25 Setembro 2015
"Manejamos em nossas pesquisas e ativismos as categorias sexualidades, gêneros e raças, mas estou convencida de que estas são categorias de pouca força compreensiva se as considerarmos isoladamente e sem pensá-las nos marcos do debate sobre justiça social", escreve Berenice Bento, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN e doutora em Sociologia, em artigo publicado por Outras Palavras, 23-09-2015.
Eis o artigo.
A tarefa mais difícil em estar nesta mesa foi decidir o recorte que daria ao tema amplo sugerido. Fiz alguns roteiros, empolguei-me com algumas ideias, mas, finalmente decidi compartilhar com vocês algumas reflexões que começam a ficar mais nítidas dentro de mim. Intitulei minha fala de Gênero e sexualidade como armas de guerra. Eu vou abrir mão de fazer um diálogo com um viés mais teórico para concentrar-me em anotações dos meus diários de viagem, percurso que farei no segundo momento desta comunicação. Recuperei pequenos fragmentos de textos que foram esquecidos e deixados à crítica roedora dos vírus em arquivos do meu computador. São anotações de viagens a Paris, Valência, Nova Iorque e à Palestina.
Há cerca de um mês, quando eu estava visitando a Palestina, em determinado momento, que vou lhes contar, pude ver o poder que os discursos Ocidentais hegemônicos sobre gênero e sexualidade ocupam nas guerras externas e internas.
Numa tarde de verão no Mar Morto, em uma excursão para conhecer a cidade de Massada, consegui ver e sentir o que tenho lido sobre homonacionalismo, feminismo colonial e pinkwhash. Entendi que além de bombas, muros, exércitos, drones, há discursos que funcionam como armas de guerra. Já antecipo uma das conclusões desta comunicação: Direitos para as mulheres, os direitos LGBTs, direitos humanos têm sido tropos que também têm servido às tropas.
As categorias analíticas e políticas, sexualidade, gênero, raça, têm pouco valor explicativo se consideradas fora de contextos mais amplos e complexos. O cruzamento de marcadores da diferença e da desigualdade nos alerta para a impossibilidade de análises essencialistas, naturalizantes e universais. Uma das contribuições dos estudos/ativismos transviados (tradução cultural que faço de estudos queer) é reiterar que o universalismo científico e o pensamento colonial têm um profundo parentesco. Mas esta preocupação ética e metodológica não pode nos fazer esquecer da força que alguns discursos sobre gênero, sexualidade, raça e nacionalidade têm de, ao cruzar oceanos e fronteiras, estabelecer-se como verdades irrelativizáveis.
A pergunta que eu me faço atualmente é: como ter um pensamento engajado em torno dos direitos humanos, sexualidade e gênero, por exemplo, e não me deixar enredar por discursos que justificam guerras e genocídios utilizando a suposta superioridade moral de determinadas formas de ler os corpos, os desejos e os gêneros.
Os efeitos dos discursos que constroem, por exemplo, a mulher muçulmana como uma espécie humana que se caracteriza pela fragilidade e subalternidade, viaja e chega às ruas das cidades brasileiras. O que autoriza uma pessoa a arrancar o véu da cabeça de uma mulher muçulmana? Este ato não aconteceu em uma rua de Paris, cidade conhecida por uma crescente islamofobia, mas aqui em São Paulo. Este é apenas um dos muitos relatos que estão presentes no livro Olhares femininos sobre o Islã organizado por Francirosy Barbosa.
Há um reiterado discurso de infantilização das mulheres muçulmanas. O ato de arrancar o véu está assentado na legitimidade que um determinado conceito de gênero assume, empoderando aquele que cometeu o ato violento. A obsessão do Ocidente pelo véu seria mais um dos efeitos de teorias encarnadas que viajam. Estou utilizando a metáfora da viagem inspirada nas pesquisas de Pedro Paulo Gomes Pereira sobre a necessidade de decolonizar o queer.
Também vejo como resultado de uma determinada concepção de gênero, ações como as do Estado francês que, em nome de promover a abolição da prostituição, persegue as putas e nega o direito às mulheres de portarem em seus corpos símbolos de suas religiões. Tanto as putas quanto as muçulmanas (mulheres majoritariamente pobres e imigrantes) parecem poluir o estado francês de concepções “primitivas” do gênero feminino. Em ambos os casos, o que se nota é o Estado operando suas ações a partir do discurso da infantilização das mulheres e ao fazer isto lhes nega a capacidade de agência. A infantilização e a patologização são retóricas do poder colonial. Aqui, é como se houvesse um tipo de “falsa consciência” de gênero: elas não sabem que são exploradas. Elas não sabem que são oprimidas pelo islã. Precisamos salvá-las.
E o que nós temos a ver com isso? Entre outras mulheres trabalhadores sexuais, as mulheres trans brasileiras aparecem como as que são constantemente deportadas. Sobre a questão das deportações das mulheres trans brasileiras, sugiro o excelente documentário de Alexandre Fleming, O Voo da Beleza.
Na divisão globalizada dos corpos generificados, sexualizados e racializados, as brasileiras e os brasileiros pobres são potencialmente mais propensas a serem vítimas de políticas e ações xenófobas. Gisberta e Jean Charles são exemplos da menos valia que nossos corpos estranhos ocupam nas guerras internas. Gisberta, uma travesti brasileira, foi barbaramente assassinada em Portugal, em 2006. Jean Charles foi assassinado pela polícia londrina em 2005, porque parecia um terrorista.
Certamente o meu pavor diante das imagens dos imigrantes e refugiados que tentam chegar à Europa nos últimos tempos é compartilhado por vocês. O Mar Mediterrâneo transformou-se em um grande necrotério. As cenas terríveis de milhares de pessoas tentando chegar à Europa, gente morta dentro de caminhões, pessoas sendo retiradas a força dos trens, barcos naufragados…
Tenho como hipótese que, a curto prazo, observaremos um aprofundamento dos nacionalismos fascistas em vários países europeus. Infiro que vamos observar o aprofundamento deste tipo singular de relação entre colonizado/colonizador que já está em marcha. A luta que antes acontecia no seio dos territórios colonizados, agora, acontece também na ‘metrópole’. Não se trata mais de disputas discursivas à la Sepúlvida e Bartolomé de Las Casas. Não se trata mais (exclusivamente) de afirmar que é necessário levar civilização aos rincões do planeta. Mas antes, como garantir que a ‘nossa’ civilização não seja contaminada pelos vírus de determinadas concepções de gênero, sexualidade e, claro, o medo de que os corpos miseráveis dos imigrantes ocupem os empregos dos corpos quase miseráveis nacionais.
Eu lembro de um desabafo de uma colega feminista espanhola. Ela dizia que a vinda das mulheres imigrantes da América Latina para Espanha tem se tornado um problema para o feminismo local. Dizia ela, que os homens têm preferido casar-se com elas devido ao caráter submisso que têm. Esta nova configuração do mercado matrimonial estava levando para o ralo anos de luta do movimento feminista espanhol.
Mas a aversão aos valores culturais dos imigrantes e à própria figura do imigrante não é uma prerrogativa de países europeus.
Acho que, como vingança, Ronald Reagan disse: vocês me achavam de direita? Agora vocês vão ver… De caubói a playboy. Donald Trump, em sua fúria contra os imigrantes, promete deportar cerca de 11 milhões de mexicanos e, seguindo a política racista do Estado de Israel, defende construir um grande muro entre as fronteiras. Acredito que, quando vocifera contra os mexicanos, ele sabe que nem todos os mexicanos são como ele afirma. Certamente não deve ter lido Gaytra Spivak, mas ele manipula um tipo de essencialismo que é estratégico para fazer avançar sua campanha e se diferenciar dos outros candidatos republicanos. Marine Le Pen também sabe manusear este tipo de essencialismo como arma de guerra contra os imigrantes, a cada eleição com maior habilidade.
Agora, gostaria de passar a ler os fragmentos dos meus diários de viagem. Conforme disse, o meu objetivo é tentar discutir a impossibilidade de considerar as categorias políticas e analíticas sexualidade e gênero como autossuficientes.
Fragmento I: no Mar Morto
Já estávamos na fase final no passeio. Voltávamos de uma excursão a Massada e ao Mar Morto. Os cerca de 49 turistas, quase todos europeus, já sinalizavam cansaço. Em determinado momento, o guia colocou uma música, aumentou o som e, visivelmente orgulhoso, nos disse: “esta foi a música oficial da parada gay de Tel Aviv do ano passado. Nós somos um país livre. Aceitamos todas as diferenças. Eu amo Tel Aviv”. Ainda com o microfone aberto, cantava e insinuava passos de uma coreografia.
Doze dias depois fui visitar a cidade do meu guia. Eu já tinha visitado alguns campos de refugiados para os palestinos, visto os muros, as cercas, a violência do exército israelense. Eu já tinha sido submetida a inúmeros checkpoints. Já tinha visto a ação terrorista dos colonos sionistas que incendiaram a casa de uma família palestina, ação que ocasionou a morte de um bebê de 18 meses, do pai, além de ferir brutalmente a mulher e mais um filho. Acompanhei a máquina de guerra do exército de Israel que reprimiu as manifestações de palestinos que pediam justiça contra mais este ato terrorista dos colonos. Nesta manifestação, um jovem foi assassinado.
Um dos orgulhos do Exército de Israel é afirmar que aceita mulheres, gays e lésbicas em suas fileiras. Para muitos, isso o torna um exército feminista e respeitador da diversidade sexual. Por trás daquele uniforme do soldado que matou o jovem palestino, poderia ser um gay, uma mulher heterossexual ou uma lésbica. Eu não sei. Só sei que era assassino.
Foi com a alma em luto que cheguei a Tel Aviv num sábado de verão. Em todos os lugares das cidades palestinas ocupadas por Israel a estética da guerra é ostensiva. Mas nas praias de Tel Aviv, no mar turquesa do Mediterrâneo, não vi um único soldado. As areias eram ocupadas por um enorme mar de peles brancas. Poucas vezes em minha vida vi tantas pessoas tão brancas reunidas. Parecia que estava dentro de uma ficção, ou de uma bolha.
Ali próximo, talvez a uns 60 minutos, um entre tantos campos de refugiados de palestinos que foram expulsos de suas casas e têm negado o direito de ir e vir em seu próprio país. Ali, a apenas alguns minutos da cidade livre para os gays e lésbicas, milhões de pessoas veem a cada ano parte do seu corpo político, chamado Palestina, ser usurpado, ocupado, colonizado. Palestina é a travesti do mundo.
Eu fiz uma caminhada de quase quatro horas pela cidade a pé. Cortei a cidade pelas avenidas Ben Yehuda e Allenby. Vi o bairro gay, com seus convidativos bares, com pessoas charmosas passeando com seus cachorrinhos e desfrutando daquele ensolarado dia.
Segui meu caminho. Mais ao sul, perto da estação de ônibus, onde eu pegaria uma van para voltar a Jerusalém, a cidade começou a perder seu charme europeu. As ruas e casas tinham um aspecto de abandono, sujeira e pobreza. Foi ali que encontrei as pessoas negras.
Fragmento II: Paris
Em janeiro de 2013 eu estava em Paris. Fui ao Centro LGBT para me oferecer como voluntária. A França vivia a efervescência do debate sobre o casamento igualitário. Visitei o Centro e expliquei que não era fluente em francês, mas que talvez poderia ser útil no atendimento de LGBTs imigrantes de países hispânicos e falantes de português. Fui informada de que a minha ajuda não teria nenhuma serventia, porque o critério para ser voluntária no Centro era falar francês. Voltei outras vezes ao luxuoso prédio do Centro para participar de outras atividades. De fato, eu não teria muito o que fazer. Nunca vi uma pessoa trans imigrante naquelas salas. Portanto, aquele espaço era voltado claramente para atender as demandas das lésbicas e gays franceses.
E o resto do resto continuaria resto.
Ainda nesta mesma viagem, tive oportunidade de fazer alguns registros dentro do metrô. Cito apenas um: ‘(Paris, dezembro de 2013). Há muitas formas de estabelecer limites, que podem ir desde a marca visível, reconhecível, até um olhar de desprezo de uma mulher branca no metrô de Paris que se sente incomodada com a ‘invasão’ milimétrica do seu assento por uma mulher gorda, negra e visivelmente muçulmana que está sentada ao seu lado. Com um ar de fúria, a vi levantando-se e ficando em pé até chegar a sua estação, ironicamente chamada Nation. Antes de descer, lançou um olhar de ódio para aquela mulher que estava concentrada olhando para seu bebê que dormia suavemente.’
Conforme eu disse, nesta nova etapa da relação entre colonizado e colonizador, as fronteiras não estão apenas lá, mas aqui, nas micro relações cotidianas, transformando, de certa forma, os conflitos em guerras internas.
Fragmento III: Valência
Em 2012, depois de mais de 10 anos, voltei à Espanha para uma curta estadia. Poucos dias antes de voltar para o Brasil conheci por acaso Joana, uma mulher transexual brasileira que vivia na Espanha há quase duas décadas. Quando eu e meus amigos a encontramos, ela estava na rua, chorando e com alguns machucados resultantes de uma briga com seu namorado. Tanto ela quanto o namorado fizeram denúncia de agressões à polícia. Todo este processo (encontrá-la, a chegada da polícia, a denúncia de agressão e a detenção de ambos para averiguação) foi acompanhado de perto por mim e meus amigos.
Fiquei impactada quando vi os termos que os policiais inicialmente usavam para referir-se a Joana. Tratavam-na como mulher e afirmavam que, se a violência contra ela fosse tipificada como violência de gênero, teria toda a proteção do Estado.
No dia seguinte, eu e meus amigos fomos prestar depoimento. O quadro mudara completamente. A violência não seria tipificada como violência de gênero, mas como violência doméstica, considerando que eram dois homens que brigaram. Eu não conseguia compreender. Joana era uma mulher transexual que vivia com um homem e, devido ao fato de sua identidade de gênero não ser reconhecida legalmente, isso a transformava num passe de mágica em um homem, deslocando imediatamente a natureza da agressão e do processo jurídico. Para os casos de violência doméstica não há a mesma punição daquelas que resultam de violência de gênero.
A funcionária da justiça repetia: "ele não tem papéis, está ilegal".
Joana, por este déficit de pertencimento legal, tinha seu campo de direito reduzido a nada. O que nos leva a pensar, junto com Judith Butler, que os direitos e os Direitos Humanos só existem a partir de condições prévias, neste caso estar vinculada legalmente a um Estado. Com isso, acontece uma limitação do próprio alcance dos direitos humanos. Parecia que tinha pouca importância a verdade dos fatos. Nada do que ela falasse mudaria o fato primeiro: ela estava clandestina e era um homem. Tudo não passou, enfim, de uma briga entre dois homens: um espanhol e um brasileiro clandestino.
A advogada de Joana nos disse, cito a fala dela: ‘a situação dele é delicada. De qualquer forma, a detenção provisória termina hoje às 20h. Ele (a) será posta em liberdade ou irá para o Centro de Internação dos Imigrantes’.
No dia seguinte, ligamos para Polícia Nacional para obter informações. Depois de uma longa conversa, descobrimos: ela fora transferida para o Centro de Internação dos Imigrantes. Um mês depois, Joana foi deportada para o Brasil.
Fragmento IV: Parada Gay de Nova Iorque, julho de 2014
Entre a rua 34 e a 5a. Avenida eu tentei acompanhar o desfile LGBT. Era possível ver milhares de gays e lésbicas desfilando, usando seus corpos para exibir as identidades visuais das empresas onde trabalhavam (camisetas, uniformes completos, brasões, bandeiras…). Eu nunca tinha visto nenhum trabalhador exibir com tanto orgulho o pertencimento à empresa. É claro que todos precisamos trabalhar, mas o que eu não consigo entender completamente é o que faz um gay participar do orgulho LGBT exibindo o uniforme de sua empresa, desfilar na ala de sua empresa, mas que ela seja a Nike, conhecida mundialmente pelas condições degradantes a que submete seus trabalhadores em vários países do mundo. Como a parada era organizada por alas principalmente corporativas, concluí que não havia uma justaposição simétrica da identidade, mas posicionamentos hierárquicos, na qual o pertencimento corporativo prevalecia.
Depois de quase duas hora assistindo à exuberância dos carros alegóricos de grandes empresas, meu grilo falante, que eu batizei de ética marica, (em homenagem ao Paco Vidarte), me alertou: Berenice, o que você está fazendo aqui? Voltei para casa com a alma vazia e com a bolsa repleta de brindes: óculos, pulseiras, cupom de desconto em redes de restaurante, lixas para unhas etc.
Uma pesquisa sobre a composição da parada de Chicago confirmou o que a minha sensibilidade visual já denunciara: 132 carros alegóricos pertenciam a empresas, em comparação a 11 grupos LGBT, um grupo bissexual, um grupo trans e 5 grupos relacionados a LGBT afrodescendentes. Eu não consegui os dados da parada de Nova Iorque. Certamente, deve manter as mesmas proporções que a de Chicago.
Afinal, a parada da diversidade sexual transformou-se em um grande ato político em homenagem ao capitalismo.
(Apenas como sugestão, sugiro o artigo ‘Homossexualidade e Neoliberalismo’, de Sam Bourcier publicado no livro do Desfazendo Gênero.)
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Já caminhando para o final, é possível alguém se perguntar se não estou trazendo para a discussão demasiados elementos, experiências e categorias analíticas e políticas. Propositalmente, estou.
Manejamos em nossas pesquisas e ativismos as categorias sexualidades, gêneros e raças, mas estou convencida de que estas são categorias de pouca força compreensiva se as considerarmos isoladamente e sem pensá-las nos marcos do debate sobre justiça social.
O oposto a esta formulação é aquela que centra seus esforços compreensivos e políticos em categorias autossuficientes. E assim termina por contribuir para as noções de espécies sexuais, espécies de gênero e espécies raciais. Este seria o mecanismo que tem nos levado aos braços quentes, confortáveis e pouco complexos dos essencialismos identitários e que se alimenta fartamente do essencialismo estratégico como tática de luta.
Dedico minha fala ao povo palestino.
*Texto lido na mesa redonda ‘Sexualidade e Gênero’ do I Seminário Queer – Cultura e Subversão das Identidades, realizado pelo Sesc Vila Mariana e Revista Cult em 9 e 10 de setembro
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Gênero e sexualidade como armas de guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU