Por: Cesar Sanson | 19 Outubro 2015
Valores pagos pelo quilo do ferro e do papelão caem pela metade, levando os “carroceiros” a carregar mais peso por dia.
Faz alguns meses que Pablo Olivares vê a crise econômica do país estampada nas capas dos jornais que recolhe nas ruas de Pinheiros, em São Paulo, para vender em um ferro velho do bairro. Há quatro anos trabalhando na coleta de recicláveis, quando deixou o Chile para tentar a sorte no Brasil, vem sentindo os efeitos da recessão no bolso mais fortemente há três meses. Desde junho, o preço que recebe pelo quilo de papelão caiu quase pela metade, passando de 20 para 13 centavos.
A reportagem é de Ana Carolina Cortez e publicada por El País, 18-10-2015.
“Tenho que trabalhar mais horas para ganhar o mesmo que antes. Descanso menos para pagar as contas, que só subiram. O aluguel, o ônibus, a comida. Tudo está mais caro este ano”, conta. Antes da mudança de preços, conseguia receber uns 900 reais por mês com a venda de recicláveis para o ferro-velho, trabalhando oito horas por dia. Agora, a média tem sido de 600 reais, com um expediente de doze horas. “Não faço mais horas porque realmente não consigo. É um trabalho muito pesado, cansa demais”, justifica.
Geralmente, o catador trabalha de madrugada. Prefere por questões de segurança, já que o fluxo de carros nas ruas é menor e o risco de atropelamento também. Na calada da noite, evita ainda a competição de espaço com os impacientes motoristas paulistanos. “Eles xingam os carroceiros, não respeitam o nosso trabalho”, afirma. O primeiro ponto de coleta é o Terminal Pinheiros. À meia-noite desce do ônibus que vem de Rio Pequeno, da favela São Reno, onde mora, para recolher as latas de alumínio do chão e dos cestos de lixo nos arredores da estação.
“Ontem, coletei a noite toda, direto. Dormi duas horas, dentro da carroça”, diz. O fruto do trabalho, ele leva dentro de um tubinho de M&M, ao deixar o ferro-velho no começo da tarde: 70 reais. Carrega também no rosto, marcado pelo sol e pelo cansaço. O valor que recebe a cada coleta, contudo, não é fixo. No dia anterior, por exemplo, conseguiu arrecadar apenas 25 reais.
Mesmo tendo de trabalhar mais horas, o carroceiro, de 37 anos, não cogita buscar outro emprego. “Comecei pegando material reciclável por não poder arrumar um serviço com carteira, pois nem documento eu tenho. Muito difícil um gringo conseguir outro tipo de trabalho”, destaca. O chileno, de Valparaíso, explica que já se acostumou com a vida de estrangeiro e a rotina dos trabalhos manuais. Aos cinco anos, durante a ditadura militar de Augusto Pinochet, foi morar com a família nos Estados Unidos, como exilado político. Lá, desde os dez anos ajudava a complementar a renda da casa fazendo bicos e vendendo produtos nas ruas. De volta ao Chile aos 18, não conseguiu se fixar por muito tempo. “Gosto muito de viajar e já percorri quase toda a América Latina. Sou fã de música eletrônica e conheci o Brasil por meio de uma rave, em Itu”, conta. “Gosto muito daqui, das pessoas, da cultura. Gostaria de poder trabalhar um dia com registro”, complementa.
Há quatro anos no Brasil, comunicando-se com a família pelo Facebook em uma lan house perto de casa, tinha planos de voltar este ano ao Chile para matar as saudades. “Minha mãe me chamou para passar o Natal lá. Mas do jeito como as coisas vão, acho que não vai dar. Eu teria de coletar muito mais para conseguir juntar o dinheiro da passagem”, diz.
Ainda assim, está fazendo economia como pode. A comida é ele quem faz, pois mesmo o marmitex ficou mais caro nas padarias da região. “Estou cuidando melhor das minhas coisas, pois não posso comprar nada novo para substituir o que quebrar”, declara. Alguns dias na semana, tem voltado a pé para casa, percorrendo um trajeto de mais de sete quilômetros. “Não tenho ideia de quantos quilômetros eu já andei nessa vida. Acho que já dava para ter ido a pé para o Chile, várias vezes”, brinca.
Não foi apenas o preço do papelão que caiu. O quilo do ferro, que custava vinte e cinco, baixou também para 13 centavos. O de latinhas passou de 2,70 reais para 2 reais. Segundo o proprietário do ferro-velho, Geraldo Gomes, o motivo está no preço da revenda. Desde junho, por exemplo, as empresas para onde ele vende, União Comércio de Sucatas e Color Trash, reduziram o valor pago pelos recicláveis. “Antes, eu recebia quase 50 centavos pelo ferro, agora, recebo cerca de 25 centavos. Infelizmente, não consegui deixar de repassar para os catadores. Meu aluguel é de 7.000 por mês, tenho três funcionários registrados. Os custos fixos do negócio são altos, mesmo quando a receita cai”, explica.
Além deste ferro-velho em Pinheiros, ele gerencia um outro no Ceagesp. Este ano, passou para o seu cunhado a direção de seu ferro-velho da Francisco Morato. Todos praticam o mesmo preço e fornecem para as mesmas empresas. O empresário não faz ideia de quantos catadores vendem materiais para ele por dia. Somente em Pinheiros, estima que sejam mais de 40.
Fernando Baroudi, presidente da Color Trash, explica que está pagando menos ao ferro-velho pelo quilo do papelão porque também recebe menos pelo material que limpa, processa e prensa para 14 indústrias de embalagem no estado de São Paulo. Com a crise, a atividade dessas indústrias caiu, já que as pessoas estão comprando menos produtos nas lojas. Se o consumo caiu, não há motivo para produzir tanta embalagem.
"Em um ano, passei a vender uma tonelada a menos de material prensado por mês. Até a Copa de 2014, eu vendia 5,5 toneladas por mês para as indústrias de embalagem. Agora, vendo só 4,5", justifica Baroudi. Reduziu o número de funcionários, de 67 para 55 e a frota de 18 caminhões para 16. "Os custos estão mais altos também, como energia, combustível", complementa.
Por conta desse problema, o preço que paga pelo quilo de papelão e papel reciclável no ferro-velho é de 28 a 30 centavos. Há um ano, era 40 centavos. Por sua vez, os donos dos ferros-velhos repassaram a baixa para os catadores.
Mais peso e quilômetros por dia
A queda nos preços também impactou a vida de Sérgio Amâncio da Silva, paulistano que há oito anos trabalha coletando recicláveis para o ferro-velho de Pinheiros. Antes de ser catador, trabalhou com limpeza em uma empresa de serviços terceirizados, com carteira assinada. Também foi vendedor de bijuterias e de cartões da Zona Azul, na região das Clínicas. “O ‘rapa’ tomou meu material de camelô e resolvi trabalhar como catador”, conta.
Por mês, Silva arrecadava cerca de mil reais, valor que sustentava toda a sua família: a esposa e os três enteados, com quem mora no Jardim Ângela, na periferia da cidade, além de ajudar nas despesas de sua filha biológica, que mora com a mãe. Agora, seu ganho caiu pela metade. Para manter um nível parecido, precisa trabalhar mais horas e complementar com bicos. “Faço carreta. As pessoas me chamam para retirar entulhos de obras ou fazer pequenas mudanças. Faço tudo com o carrinho do ferro-velho”, afirma. Para complementar a renda, está procurando um emprego no período noturno, na área de limpeza. “Está difícil me chamarem. Aos 45 anos, sou considerado velho já”, acredita.
Recebendo menos do ferro-velho, o catador também sente dificuldades em quitar parte das dívidas que contraiu no supermercado e em lojas de eletrodomésticos e de roupas nos últimos anos. “Devo 2.500 no cartão das lojas. Só de comida gastamos 600 por mês. Está tudo mais caro, arroz, feijão, pão, energia, água. Vai ser impossível pagar tudo sem arrumar outro emprego”, diz.
O catador Gabriel Felipe Ortega, de 30 anos, também está ampliando jornada para compensar a queda na receita, num momento de alta de preços no supermercado. “Eu preciso coletar cem quilos de papelão para comprar um quilo de pão, que está custando 13 reais na padaria. Um absurdo”, afirma. “O quilo de pão está mais caro que o quilo de cobre, a sucata de maior valor no ferro-velho”, complementa.
Ortega recolhe jornais, papelão e garrafas PET nas ruas e consegue alguns recicláveis com os edifícios comerciais da redondeza, por um período de doze horas. “O que eu ganho não é fixo. Tem dia que dá 50 reais, tem dia que dá 100 reais, tem dia que dá 20 reais. Depende mais da nossa disposição, pois o que ganhamos é proporcional ao que conseguimos coletar. As horas de trabalho variam com o cansaço”, pondera.
Na profissão há dez anos, optou por trabalhar com recicláveis porque gosta de horários flexíveis e da sensação de ser o próprio chefe. Além disso, “ninguém implica com os catadores”, afirma, referindo-se à polícia. Antes de coletar materiais nas ruas, chegou a trabalhar como ambulante. Depois de ter suas mercadorias confiscadas pelo “rapa” diversas vezes, resolveu seguir para outro mercado. Mesmo com a queda nos preços da sucata Ortega não pensa em buscar outra ocupação. “Sou anarquista e não quero alimentar o sistema. Gosto de reciclagem, escolhi essa profissão, e quero fazer isso a vida toda”, repete diversas vezes durante a entrevista.
O orgulho pelo que faz ganha forma em uma de suas duas carroças. Elas, na verdade, pertencem ao ferro-velho, mas isso não o impediu de customizá-las pelo projeto “Pimp my carroça”, movimento que surgiu em 2007 e tem como objetivo exaltar o trabalho dos catadores de recicláveis e conscientizar a sociedade da importância desse agente para a economia. Grafitada com um dragão, a carroça carrega até o número do seu celular. “A carroça não é minha, mas os catadores respeitam e não pegam. É como se cada um tivesse a sua”, explica.
É comum encontrar as duas carroças estacionadas em frente à casa onde mora com os tios e a filha, de 13 anos, há poucos metros do ferro-velho, em Pinheiros. Como a casa pertence à família, há mais de 60 anos, Ortega não tem gastos com aluguel, mas já sentiu aumento nas contas de água e luz, que praticamente dobraram este ano. Para fugir da alta dos preços dos alimentos nos supermercados, o catador está pensando em retomar sua horta. “Eu prefiro plantar a comprar. Os preços estão um absurdo”, afirma.
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Catadores dobram jornada para compensar queda no preço da sucata - Instituto Humanitas Unisinos - IHU