11 Novembro 2015
Os ataques vindos de blogueiros e especialistas conservadores não têm a ver realmente com a teologia de Francisco, mas com as consequências sociais e políticas que o seu pontificado sinaliza para uma interpretação ideológica do catolicismo. A heterodoxia de que o papa está sendo acusado não é teológica. É política.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo e diretor do Institute for Catholicism and Citizenship, na University of St. Thomas, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio Global Pulse, 09-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O momento presente na vida da Igreja Católica, em certo sentido, é semelhante ao período imediatamente após o Concílio Vaticano II.
No dia 8 de dezembro de 1965 – o dia em que Vaticano II chegou ao fim – o lendário teólogo moral alemão Bernard Häring disse: "O Concílio começa hoje".
De forma semelhante, um importante momento na vida da Igreja começou a se desenvolver diante dos nossos olhos. Com a preparação e a celebração das duas últimas sessões do Sínodo dos bispos ao longo de dois anos, testemunhamos o início da Igreja da sinodalidade.
Esse é um território inexplorado.
Temos uma ideia do que é a sinodalidade, o que ela requer e como o Papa Francisco a vê, pois ele a descreveu no seu discurso do dia 17 de outubro de 2015 ao Sínodo. Mas não sabemos se e como ela vai funcionar em uma Igreja que não está acostumada com ela.
No entanto, há muitas diferenças entre os primeiros dias do período pós-Vaticano II e o atual período pós-sinodal. Isso não apenas porque um concílio não é um sínodo, mas também porque Francisco tem que lidar com uma Igreja em que muitas distinções básicas sobre e dentro do catolicismo parecem ter se perdido.
Isso é especialmente verdade entre os autodenominados "católicos ortodoxos", que têm uma voz proeminente na praça pública. Mas mesmo os debates da recente assembleia do Sínodo mostraram que, hoje, há uma dificuldade generalizada na Igreja Católica de articular a relação entre doutrina e teologia de uma forma saudável.
Uma razão pela qual os debates eclesiais de hoje diferem dos debates teológicos de 50 anos atrás é porque as diferentes posições na Igreja estão muito politizadas e ideologizadas.
As polêmicas dos representantes da ortodoxia católica tradicionalista contra as mudanças que Francisco é acusado de tentar introduzir são movidas também (e, às vezes, principalmente) por motivos políticos; ou seja, por questões relacionadas com uma interpretação política do Vaticano II e, especialmente, do período pós-Vaticano II.
Para esses ideólogos, o Vaticano II causou as mudanças na cultura que começaram nos anos 1970, mudanças que tinham a ver principalmente com a moral sexual. Nesse sentido, eles veem o Concílio como o "marco zero" na história da decadência moral da civilização ocidental.
Para dizer o mínimo, essa é uma visão muito questionável dos últimos 50 anos de história global e das relações entre teologia católica e cultura no mundo ocidental. No entanto, é uma narrativa muito poderosa, que é desafiada por aquilo que o papa atual diz e faz (o que não significa que Francisco não veja sintomas perturbadores de declínio no mundo ocidental).
Desde o início do pontificado atual, âmbitos tradicionalistas do catolicismo (especialmente nos Estados Unidos) criaram uma narrativa sobre a "heterodoxia" do Papa Francisco.
Basta olhar para os artigos que foram publicados em revistas e jornais católicos conservadores e tradicionalistas – sem falar na blogosfera católica – ao longo dos últimos dois anos e meio (especialmente depois da publicação multilíngue da entrevista de sucesso do papa em setembro de 2013 com a revista jesuíta La Civiltà Cattolica).
Eles ofereceram "advertências" em várias versões de que os cardeais no conclave de 2013 podem ter eleito, muito possivelmente, um bispo de Roma cuja teologia não é totalmente católica. Note-se que tudo isso começou bem antes do debate sobre os católicos divorciados e recasados que teve início com o discurso do cardeal Walter Kasper ao consistório de fevereiro de 2014.
No entanto, essa se tornou agora a questão mais proeminente que esses anti-hereges escolheram para alimentar a sua batalha contra o papa.
Por que os membros mais piedosos, devotos e de mente tradicional da Igreja – assim como ambientes ideologizados do catolicismo norte-americano – submeteram o Papa Francisco a esse tipo de crítica extremista?
Parte da resposta é que a sua visão do catolicismo é politicamente moldada pelo trauma das guerras culturais. Na relação ambígua entre a doutrina sociopolítica e o papel da doutrina católica, o ensinamento da Igreja é explorado a fim de defender um paradigma sociopolítico mais do que de permear o ministério pastoral.
Tornou-se claro agora que o Papa Francisco violou o acordo sociopolítico que que floresceu dentro dos círculos católicos conservadores durante os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI.
Ele quebrou o tabu graças às duas palavras-chave do seu pontificado – os pobres e a misericórdia.
Ser pobre se tornou (também para alguns católicos no hemisfério ocidental, eu diria) não uma condição socioeconômica, mas uma heresia que prova que a promessa universal da riqueza é falsa. Falar sobre os pobres, portanto, desafia não apenas as suposições sobre o uso do dinheiro dos impostos ou a alocação de recursos, mas desafia também uma identidade político-religiosa.
Como "católico social", Francisco repropôs a essência de uma teologia que é indigesta para a cultura econômica neoliberal e para uma mentalidade individualista que acha difícil aceitar as demandas éticas da moral católica como parte integrante da ideia de "bem comum". É uma articulação teológica que é inaceitável para um catolicismo gentrificado que gostaria de fazer de Jesus Cristo um moralista hipócrita.
A ênfase na misericórdia, por outro lado, viola a mentalidade "lei e ordem" dos autointitulados guardiães da ortodoxia católica. Para eles, o catolicismo é uma doutrina imutável que não pode ser contaminada por desenvolvimentos teológicos e pela ideia da "pastoralidade" da doutrina.
Francisco contrastou esse ponto de vista no fim do recente encontro sinodal (24 de outubro) com um dos seus discursos mais impressionantes até hoje. O Sínodo, disse ele, significou "testemunhar a todos que o Evangelho continua sendo para a Igreja a fonte viva de eterna novidade, contra aqueles que querem 'endoutriná-lo' em pedras mortas a serem jogadas contra os outros".
Ele disse que também significou "despojar os corações fechados que mutias vezes se escondem até mesmo por trás dos ensinamentos da Igreja ou por trás das intenções, para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas".
A heterodoxia de que o Papa Francisco está sendo acusado não é teológica. É política.
É por isso que os ataques vindos de blogueiros e especialistas conservadores não têm a ver realmente com a sua teologia, mas com as consequências sociais e políticas que o seu pontificado sinaliza para uma interpretação ideológica do catolicismo.
Parafraseando Carl von Clausewitz, o brilhante estrategista militar prussiano do início do século XIX, a "guerra civil" teológica recentemente declarada por alguns católicos tradicionalistas é apenas uma continuação da política por outros meios.
Felizmente, isso está acontecendo apenas em um espaço muito limitado no norte do Atlântico. E é um espetáculo menor à parte, naquele que é hoje o catolicismo global.
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A heterodoxia política do Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU