Por: André | 09 Julho 2015
“O gaúcho transforma-se, então, em ‘parte’ desse mundo de fantasia que pondera a frivolidade e presta reverência à fama. (...) Assim, o teatro atribui a Martín Fierro uma nova função: a de servir de ponte entre as constelações e o mundo real para garantir a eficácia da mensagem.”
A análise é de Matías Emiliano Casas, professor de História, em artigo publicado por Página/12, 08-07-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Quando José Hernández (1834-1886) concebeu seu poema literário dificilmente poderia ter imaginado a multiplicidade de usos aos quais o seu protagonista seria submetido de 1872 até hoje. Embora Fierro já tivesse chamado a atenção – e denunciava – para uma série de manipulações quando cantava que os “gaúchos não eram argentinos, senão pa’ fazê-los matar”, é possível pensar que nem os mais entusiastas teriam adivinhado os destinos de Martín Fierro. A dispersão dos personagens ao final da história aventurava caminhos insuspeitos. Para os meios de comunicação de massa, o nome próprio do arquétipo gauchesco foi se cristalizando como símbolo da festa máxima do espetáculo nacional.
O gaúcho perseguido e “reabilitado” que se compõe na convergência das duas partes do texto literário é revisitado, uma vez por ano, pelas vozes mais significativas dos meios de comunicação argentinos. Martín Fierro prova o traje de mestre de cerimônias para emprestar o nome próprio ao evento que o relega às margens da celebração. Em uma espécie de atualização das impugnações históricas, sua presença remete ao universo especificamente simbólico e abstrato. Ou seja, a fisionomia da estatueta e a concessão dos prêmios interpelam a partir de uma lógica dual pela qual se evoca o popular e o “argentino” e ao mesmo tempo se seleciona uma elite minúscula para protagonizar o convite.
O sucesso de Martín Fierro se sustentava, no final do século XIX, a partir das leituras em voz alta ao redor do fogo e nos mecanismos de identificação traçados pelos habitantes da campanha. A essa apropriação popular seguiu-se o aplauso da oligarquia portenha, congregada no Teatro Odeon, com as conferências de Leopoldo Lugones que reivindicavam o poema como épica nacional em 1913. Ali ficava a figura do gaúcho, disputada entre o popular e o elitista, em uma espécie de antecipação do uso de Martín Fierro a partir do microclima do espetáculo.
Com efeito, o gaúcho se encontraria banhado em ouro como um paradoxo do destino. Assim como os políticos da década infame, que se ocuparam com sua restituição simbólica, mas que pouco atenderam às condições dos trabalhadores rurais da época, esse Martín Fierro teatralizado pretende dotar o evento com um componente popular que se dilui em todos os elementos constitutivos da celebração. Até mesmo pretende estreitar laços de identificação com o local, o nacional, quando as similitudes com o tapete vermelho hollywoodiano se destacam em cada festejo.
Como bem conhece o gaúcho de estereótipos, não apenas legitima, mas premia uma série de formatos “modélicos” que são aclamados simbioticamente. Os produtos culturais, que eram “fabricados” em massa desde as primeiras décadas do século XX, em especial o cinema norte-americano que concentrou sua atenção no gaúcho pampeano a partir dos filmes de Rodolfo Valentino e Douglas Fairbanks, eram duramente criticados pelos tradicionalistas locais por não responderem à “genuína” interpretação. Essa adaptação prematura do gaúcho às luzes da tela atualiza-se quando as estrelas aterrissam para buscar seu reconhecimento.
O gaúcho transforma-se, então, em “parte” desse mundo de fantasia que pondera a frivolidade e presta reverência à fama. Torna-se cúmplice da onipresença da moda, já que, como explica Ezequiel Ander-Egg, essas estrelas constituíram não apenas um objeto de consumo per se, mas fomentam as modas de consumo às quais somos interpelados. Em definitiva, sua presença (ou ausência) pode representar o dispositivo vincular que se pretende tecer com os espectadores. A participação (ou não participação) dos consumidores do evento resume-se à possibilidade de desejar – e nunca deixar de fazê-lo – esse estilo de vida que se condensa no festejo. Assim, o teatro atribui a Martín Fierro uma nova função: a de servir de ponte entre as constelações e o mundo real para garantir a eficácia da mensagem.
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A função de Martín Fierro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU