06 Outubro 2015
Para o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser Pereira, maioria dos economistas subestima o papel do câmbio, que seria fundamental para explicar o quadro de semi-estagnação brasileira dos últimos 35 anos.
A entrevista é de Glauco Faria e Renato Rovai, publicado por Portal Fórum, 03-10-2015.
O Brasil vive, já há algum tempo, um cenário de sobre apreciação cambial, não tão grave quanto o de muitos países exportadores de petróleo que padecem da chamada “doença holandesa”, mas suficiente para prejudicar investimentos na indústria nacional. Isso justificaria, inclusive, a redução da participação desse setor na economia brasileira nas últimas décadas.
Esse é o diagnóstico de Luiz Carlos Bresser-Pereira, economista, professor titular da Fundação Getúlio Vargas de são Paulo (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda no governo Sarney (1987). “O motivo principal pelo qual a economia brasileira está semi-estagnada desde 1990 é uma taxa de câmbio apreciada a longo prazo”, sustenta. “Agora não é uma crise tão grave porque os credores internacionais continuam emprestando para o Brasil, quando em 1998 pararam. Internamente houve um desarranjo maior, mas externamente não”, avalia.
Na entrevista a seguir, ele fala a respeito do câmbio, de questões como a macroeconomia, o Novo Desenvolvimentismo e defende a pertinência de um ajuste fiscal, avaliando que houve um desarranjo a partir de meados de 2013. No entanto, isso seria algo circunstancial e o problema fiscal não seria algo estrutural que impedisse o desenvolvimento brasileiro. “Se continuarmos acreditando que todo problema do Brasil é controlar o déficit público que o resto o mercado cuida, o Brasil vai ficar semi-estagnado por mais 30 anos.”
Eis a entrevista.
Nós vimos algumas análises suas acerca do cenário econômico brasileiro e gostaríamos de saber se o senhor considera o panorama atual fruto de um problema conjuntural, estrutural ou uma combinação dos dois.
O problema agora é conjuntural. Foi uma queda violenta nos investimentos, com uma recessão associada à queda dos preços das commodities, à Petrobras, ao fato de que as famílias tinham se endividado muito no governo Lula e aí terminou essa passagem de endividamento delas, à crise fiscal e à crise de confiança na Dilma, relacionada a outros motivos de ordem ideológica.
No começo deste ano de 2015 descobriu-se um grande déficit primário, quando o Brasil vinha tendo superávits primários razoáveis até 2013. Configurou-se uma crise fiscal, que não é uma coisa tão violenta assim, significa que está aumentando a dívida pública em relação ao PIB, chegando a 70%, mas o Brasil em 2002 chegou a 80% de dívida pública
Alguns países europeus têm quase o dobro disso.
A Itália é 110%, 120%; o Japão é mais de 200%. Mas não podemos fazer a comparação direta. O correto é construir um índice multiplicando a dívida pelo juro, colocando quanto o país tem que pagar de juros todo ano para manter a dívida no mesmo nível. E como a taxa de juros é muitíssimo mais alta no Brasil do que, por exemplo, na Itália, você vê que o peso fiscal é preocupante. É preocupante pra quem? Para quem empresta para o Estado, pros rentistas. É fato concreto que o sistema financeiro e os rentistas são muito poderosos no Brasil, e aumentaram o seu poder substancialmente nesse momento.
Isso está associado também ao fato de que os brasileiros, graças a Deus, entenderam que responsabilidade fiscal é uma coisa boa. Quando fui ministro da Fazenda, cheguei dizendo que ia fazer um ajuste fiscal, a inflação estava 16% ao mês, era o colapso do Plano Cruzado, e tinha a bancada econômica do PMDB, que era o meu partido e dominava totalmente a Câmara, e eles disseram “de jeito nenhum, nós não concordamos”, e fiquei sabendo em seguida que estavam organizando a minha expulsão da legenda. Porque esse era o clima que havia no Brasil, fortemente populista, falar com o FMI estava proibido. Claro que fiz meu ajuste e falei com o FMI, mas o fato é que havia uma ideia de keynesianismo no Brasil absolutamente equivocada e vulgar que levava a isso. Hoje está limitado a uma parte da esquerda, já se sabe que responsabilidade fiscal é importante. O fato de Dilma ter sido irresponsável fiscalmente apenas no último ano e meio do governo dela, a partir de meados de 2013.
Depois das grandes manifestações, houve um susto…
Isso. Não sei por que razão, mas sempre falo de outro susto, da publicação do PIB de 2013, que deu 0,9% e a oposição começou a falar de “pibinho”. Foi uma grande decepção para a Dilma, uma queda forte do crescimento. E quando isso aconteceu ela resolveu fazer o que o desenvolvimentismo populista receita, já que ele resolve o problema de duas formas: uma é expandindo a despesa pública e a outra é fazendo política industrial.
A crise é conjuntural porque essas coisas todas que citei são conjunturais, o que é estrutural é que o Brasil é um país semi-estagnado desde 1980 por uma razão, e desde 1990 por outra razão. O fato concreto é que nos últimos 35 anos o Brasil tem crescido menos de 1% per capita, enquanto crescia 4,1% per capita entre 1960 e 1980, e uns 3% per capita entre 1930 e 1980. Essa crise de longo prazo tem duas causas. Primeiro, nos anos 1980 a economia brasileira e de toda a América Latina ficou estagnada, não houve crescimento per capita, há até queda. Isso se deveu aqui a um grande endividamento externo feito no governo Geisel, ou seja, a política de crescimento com poupança externa, essa maravilha do século… Daí deu-se uma crise da dívida externa e ela se somou à alta inflação porque foram feitas depreciações e a economia brasileira estava toda indexada desde 1964. Essas duas coisas, crise financeira e alta inflação explicam a estagflação dos anos 1980. Tem a explicação falsa, no meu entender, de que se esgotou o modelo de substituição de importações. É a explicação neoliberal, esgotou-se, se é que um dia existiu, e o Estado estava totalmente errado. Na verdade, o Brasil tinha abandonado o modelo de substituição de importações com a crise dos anos 1960 e em 1967, com o Delfim [Netto] começa o modelo desenvolvimentista de exportação de manufaturados, que em 1965 eram 6% do total de exportações e em 1990, no seu máximo, chegam a 62%, Uma coisa explosiva, foi uma neutralização da doença holandesa que tornou nossa indústria competitiva e ela exportou enormemente. Depois caiu e hoje está perto de 30%.
Essas duas causas, crise financeira e alta inflação. Uma se resolveu com o Plano Brady, que fui eu que propus, e outra foi com o Plano Real, que neutralizou a inércia e acabou com a inflação. Ali, eu estava certo de que o país iria crescer enormemente e entrei no governo Fernando Henrique, sou amigo dele desde os anos 1970, e verifiquei que o Brasil novamente não crescia, e não cresce desde então a não ser em cinco anos do boom de commodities do governo Lula. Tirando esse período, o crescimento médio desde 1990 é de 0,7% do PIB. E agora vai piorar.
E a segunda causa, por que o Brasil não cresceu depois de 1994? Em 1990 o país fez uma abertura comercial e fui a favor porque entendia que a indústria brasileira não era mais infante. Quando ela é infante existe o argumento de que essa indústria precisa ser protegida, um argumento de [Alexander] Hamilton, um dos grandes pais da pátria americana, que foi ministro do Tesouro com George Washington. Se o Brasil tinha uma indústria competitiva, precisava competir. Tinha 45% de tarifas de importação e 45% em média de subsídio à exportação de manufaturados desde 1967, com o Delfim. Não era razoável.
O processo de abertura foi concluído no governo Collor, mas o que nem eu nem ninguém sabia é que nesse regime comercial estava embutida a neutralização da doença holandesa. Isso significa que dentro daquele mecanismo se eliminava uma desvantagem competitiva para as empresas brasileiras que eu estimo ser em torno de 15%. Quando se tem uma desvantagem desse tamanho, sua indústria está morta. A indústria que estava em crise desde os anos 1980, mas por conta da crise financeira e não por uma razão estrutural, agora tinha uma desvantagem competitiva muito grande, as tarifas de importação caíram para 12% em média, na indústria automobilística ficou menor ainda, em torno de 8%, e com isso não havia condições nem de exportar. A exportação de manufaturados caiu violentamente, e nem existia o apoio do mercado interno.
Como funcionava essa neutralização da doença holandesa?
Bresser-Pereira – O que é a doença holandesa? É uma sobreapreciação de longo prazo da taxa de câmbio de um país exportador de commodities e estas, que se beneficiam de rendas ricardianas, podem ser exportadas com lucro. Há uma taxa de câmbio substancialmente mais apreciada do que a necessária para as demais empresas produtoras de bens tradables, comercializáveis, que utilizam tecnologia no estado da arte mundial, sejam competitivas – esse é um conceito criado por mim.
Isso significa que um país com a doença holandesa tem dois equilíbrios de taxa de câmbio. Um é o corrente, a taxa que equilibra a taxa de câmbio do país, intertemporalmente, e outro o equilíbrio industrial, que é diferente, necessário para que as empresas sejam competitivas. Essa é a doença holandesa e a causa disso é que os recursos naturais abundantes e baratos permitem ter esse diferencial. No caso dos países exportadores de petróleo cujo custo de exploração é baixo, a doença holandesa é imensa: Arábia Saudita, Venezuela – nem tanto –, Emirados Árabes…
No caso do Brasil a coisa não é muito grave, é 15%, mas é suficiente para inviabilizar a indústria. Quando comecei a desenvolver esse modelo, parei na metade porque pensei: os economistas brasileiros que administraram a economia brasileira até hoje não sabiam disso e o país teve esse enorme desenvolvimento, como isso aconteceu? Daí caiu a ficha, era o que fazíamos em termos de taxas de câmbio múltiplas e a partir de 1967, que chamo de modelo Delfim Netto de neutralização da doença holandesa… Porque o que neutraliza a doença holandesa é o imposto sobre a exportação da commoditie.
Vamos supor que o Brasil só exporte soja. E que a taxa de câmbio de equilíbrio hoje seja o dólar a R$ 3,60, número que temos hoje, que o Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo chegou, e suponhamos que a taxa de câmbio de equilíbrio corrente, que torna competitiva a soja no país, seja de R$ 2,80. Há uma diferença de 80 centavos. 80 centavos é a doença holandesa, a sobreapreciação. Se eu colocar um imposto, o que acontece? Pelo processo de mercado, que é quase automático, a taxa de câmbio se deprecia, vai a R$ 3,60 e a doença holandesa está neutralizada, sem custo nenhum para o sojeiro. Ele pagou 80 centavos de imposto e recebeu 80 centavos de depreciação.
O problema todo é quem pagou. Quem pagou esse imposto? Todos nós. Na hora que você deprecia, sua moeda fica mais pobre. Todas as mercadorias, menos os serviços internos, têm um preço internacional, dominante, que sobe em reais. E é por isso que as pessoas resistem a manter a taxa de câmbio no lugar certo. Uma taxa de câmbio apreciada é muito agradável. Mas você vai crescer pouco e pular de crise em crise financeira.
Naqueles 45% de taxa de importação mais 45% de subsídios à exportação antes da abertura comercial existia um imposto embutido de 30% sobre a venda ou 45% sobre o custo, o que era demais. O fato é que a indústria se tornou altamente competitiva entre 1967 e 1980, até com sobras. Estava vendo um artigo no Valor do Naércio Menezes, especializado em Educação, muito competente – conservador, mas isso não importa. Ele faz uma comparação entre Brasil e Coreia do Sul e mostra como tanto um quanto o outro aumentaram fortemente seus resultados em termos de educação, mas a produtividade no Brasil só aumentou em entre 1965 e 1980, enquanto a produtividade da Coreia aumenta o tempo todo. Por que? São essas duas causas, uma é a crise financeira de 1980, que durou dez anos, somada à alta inflação inercial, e outra que é uma desvantagem competitiva decisiva para a indústria brasileira que se estabeleceu naquela época e vai continuar. Veja, agora a taxa de câmbio foi para o lugar certo, até sobrou.
Tudo isso que estou contando faz parte de uma coisa chamada Novo Desenvolvimentismo. Foi o nome que acabou ficando, uma série de ideias que venho desenvolvendo desde 2001 e que foram sistematizadas em papers e livros. O primeiro livro, publicado em 2007, foi o Macroeconomia da Estagnação, só que em 2007 o Brasil entrava no boom de commodities, de forma que quando foi lançado acharam que eu estava louco. Depois veio Globalização e Competição e Macroeconomia Desenvolvimentista, com José Luis Oreiro e Nelson Marconi.
Nessa teoria, a ideia fundamental é que existe uma tendência à sobreapreciação cíclica e crônica da taxa de câmbio. Essa é a grande novidade. O que quer dizer isso? Os desenvolvimentistas clássicos com os quais aprendi, como [Raúl] Prebisch e [Celso] Furtado, diziam que havia uma tendência à deterioração dos termos de troca. No caso concreto, esse câmbio atual vai baixar, está elevado por conta da crise e da queda dos preços das commodities.
O motivo principal pelo qual a economia brasileira está semi-estagnada desde 1990 é uma taxa de câmbio apreciada a longo prazo, que se depreciou em 1999 e mais ainda em 2002, as duas crises financeiras do Fernando Henrique, e depois subiu. Agora não é uma crise tão grave porque os credores internacionais continuam emprestando para o Brasil, quando em 1998 pararam. Internamente houve um desarranjo maior, mas externamente não.
O câmbio hoje…
Está excessivamente apreciado, para mim R$ 3,60 é o suficiente, o equilíbrio industrial. É a commoditie que determina a taxa de câmbio, que é o preço mais baixo. Em um país exportador de commodities como é o Brasil hoje, é quem determina. Por que a maioria dos economistas esquece do câmbio? Porque é dado pelo mercado, se ajusta… Mas quando digo que o câmbio pode ficar apreciado a longo prazo, muda tudo. Quando o empresário do setor industrial vai decidir sobre seu investimento, qual a taxa de câmbio que ele vai considerar? Se ele fizer as contas levando em conta a taxa de equilíbrio, pode chegar à conclusão de que não vale a pena investir, porque não consegue vender.
Costumo dizer o seguinte: o crescimento depende do investimento, todo mundo está de acordo. Investimento depende da taxa de lucro esperada menos a taxa de juros. Daí veio o [John Maynard] Keynes disse: espera lá, a taxa de lucro esperada depende da demanda agregada, porque existe uma tendência à insuficiência de demanda. Vem o Novo Desenvolvimentismo e diz que o acesso à demanda agregada depende da taxa de câmbio, porque este acesso não está garantido nos países em desenvolvimento que têm doença holandesa. Não só por causa dela, também por outros fatores.
Por que o nome doença holandesa?
Porque os holandeses, nos anos 1960, descobriram gás de petróleo em seu território e começaram a produziram e exportar. Então perceberam que sua taxa de câmbio começou a apreciar, um problema grave que iria matar toda a indústria com aquilo. Em 1973, o The Economist contando o que aconteceu estabeleceu essa denominação.
Aqui se falou muito a respeito quando se descobriu o pré-sal.
Comecei a falar de doença holandesa em 2005, na Folha. Demorei três ou quatro para publicar o meu paper sobre isso. Daí veio o governo, a resposta do Guido Mantega, dizendo que o Brasil não tinha doença holandesa. É meu amigo, não vou discutir com ele… E veio o pré-sal, estava na mídia o assunto e então veio o governo e disse “agora tem doença holandesa”. E que precisava mudar o marco regulatório do petróleo. Pensei “que maravilha, os meus amigos no governo descobriram a doença holandesa e vão neutralizá-la”.
Estava a favor da mudança do marco. Alguns anos depois descobri que no marco regulatório do petróleo não há o imposto, só se preocupavam com o fundo soberano, que nem se formou na prática. E o fundo soberano não neutraliza a doença holandesa. O fato é que o governo não sabia o que é a doença holandesa, pouquíssimos economistas sabem. Todos sabem que existe, mas o meu modelo foi o segundo modelo.
Vivemos algo semelhante hoje ao que o país viveu entre 1980 e 1994. Naquele período havia uma alta inflação, que se media ao mês. E por que não acabava? Uma parte porque o povo brasileiro não queria arcar com os custos, mas também porque os economistas não sabiam que inflação era aquela, era uma inflação inercial, e o conceito não existia ainda. Era muito difícil discutir. Estamos com esse problema desde 1990, e existe a crise em cima de um quadro de semi-estagnação. Se tivéssemos a crise com um cenário de crescimento de 3%, 4% ao ano, era outra coisa, seria como está acontecendo com outros países da América Latina.
O senhor faz muitas críticas à condução da economia nos governos FHC, Lula e Dilma, mas faz um interregno em relação ao governo Itamar, que implantou o Plano Real. Por que o plano, ao fim, não possibilitou que o Brasil obtivesse o crescimento que muitos projetavam à época?
Respeito todos esses, o único que não respeito é o Collor. Um deles é meu amigo, mas gosto de lembrar do Itamar. Porque era um político da melhor qualidade. Um político republicano, lutava pelas ideias dele e a imprensa e o establishment brasileiro o gozou nos dois anos em que governou o Brasil. Mas a verdade é que ele tinha um problema fundamental que era a inflação e no seu quarto ministro da Fazenda, o Fernando Henrique, deu certo, porque ele tinha essa equipe que entendia o que era a inflação inercial. A sociedade brasileira estava disposta a aceitar qualquer coisa, e afinal o custo foi pequeno.
Mas também houve um movimento internacional que debelou o processo inflacionário em diversos países latino-americanos ao mesmo tempo.
De duas, uma, ou entendo que foi o liberalismo econômico que causou a estabilidade, o que não acho, porque o FMI e o Banco Mundial não tinham a menor ideia de como neutralizava a inflação, ou acho que foi coisa nossa.
Mas não foi só aqui que houve essa estabilização.
Não, mas o único país que teve uma inflação desse tamanho foi o Brasil. A Argentina teve hiperinflação em 1989 e em 2001, mas longa desse tipo não. Os outros também não. As taxas de inflação baixaram, sem dúvida. Sou um desenvolvimentista, mas tenho que infelizmente reconhecer que os populistas desenvolvimentistas são muitos. Populistas do ponto de vista econômico. Populistas do ponto de vista político são aqueles que conseguem fazer uma ponte direta com o povo sem a intermediação de partidos políticos ou ideologias. Isso não é ruim porque acontece no começo do desenvolvimento de um país e é a primeira forma pela qual o povo participa da política. Isso foi o Getúlio Vargas, o maior estadista brasileiro do século 20. Mas o populismo econômico sempre é ruim, é gastar mais do que arrecada irresponsavelmente. E divide-se em dois: o populismo fiscal, o Estado gastar mais do que arrecada, mas o outro, que todos insistem em ignorar, inclusive os ortodoxos, é o populismo cambial, é o Estado-Nação, país como um todo, gastar mais do que arrecada. O primeiro dá déficit público alto, e o segundo dá déficit em conta corrente alto.
Muitos desenvolvimentistas, acham que resolvem todos os problemas com expansão fiscal, e acham que se acertar o câmbio reduz salários. Já os neoclássicos raramente são populistas fiscais, mas são sempre populistas cambiais, porque acreditam piamente que os déficits em conta corrente significam poupança externa, que somada à poupança interna vai fazer o investimento vai crescer. O que é um equívoco verificado empiricamente. Ou então tem uma austeridade excessiva. Se você for ver todos os economistas ortodoxos brasileiros, não há uma crítica ao câmbio ou ao déficit em conta corrente. Nós tivemos este ano passado 4,6% de déficit em conta corrente. Poupança externa? É tudo consumo.
Todo esse Novo Desenvolvimentismo do ponto de vista econômico tem dois modelos fundamentais, um é o que versa sobre a doença holandesa, que expliquei rapidamente para vocês, e o outro é o da crítica ao crescimento com poupança externa. Este diz que, contabilmente, poupança externa é déficit em conta corrente, por definição, e poupança externa mais poupança interna é igual a poupança total e poupança total é igual a investimento. Isso é contabilidade, não economia. Se eu entrar em déficit em conta corrente, foi o que pensou Fernando Henrique em 1995, vou aumentar o investimento e o Brasil vai crescer lindamente. O Brasil tinha zero praticamente de conta corrente em 1994 e em 1999 o Brasil tinha entrado em 4,7% de déficit, parecido com o de hoje. E quanto aumentou o investimento naquele período? Zero. Era 17% em 1994 e 17% em 1999. Quando deveria ser 17% mais 4,7%, se fosse essa história de somar. Não era.
E por que não era? Porque quando entra o dinheiro, o câmbio aprecia. Quando se tem um déficit de conta corrente de 4,6%, antes da crise, significa que se tem um câmbio muito apreciado. Fui ver em julho do ano passado e o dólar estava em R$ 2,30. Com o câmbio apreciado, você desestimula o investimento e a poupança final cai. Isso é Keynes. A pressão da taxa de câmbio aumenta salários e outros rendimentos, você gasta mais em consumo, a poupança interna diminuiu e a externa substitui a externa. Não precisa ser 100%. Depois do período entre 1967 e 1993 desnacionalizamos nossa indústria, pagamos uma fortuna em dividendos e juros para o exterior, sem ter havido nenhum crescimento adicional brasileiro. Pelo contrário. Estou convencido que essas empresas, no final das contas – não por causa delas, não sou contra investimento direto estrangeiro, sou contra déficit em conta corrente – prejudicaram o Brasil.
Essa teoria vai chegar a uma conclusão contraintuitiva. Vai dizer que como a doença holandesa no Brasil é pequena, deveria ter um pequeno superávit em conta corrente para ter um crescimento ideal.
Qual o crescimento ideal?
Isso ninguém sabe, hoje entre 4% e 5% estaria ótimo, até porque a população está crescendo menos de 1%. Isso é contraintuitivo. Por que todo mundo pensa que é natural que países ricos em capital transfiram seus recursos para países pobres em capital? Esta é a forma pela qual o imperialismo moderno age no plano econômico. No plano político continua sendo na base da mudança de regime. Mas no plano econômico busca nos persuadir que devemos ter um déficit em conta corrente, que não nos leve a quebrar, compatível com a estabilidade da dívida pública.
Por que o país tem que ter superávit? Tem dois motivos. A crítica ao modelo de crescimento com poupança externa mostra que ela substitui a interna, não vale a pena. Mas há outro argumento. O superávit é fundamental porque significa uma taxa de câmbio competitiva. Quem determina quem, é a taxa de câmbio que determina o déficit em conta corrente ou o contrário? Depende. Se for feita uma política de forte estímulo de entrada de capitais, a taxa de câmbio se aprecia e isso aumenta o déficit em conta corrente. Mas pode ser o contrário. O governo Fernando Henrique colocou como política crescer baseado na poupança externa, gastando bastante, e levou o país à crise porque o câmbio se apreciou fortemente e as exportações caíram.
Hoje, se a taxa de câmbio ficar nesse nível, teremos um superávit em conta corrente. Se durasse alguns anos significaria que a indústria voltaria ser competitiva, voltaria a exportar. Mas é o mercado que determinou.
E que tipo de defesa interna poderia ser executada par trazer o câmbio a esse patamar ideal? O imposto que o senhor citou sobre as commodities?
Se estivesse no governo aproveitava e estabelecia esse imposto hoje. Seria um imposto de alíquota zero. Durante anos tenho brigado por esse imposto e as pessoas não querem saber. Tenho um grande amigo, que é o Fernão Bracher, banqueiro, e ele diz que isso não dá certo, não passa, não adianta insistir. Mas um dia desses, conversando com o José Luis Oreiro, encontrei uma solução. Na lei que criar o imposto, se coloca para cada commoditie sobre qual vai ter o imposto uma tabela dizendo que para tais preços internacionais qual será o imposto.Evidentemente quando chegar a um preço muito baixo da soja ou do minério de ferro, o imposto zera. O Marcos Jank, economista e colunista da Folha, identificado com o agribusiness e sobrinho do Fernão, quando falei do tema escreveu um paper falando da “falácia da doença holandesa”. Mas há uns três anos o encontrei e falei do imposto, ele respondeu: “tá bom, mas não confiamos no governo”. Se é esse o problema coloco na lei e resolvo.
Falando da crise industrial atual, ela não é só brasileira, há uma diminuição do setor em vários países.
Nos anos 2000 os países da América Latina bombaram por causa do boom de commodities. Mas o único que neutraliza a doença holandesa pela metade é a Argentina, que tem a retenção, a Cristina [Kirchner] tentou fazê-lo variável mas não conseguiu. Por que a Argentina, que tem um imposto sobre exportação, teve seu crescimento reduzido? A retenção foi feita durante a crise por motivos fiscais, não por causa da doença holandesa, e chega 2007 e o país começa a ter problemas, vem a crise de 2008 e o crescimento argentino volta a ser modesto.
O que aconteceu? Quando se faz modelos econômicos, são previstos comportamentos dos agentes econômicos. Os policy makers, em países de desenvolvimento, exceto no Leste Asíático, vão adotar três políticas. Uma é a política de crescimento com poupança externa que, já discuti com vocês. Outra é relacionada a essa, mas que é bom separar, que é a política de altos juros, porque quer atrair capitais e, dizem, também para combater inflação. E a terceira é a política de âncora cambial, utilizar o câmbio para segurar a inflação. Esse gênio da economia nacional Henrique Meirelles segurou a inflação durante oito anos graças a uma apreciação cambial brutal.
Foi este comportamento de um populismo cambial violento, praticado pelos economistas ortodoxos do Banco Central, que o Lula aceitou. O Guido [Mantega] até tentou segurar, mas a gente sabe que ele não tinha forças. Seu grande momento foi quando fez o imposto sobre controle de capitais, um momento de coragem, e deu certo naquele momento, mas precisava muito mais para enfrentar a tendência de apreciação da taxa de câmbio.
Essa apreciação cambial, e ninguém está falando isso, deixou para Dilma rigorosamente uma missão impossível. A não ser que ela fosse o Tom Cruise… Se ela quisesse fazer a retomada do crescimento da economia, tinha que baixar os juros – o que fez com sucesso – e precisava depreciar o câmbio em 50%. Ela depreciou 20%, mas precisava de mais de 50% e não tinha força política para fazer uma coisa dessas, tinha a oposição de todo o estabilishment, mas também de todo o desenvolvimentismo populista, que dizia que ela não podia mexer no câmbio.
Mas alguns desenvolvimentistas defendiam a alteração no câmbio. E ela fez mais, diminuiu o custo da energia, o que para eles produziria o reinvestimento. O Brasil possui um setor industrial de fato ou parte dele já se tornou rentista?
Antes, só para concluir o raciocínio anterior, o governo achou que o problema estava resolvido e que tinha mudado a matriz macroeconômica. Nunca conversei com o Guido nem com o Márcio Holland [ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda], o que queriam dizer com isso. Mas acho que estavam pensando nos cinco preços macroeconômicos, que tendem a ser errados, de acordo com o desenvolvimentismo, e que seria necessário haver uma política macroeconômica para corrigi-los. Assim, a taxa de câmbio tende a ser apreciada; a de lucros tende a ser baixa demais, então não tem investimentos; a taxa de juros tende a ser alta demais; a de salários tende a ser artificialmente alta enquanto o câmbio estiver apreciado e, finalmente, a taxa de inflação deve estar abaixo de dois dígitos. Isso dá uma matriz macroeconômica. Quando baixaram os juros e depreciaram o câmbio em 20%, acharam que estava resolvido o assunto. Não estava porque era necessário mais, o que impediu que os empresários investissem.
Mas mesmo com as taxas de juros baixas e o custo da energia reduzido o capitalismo industrial brasileiro não investiu…
Porque o câmbio continuava muito apreciado.
Mas não tem uma parte da burguesia industrial que se tornou ou maquilador ou está fortemente financeirizada?
A produção industrial brasileira chegou ao máximo de participação do PIB nos anos 1980 e ao máximo na participação das exportações em 1990. Depois disso, só queda. A participação no PIB, que já chegou a 28%, está hoje em 9,1%. O que aconteceu com a indústria brasileira? Se vocês fossem médios empresários industriais, poderiam ter quebrado nesse período. Quem não conseguiu quebrar transformou suas empresas em maquilas, virou comerciante, importador.
Nos últimos dez anos, o que aconteceu com a produtividade no Brasil? É um desastre desde 1980, na verdade. A produtividade da indústria brasileira baixou bastante, você pode atribuir isso à incompetência dos empresários, mas seria tolice. Qual a outra razão? Que eles não investiram porque não tiveram lucro, com um câmbio contra eles o tempo todo.
Agora o câmbio está ótimo nesse sentido.
Isso é uma taxa de câmbio de crise e também por causa dos preços das commodities muito baixos, como os do ferro e da soja.
Nesse resto de governo Dilma, três anos e três meses, o senhor acha que essa taxa de câmbio vai ficar nesse patamar? Há possibilidade de melhora do preço das commodities no curto prazo?
Bresser-Pereira – Acho que a nossa economia vai ter um desempenho em 2016 um pouco melhor do que estão dizendo, que seria uma queda de 1,5% do PIB. Isso é exagero e teremos uma queda menor. Não tenho consultoria e economistas o tempo todo fazendo contas, mas a maioria desses economistas subestima o papel do câmbio.
A política que temos realizado desde 1990 é suicida. Começou com a abertura comercial e financeira. Se eu tivesse esse imposto e a criação de um Conselho Cambial Nacional formado de modo semelhante ao Conselho Monetário Nacional, tirando o câmbio da esfera do Banco Central e passando para este conselho, com cinco ou seis economistas trabalhando para ele, estou de pleno acordo com zero de tarifa.
O Mário Bernardino é engenheiro, empresário e sabe muito de economia. Ele fez um estudo e verificou a situação das empresas em cinco países diferentes, a produtividade brasileira era até melhor que a de alguns deles e quando se colocava o câmbio, mudava tudo. Há anos que escuto falar de Custo Brasil e não entendo o que significa, se é infraestrutura, sei lá… Mas agora descubro que quem trabalha com Custo Brasil que ele é fundamentalmente câmbio. Não só, mas fundamentalmente.
Qual é o grande problema do Brasil? Há pouco mais de um ano li uma matéria do Samuel Pessoa dizendo que do ponto de vista fiscal a situação do Brasil estava ok, mas que havia um problema estrutural etc… O país teve a crise de 1998 efez um acordo com o FMI em 1999, estabelecendo um superávit primário de 3,5%, que variou depois disso. Desde então, são 14 anos, o Brasil cumpriu rigorosamente e teve equilíbrio fiscal. Foi só em 2013/2014 que saiu da curva.
Isso mostra que o problema não pode ser fiscal. Nesse mesmo período, no governo Fernando Henrique, no governo Lula e no final do governo Dilma, temos um populismo cambial violento, e esse todo mundo esquece. Se continuarmos acreditando que todo problema do Brasil é controlar o déficit público que o resto o mercado cuida, o Brasil vai ficar semi-estagnado por mais 30 anos, com certeza.
Porque sou a favor do ajuste fiscal? Dada a recessão, aprendemos com Keynes isso, que deveríamos fazer uma política anticíclica, mas estamos fazendo uma política pró-cíclica em plena recessão. Sou a favor porque o que o Keynes supunha é que o Estado – Inglaterra, Estados Unidos… – estava com as contas equilibradas e, nesse caso, vinha uma recessão. O que tinha que fazer o governo? Imediatamente aumentar sua despesa pública. Fazia isso, a economia voltava a crescer, os impostos aumentavam, diminuía a dívida pública que tinha feito e voltava ao equilíbrio fiscal. Isso é o que defendo, mas, dessa vez, estávamos em 2015 com uma recessão brava e junto a ela uma crise fiscal clara, 0,6% de déficit primário. E precisava dramaticamente recuperar a confiança. Não por conta desse investment grade, não quero precisar de capital deles, provo por A mais B que o Brasil não precisa de dinheiro deles. Mas me preocupo muito com os empresários brasileiros, inclusive com as multinacionais que estão aqui, preciso que eles invistam. E para isso precisam ter confiança no governo.
Sou 100% a favor da política industrial. O Estado deve estrategicamente intervir em certos setores e apoiar certas indústrias para que se tornem competitivas e tenham mercado internacional. Mas acho que isso a partir dos cinco preços macroeconômicos no lugar certo. Se você olhar o que aconteceu na história do pensamento desenvolvimentista, houve um grande desenvolvimento nos anos 1940/1950, época do Prebisch, Furtado, e eles diziam fundamentalmente que para desenvolver é preciso industrializar, e para industrializar é preciso planejamento. Isso estava associado a uma teoria da revolução nacional burguesa e os golpes militares de 1964 no Brasil, de 1967 na Argentina e de 1968 no Uruguai foram suficientes para que a esquerda e os intelectuais abandonassem a teoria da revolução burguesa e adotassem a teoria da dependência associada. Ficamos sem projeto de desenvolvimento, mas os militares continuarem com ele. Daí veio o neoliberalismo, antes dele o domínio internacional do pensamento neoclássico ortodoxo, e morreu.
Aconteceu algo interessante no campo desenvolvimentista. Foi publicado um livro em 1982, de Chalmers Johnson, cientista político e não economista, sobre o Japão e sua política industrial. Em 1989, Alice Amsdem, notável economista do MIT, publicou um livro sobre a Coreia do Sul em que novamente mostra que a política industrial teve um papel decisivo para o país. Robert Wade, da London School Economics, publica um livro sobre Taiwan. Aí os desenvolvimentistas se aliviaram e chegaram à solução de que tudo se resolve com a política industrial. Mas há um pequeno engano nesse diagnóstico. Em relação aos cinco preços macroeconômicos nesses países, a taxa de câmbio era muito competitiva, a de juros sempre muito baixa, a de lucro esperado perfeitamente satisfatória, a de salários crescia com a produtividade, e a de inflação era muito baixa. A macroeconomia era uma religião.
Sua teoria é de que só existe política industrial se houver uma macroeconomia bem resolvida e que nesse momento circunstancial o ajuste fiscal é necessário por conta disso.
Durante os cinquenta anos em que nos desenvolvemos, não tínhamos uma macroeconomia perfeita, mas corrigíamos a taxa de câmbio e de lucro via neutralização da doença holandesa. Tínhamos uma estratégia nacional de desenvolvimento nacional entre 1930 e 1980 e qual era? Podemos reduzi-la a uma palavra só: industrialização.
Desenvolvimento para nós era industrialização, derrotamos os liberais nos anos 1950 que diziam que o Brasil era um país essencialmente agrícola e tinha que continuar assim… Quando um governo chegava no poder, a obrigação fundamental do ministro da Fazenda, do Planejamento, do presidente do Banco Central era industrializar. Desde 1990, o objetivo qual é? Abrir e deixar o mercado resolver os problemas.
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Bresser-Pereira e os riscos da “doença holandesa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU