Por: Jonas | 24 Agosto 2015
“Minha terra natal é a Argentina, a outra é o Brasil, mas a pátria grande é a América Latina. Sou um latino-americanista”, disse Enrique Dussel (foto), pausadamente, em seu tom híbrido, no qual ainda restam traços do mendocino (Mendoza, Argentina) que alguma já teve.
Filósofo argentino radicado, há quarenta anos, no México, Dussel deixou seu país natal duas vezes. A primeira foi após passar pela Universidade de Cuyo. Ficou 10 anos na Europa e seu pensamento crítico do eurocentrismo, afirmou, fez com que se sentisse um estrangeiro em todas as partes: “A maioria dos professores ainda são absolutamente eurocêntricos e em filosofia são helenocêntricos. Acreditam que a filosofia nasceu em Atenas e os próprios Heródoto, Platão e Aristóteles dizem que nossa filosofia surgiu no Egito”.
Fonte: http://goo.gl/8xQONV |
Voltou à Argentina em 1968 e viajou por toda a América Latina. Nos anos 1970, junto com outros intelectuais argentinos, fundou a Filosofia da Libertação. Esse movimento comprometido com a emancipação dos oprimidos e relacionado com a Teologia da Libertação, que começou uma reforma universitária em Mendoza, com programas de estudo de filosofia mundial não eurocêntrica, fez com que ele se tornasse alvo de ameaças e perseguições. “No dia 3 de outubro de 1973, colocaram uma bomba em minha casa e começou a perseguição contra nós. Depois, quando veio a intervenção de Oscar Ivanissevich, em março de 1975, retiraram-me da universidade e fiquei desprotegido”.
Este intelectual, que desde aquele momento adotou o México como destino do exílio e lugar de residência, é reconhecido por suas contribuições nos campos da filosofia, teologia e história. “No caso de um filósofo da periferia, do Sul, a biografia é parte do conteúdo. Os europeus e os norte-americanos já tem estabelecido o lugar a partir de onde falam, ao contrário, (em nosso caso) necessita-se explicar muitas coisas para dizer a partir de onde se fala”, afirma.
Reitor interino (2013-2014) da Universidade Nacional Autónoma da Cidade do México, atualmente é professor no Departamento de Filosofia na Universidade Autónoma Metropolitana (Cidade do México) e no Colégio de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM (Cidade Universitária). Veio à Argentina para receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM).
A entrevista é de Astrid Pikielny, publicada por La Nación, 16-08-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Que traços definem a cultura latino-americana?
Explicar a América Latina é explicar a história universal, porque os que chegaram aqui vinham do extremo do Ocidente: Finisterra, Portugal e Espanha. E os que estavam aqui eram o extremo oriente do Oriente. Os nossos indígenas são todos asiáticos, por raça e por mitos. E o choque foi o mais importante da história universal: o extremo ocidente com o extremo oriente. Isso me levou a repensar muitas coisas e ainda continuo ensinando isto, porque ainda continuamos sendo eurocêntricos, estudando estupidezes como a Idade Antiga, Medieval e Moderna, que foi uma invenção dos românticos. Repetimos estas coisas como se fosse a ciência e é pura ideologia.
Após 200 anos das revoluções no continente, você acredita que a América Latina deixou de ser colônia?
Começou a tomar consciência de que pode deixar de ser colônia. E esta primavera política, a dos governos populares, é a segunda emancipação. As revoluções de 1800 foram o primeiro movimento: uma quase independência política, militar, mas não mental, histórica e nem cultural. E entramos em um neocolonialismo do qual não saímos. Pela primeira vez na América Latina, de (Hugo) Chávez em diante, começa a ser levado a sério o tema de que seremos iguais aos Estados Unidos e Europa em um ou dois séculos de história. Não será em cinco dias, será um processo. Agora, também estamos caminhando com força porque já temos uma consciência nova, que não se cria por gênios teóricos, mas, ao contrário, é fruto de um processo e de uma história. Que eu possa dizer isto é resultado de que a América Latina está em outro nível de consciência. É a primeira vez que a “esquerda”, com muitas aspas, ou os progressistas começam a tentar fazer algo diferente.
É possível falar de primavera política, quando a região ainda exibe índices alarmantes de pobreza, desigualdade, exclusão e corrupção?
Os processos podem entrar em crise, burocratização, contradição, mas já começou uma nova história da América Latina, que eu considero irreversível. Há primaveras que depois se transformam em invernos e, em seguida, voltam a surgir primaveras. Eu falo de várias revoluções na América Latina. A cubana de 1959, que infelizmente teve que ser soviética e teoricamente há pouca originalidade. A chilena de Allende, uma alternativa socialista democrática que, se a houvessem deixado funcionar, teria dado muitos resultados, mas Pinochet a liquidou. A sandinista de 1979, uma revolução cultural que rompia os esquemas do marxismo-leninismo. Tudo isso vai lentamente abrindo um diagnóstico mais complexo da realidade. A revolução já não é instantânea, nem é tão clara, mas, ao contrário, é muito mais complexa, contraditória, leva mais tempo no tempo. E depois quase é preciso esperar a revolução de Chávez.
Acredita que na Venezuela houve uma revolução e que foi exitosa?
Não há êxitos: começa um processo que contará com altos e baixos. Agora, pode ocorrer um processo de corrupção democrática, é quase normal que ocorra e é quase milagroso que não aconteça. A burocratização das instituições é um processo inevitável.
O que Chávez contribuiu nesse processo?
Por exemplo, a recuperação do capital petróleo é fundamental. Estava completamente vilipendiado nas mãos de uma burocracia estrangeira. O país não se beneficiava com isso.
Também não parece se beneficiar muito agora, não é?
Eu não faço apologia a nenhum regime. É preciso ver a história de cada lugar. O que era a Venezuela, desde a época colonial? Uma capitania geral. Um lugar para onde iam os piratas; um lugar que, mesmo em comparação com a Colômbia ou o México, era um pouco terra de ninguém. Os venezuelanos não tiveram uma história, nem cultural e nem industrial, porque era um país muito diferente dos outros. É preciso conhecer essa história que, a partir de 1912, está vegetando, dependente do petróleo. Não havia sido propiciada uma produção industrial, não havia tido uma mentalidade em algumas coisas positivamente modernas e, então, não podemos dar murro em ponta de faca. A Venezuela não é o mesmo que o Brasil e a Argentina, mas houve mudanças fundamentais. E deu ao povo uma consciência. Toda essa gente marginalizada começou a ser mais autora. Isso não se faz em uma geração ou duas, leva mais tempo. Já não estamos na revolução instantânea, nem nos milagres, é um processo. Começou a primavera, mas virão invernos, outonos e outras primaveras. No fim do século XXI, teremos avançado.
Que a Venezuela tenha a inflação mais alta do mundo, que haja saques, que haja fraturas sociais...
O próprio fato de Chávez ter morrido tão jovem e com tanta capacidade de condução é uma lástima, mas é uma realidade. Morreu Chávez, que poderia ter continuado conduzindo um processo que eu chamaria de magistério. Que tenha existido um Chávez já foi algo excepcional: um homem que era um militar, que fez ciências políticas, e que estudou na universidade central.
E um homem que, há anos, pegou em armas contra o governo e liderou um golpe.
Há golpes e golpes. Contudo, não era um militar qualquer, era um homem culto, que pelo menos captava a política. Que presidente está nesse nível? García Linera. No mundo todo, não há um vice-presidente desse nível teórico.
Certa vez, você disse a Chávez que “a liderança perfeita é sua dissolução, é quando o líder já não é necessário porque o povo já sabe governar e participar”. Chávez gostou de sua ideia, mas fez totalmente o contrário. E quando se olha para o mapa da América Latina, em muitos casos, estão distantes disso porque continuam sendo terras de fortíssimas lideranças.
Nunca tratamos teoricamente a fundo o tema da liderança, tampouco os socialistas. Quem fez a revolução? Lenin, Mao, Fidel, todos grandes líderes. A liderança é essencial na política, mas é preciso haver muitos e em todos os níveis, gente que acredita no que diz e que esteja empenhada, como San Martín. Fidel Castro disse, certa vez: “Quando um povo acredita em alguém, é gente que se empenha pelo que pensa, mas a questão é que o povo acredite em si mesmo”. No entanto, está difícil que um povo acredite em si mesmo. Todos os meios de comunicação levam o povo a ter uma apreciação mínima de si mesmo e se entregar ao primeiro que lhe faz a propaganda da Coca-Cola.
Não está dando muito poder aos meios de comunicação, que, em definitivo, não esboçam políticas de Estado, nem implementam medidas de governo?
São os que criam as condições para. Você diz “eu tomo a decisão A” e pode ter sido a correta, mas os meios de comunicação dizem que é ruim, e fazem outra contrária. Se eu quero destruir alguém, posso fazer isso sempre porque sempre haverá uma razão contrária. A opinião pública é o ponto de partida da política.
Não está subestimando o cidadão?
Isso me dizem, às vezes. Uma vez explicava isto e os zapatistas me disseram: “Você desconfia do povo”. Contudo, como pode ser que alguém ainda vote em um governo que vende todos os recursos comuns de um país, como o governo mexicano? Está vendendo o petróleo e está recebendo propina, então liquida a jornalista que mostra como recebeu propina. E assim temos uma ditadura perfeita, como dizia Vargas Llosa, porque aparece como democracia e é pior que a ditadura militar...
Foi publicada uma pesquisa jornalística que sustenta que a filha de Chávez teria 4 bilhões de dólares. Não vejo em você nenhuma crítica aos excessos ou aos defeitos de Chávez. E se os teve, gostaria que me dissesse quais são.
A condição humana é falível. Eu pensava que Pinochet era um homem fanático, que se contentava com o exercício do poder. Quando se soube que havia roubado sete milhões de dólares para a família, Pinochet caiu para mim. Que a filha de Chávez tenha feito isso, bom, a filha cai para mim. Agora, não acredito que Chávez tenha feito isso. Não me resulta factível. No entanto, se fosse verdade, diria: “Pobre, caiu como outros seres humanos”. Não justificarei ninguém. Abriu um caminho que continuou com Correa, Evo Morales e muita gente.
Qual a opinião de alguém como você, com um compromisso político de esquerda, quando um governo como o kirchnerista intervém no Indec e deixa de medir a pobreza?
E por que deixou de fazer isso? Para que não se veja a pobreza?
É provável. É uma das leituras.
Retirar os indicadores da realidade é um erro porque não permite tomar as decisões. Dir-se-ia que está ruim e, se aumentou a pobreza, é necessário verificar a razão do aumento. Ora, é um fato o que aconteceu na Argentina, em fins do século XX, com as medidas de Menem e os neoliberais, assim pode haver resultados de processos anteriores. De qualquer forma, não se pode justificar e tampouco se pode em bloco apoiar algo. Por exemplo, na Venezuela as grandes universidades do Estado e até grandes professores marxistas são contra o processo de Chávez e não aceitam em nada o que se fez. Eu estive em Maracaibo, em uma reunião de intelectuais. Fomos visitar operários do petróleo e centenas nos receberam. Pediam para que eu, pessoalmente, autografasse um livro sobre política. Que um operário me peça que autografe um livro que está lendo é interessante, porque nesse livro eu digo: “Você é a sede do poder, não o Estado, nem o líder, nem ninguém, todos estão a seu serviço”.
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“A América Latina começou uma nova história, que eu considero irreversível”. Entrevista com Enrique Dussel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU