoda. Aqueles que não deveriam mais existir”.
Atropelamentos
O Conselho Indigenista Brasileiro (CIMI), braço da Igreja Católica que milita na causa indígena, continua a denunciar violências agudas. Em 2015, sete Kaingang foram atropelados em estradas gaúchas e catarinenses. Morreram sem socorro. Em setembro de 2014, uma população enraivecida do município de Erval Grande, no Rio Grande do Sul, expulsou 45 indígenas acampados às margens de uma rodovia estadual. Com apoio da Polícia Militar, sem ordem judicial e sem o conhecimento da Funai, centenas de moradores foram ao acampamento dos Kaingang e obrigaram os indígenas a embarcar num ônibus que os transportou para a cidade de Passo Fundo, a mais de 140 km de distância.
Na madrugada do dia 17 de novembro do mesmo ano, a Polícia Federal e a PM ocuparam a estrada em frente à comunidade Kaingang de Kandóia, no município de Faxinalzinho, Rio Grande do Sul. Vieram 200 soldados munidos com armamento pesado, cavalaria, 70 viaturas, helicópteros e cães policiais. Foi uma caçada.
Há ainda casos célebres. Em 1984, uma mulher Kaingang foi encontrada morta, com um pedaço de taquara transpassando seu corpo – da vagina à boca. Seu corpo foi encontrado nas proximidades da cidade de Tenente Portela (RS). O autor do crime, um proprietário de terras da região, confessou pouco antes de morrer a autoria. Justificou ter sido motivado pelo ódio que sentia dos índios.
No sétimo dia do assassinato de Vitor outro indiozinho morreu, desta vez de fome. Jadson Batista Lopes, um ano, foi enterrado na aldeia Kurussu Ambá, no Mato Grosso do Sul. Desde 2007, cinco crianças morreram na aldeia por desnutrição. O mais velho tinha cinco anos. De acordo com a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), a falta de alimentação matou quase 600 crianças indígenas nos últimos dez anos. Nas estatísticas, metade da mortalidade infantil no país é ocupada por índios, mesmo que eles representem apenas 0,4% da população.
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Os Kaingang, povo do curumim assassinado, em eterna fuga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU