Por: André | 14 Outubro 2015
Cidade de Iguala, Estado de Guerrero, México, noite de 26 de setembro de 2014: dezenas de estudantes são atacados por policiais e criminosos. Acontece então um dos massacres mais terríveis da história recente do país. Os jovens são sequestrados e sofrem torturas antes de serem assassinados. Os corpos são incinerados e até hoje não foram encontrados. O Estado atribui a autoria a “quadrilhas criminosas”. As famílias dos 43 estudantes desaparecidos não aceitam a versão oficial dos fatos e em todo o México espalham-se as mobilizações sob as palavras de ordem: “Vivos os levaram, vivos os queremos!” e “Foi o Estado”.
Fonte: http://bit.ly/1FTVLhP |
Alguns meses antes, em visita a Ciudad Juárez, comentei com uma amiga o quanto estava perdido na desmesurada realidade mexicana, minha incapacidade para entender quase nada do que estava acontecendo, sobretudo essa “estranha guerra” em que lá se vive e que já cobrou a vida de cerca de 100 mil pessoas entre 2007 e 2012 (a chamada “guerra contra o narcotráfico”). Minha amiga me disse: “você tem que conhecer o Sergio para saber onde está”. Ela se referia a Sergio González Rodríguez (foto), jornalista e escritor mexicano, um dos primeiros que se aproximou e tentou jogar um pouco de luz sobre os feminicídios de Ciudad Juárez.
É célebre o seu livro Ossos no deserto, em que conjuga reportagem, crônica e ensaio para tentar desentranhar a natureza dos assassinatos de Juárez. O livro inspirou o conhecido romance de Roberto Bolaño 2666 (diz-se inclusive que um dos personagens seja o próprio Sergio). Depois vieram O homem sem cabeça e Campo de guerra, ensaios sobre a violência contemporânea que encontra no México um laboratório avançado e terrível.
Na refeição que fizemos juntos, tive que ficar do lado direito de Sergio, porque é surdo do ouvido esquerdo desde que sofreu um ataque de desconhecidos, que quase o mataram, no bairro chilango da Condesa. “Mas estou vivo”, dizia. Sua capacidade de percepção não diminuiu em absoluto e assim o prova em Os 43 de Iguala, o livro que acaba de publicar, dedicado à análise do caso dos estudantes da aldeia de Ayotzinapa desaparecidos exatamente há um ano.
Falando do México, do capitalismo selvagem, da confusão entre o poder político, econômico e criminoso, do desmantelamento do conceito de soberania, da militarização e paramilitarização do país, da ilegalidade como negócio, da sociedade fragmentada e do recurso à exceção com forma de governo, Sergio não se refere em absoluto a uma anomalia ou a uma realidade à parte, mas nos descreve as tendências maiores que configuram atualmente o futuro de todos.
A reportagem e a entrevista são de Amador Fernández-Savater e publicadas pelo jornal espanhol El Diario, 25-09-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Ayotzinapa e o Estado a-legal
Completa-se um ano do massacre de Ayotzinapa e bem agora você publica Os 43 de Iguala onde diz: “devo falar do que ninguém quer falar”. De que se trata, o que é “isso” sobre o qual ninguém quer falar? Por que o silêncio, de que tipo é?
Com a frase que você cita refiro-me a um tema: a existência da barbárie entre linhas da “normalidade”; a tolerância em relação a fatos violentos aos quais se dá um estatuto habitual. Seja do lado do poder estatal ou governamental, ou do lado do contra-poder na sociedade.
Cada vez mais, as sociedades atuais tendem a silenciar os atos de abusos em todos os sentidos, os estados de exceção, a barbárie, o terror, o risco e a vulnerabilidade dos direitos, liberdades e dignidade das pessoas.
O silêncio ao qual aludo tende a estabelecer novas linhas de coexistência em todas as partes onde a polarização e as tensões sociais estabelecem uma dinâmica de adesão versus recusa taxativa de uma ou outra causa, e a reflexão racional deixa de ser importante para ser substituída pela simples emotividade de “bons contra maus”.
As mobilizações posteriores ao massacre de Ayotzinapa assinalaram: “Foi o Estado”, deslegitimando a versão oficial que, perante cada abuso, diz: “trata-se de quadrilhas criminosas”. Você concorda com essa posição? Qual é a sua interpretação do papel do Estado no massacre?
Minha postura é que se deve investigar a fundo a responsabilidade do Estado e dos governos mexicanos em relação ao massacre de Iguala. Com a informação disponível neste momento, postulo que o Estado mexicano é o suposto responsável por crimes de lesa humanidade por omissão naquela noite. A participação ativa de policiais e militares deve ser indagada, desde já. Tanto o governo local, como o estadual e o municipal, têm responsabilidade, e a investigação deve precisar os detalhes no meio.
Também estou convencido de que o governo dos Estados Unidos é corresponsável por manter dois mercados de grande impacto a partir do México e, em especial, em Guerrero: das drogas e das armas. Recuso por completo a versão do governo que diz que o que aconteceu em Iguala é uma mera questão de drogas e criminalidade. No meu livro me permito analisar o político e o geopolítico que surge daqueles fatos.
A figura de Abarca, o ex-prefeito de Iguala, parece-me muito chamativa porque condensa a fusão e confusão entre poder político, econômico e criminoso que, na sua opinião, está devastando o país. Poderia falar sobre essa figura e, através disso, dessa imbricação e entrelaçamento entre estes diferentes poderes no México?
A figura deste indivíduo, sua esposa e a trama de corrupção que ele ostenta oferece outro episódio a mais, já não apenas da corrupção mexicana, mas de procedimentos perversos do exercício da política. Por exemplo, empregar criminosos em tarefas policiais, obter o apoio de forças políticas, econômicas e partidárias apesar de terem péssimos antecedentes, substituir a legalidade através de arranjos de alto nível, simular um respeito à lei, funcionar, em suma, por desfuncionalidades. É o que chamo de Estado a-legal. São procedimentos estruturados que unem o legal e o ilegal.
Uma parte muito sensível em seu livro é aquela relativa aos 43 estudantes assassinados. Você faz ali um alerta. Apresenta-os como vítimas também de seus próprios líderes, sacrificados utilitariamente em um altar ideológico. É uma parte muito polêmica, me parece, que gostaria de entender melhor. Os 43 não eram autônomos, eram “manipulados”? A que se refere?
Os estudantes massacrados em Iguala puderam assistir por convicção a esse dia que seria trágico pelo excesso de violência institucional em colusão com criminosos que se viu nessa noite, mas estavam sujeitos ao controle disciplinar de seus líderes.
Não deve passar despercebido o fato de que estes os expuseram a atividades de alto risco: rapazes armados com paus e pedras e aos gritos contra forças armadas e policiais munidos de armas de fogo, equipamentos e adestramento para reprimir.
Negar esse fato seria uma ofensa aos desaparecidos e suas famílias. Os líderes dos rapazes se resguardaram atrás dos familiares das vítimas: devem explicar seu papel nessa maldita noite. Quanto ao demais, a direção da instituição educativa deveria garantir a integridade física dos alunos.
México, An-Estado e campo de guerra
Em outro livro seu utiliza o conceito de An-Estado. De que se trata? Como funciona o An-Estado no México?
O An-Estado é um Estado a-legal, como o mexicano (mas isto não é exclusividade do México): funciona por suas desfuncionalidades, está fora e é contra (é isso que significa o prefixo “a”) a legalidade e simula respeitar a lei.
Com outras palavras, não cumpre apenas fórmulas de exceção ou quebra de normas, mas as inclui e chega a invertê-las: por exemplo, suas relações com o crime organizado, que pode ser um instrumento de governabilidade ou de apoio (mediante contribuições financeiras) dentro da ordem constituída.
Neste tipo de Estado, o governo pode ser substituído por práticas comunicativas de controle de danos, propaganda e campanhas de contra-informação em vez de atender a problemas concretos. Em um An-Estado a democracia é formal, não substancial, e se reproduz a partir de uma classe política cada vez mais alheia à sociedade.
Fonte: http://bit.ly/1FTVLhP |
O México é um “campo de guerra”, você diz. Poderia nos explicar o conceito e a realidade que nomeia? Qual é o papel dos Estados Unidos nesse “campo de guerra”? Esse papel sofreu modificações desde as décadas de 1970 ou 1980?
O México é um campo de guerra desde que o governo de Felipe Calderón Hinojosa decidiu desencadear, com o patrocínio dos Estados Unidos, uma guerra contra o narcotráfico (2007-2012); as Forças Armadas do país foram entregues a tarefas de polícia (um ato inconstitucional, como mostrou o ministro da Suprema Corte de Justiça, José Ramón Cossío Díaz).
Há localidades, zonas, trajetos, tomados, de forma temporária ou permanente, pelo crime organizado; o país mantém um índice de impunidade de todos e cada um dos crimes que se cometem de 98% a 99%. Por essa razão, os cidadãos são vítimas reais ou potenciais dos abusos das Forças Armadas, das polícias, do crime organizado ou do crime comum.
Os fatores anteriores indicam uma situação que ultrapassa a violência do Estado de décadas anteriores. Os Estados Unidos são corresponsáveis pela degradação institucional no México, pois o estado de guerra descrito é fruto direto do Acordo para a Segurança e Prosperidade da América do Norte (ASPAN 2005). A soberania do país foi entregue aos interesses estadunidenses.
Uma revolução das mentes
Onde você coloca suas esperanças neste momento no México, Sergio?
No conhecimento, na informação, na reflexão, na clareza, em uma revolução das mentes que possa sentar as bases práticas para deixar para trás as atuais imposições do sistema de mundo. Devemos repensar de forma integral a realidade e propor novos entendimentos a respeito.
Quanto às demandas específicas das famílias das vítimas, são razoáveis e seu cumprimento seria encorajador. A recente relação petitória de oito pontos proposta por estas famílias ao governo de Enrique Peña Nieto deve ser aceita. E será preciso evitar que o governo postergue a investigação judicial devida para favorecer ações supletivas de tipo burocrático ou comunicativo.
Minha impressão, às vezes, lendo-o, Sergio, é que você descreve um mundo cada vez mais fragmentado onde “tudo são quadrilhas” (inclusive o Estado e a esquerda em muitos casos). É a derrocada do Estado de Direito. Pensa que se trataria de (r)estabelecer um Estado de Direito no México? Há opções políticas, como o EZLN, que parecem esquecer dessa “missão impossível” e dedicam seus esforços para a construção de espaços de justiça, solidariedade e autonomia. Tratar-se-ia então, na sua opinião, de restabelecer a simetria no campo de guerra (o Estado de Direito) ou de constituir-se nele como força assimétrica emancipadora?
A fragmentação assinalada refere-se a determinadas partes do país; em outras, mantém-se certa inércia de unidade através do clientelismo partidário-eleitoral, através de sindicatos como o dos professores (que inclui grandes porções dissidentes), através do impacto coletivo dos meios de comunicação de massa, através de boa parte da população que trabalha e mantém um respeito parcial, mas concreto, pela lei e pela convivência.
O Estado de direito deve ser restabelecido porque, de outro modo, as instituições se degradarão cada vez mais. A aceleração da decadência atual só reafirmará o poder constituído. O surgimento de um contrapoder assimétrico que defenda de verdade valores de igualdade, justiça e solidariedade é desejável, mas no entendimento atual das coisas políticas no México é uma possibilidade difícil de ser realizada no curto prazo: a esquerda oferece mais ditos do que fatos neste sentido.
Muito mais árduo seria consumar a hipótese de Giorgio Agamben sobre o poder destituinte que deponha para sempre a lei e não possa ser capturado na espiral da segurança. O ontopoder imposto pelos Estados Unidos ao planeta desde o dia 11 de setembro de 2001 implica uma mudança de civilização que temos que compreender em toda a sua terrível magnitude para poder oferecer teorias e práticas em defesa de uma nova forma de vida mais eficientes do que a insurreição convencional.
O que propõe em concreto para esse restabelecimento do Estado de Direito?
De um tempo para cá, sugiro o seguinte: 1. Retirar o Exército e a Marinha de sua função de polícia da segurança pública, ao mesmo tempo que se fortaleçam e renovem os corpos policiais; 2. Controlar o fluxo e a posse de armas ilícitas no país, e desarmar os grupos criminosos; 3. Estabelecer um plano de desenvolvimento para as localidades, zonas e entidades com os maiores índices de violência, com a finalidade de reduzir a pobreza, a desigualdade, a violência e os crimes, e regularizar serviços eficazes de saúde, emprego, moradia, transporte, educação, cultura, etc.; 4. Requerem-se mais investimentos no setor da produção, e menos gastos em armas. Infelizmente, o atual governo gastou em três anos 3,5 bilhões de dólares em armamentos, tudo para satisfazer os protocolos do ASPAN e a “segurança nacional” dos Estados Unidos, sua doutrina emergente que iguala o terrorismo ao tráfico de drogas e à contra-insurgência.
Há uma pensadora e ativista mexicana, Raquel Gutiérrez, que fala que a dominação no México é exercida através de uma “opacidade estratégica”. É impossível entender o que acontece, se os policiais são sicários ou se os sicários são policiais. Que força acredita que tem a escrita contra essa opacidade? Como pensa aí sua função?
Sem dúvida, é interessante o conceito de “opacidade estratégica”, mas me parece que reproduz a terminologia bélica da doutrina militar estadunidense, que se refere à “bruma e fricção” da guerra. Como mostro nos meus livros, basta aprofundar o exame dos fatos para descobrir sua evidência ofensiva, sua clareza perversa. E mesmo que em um primeiro momento possamos nos confundir sobre o verdadeiro estatuto do policial, que é um criminoso, ou vice-versa, o mecanismo que o possibilita pode ser desarmado pela observação, pela denúncia, pela insistência política e pela crítica.
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México, campo de guerra: entrevista com Sergio González Rodríguez um ano após o massacre de Ayotzinapa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU