Por: Cesar Sanson | 26 Junho 2015
Como a produção nacional, pujante até os anos 1980, declina, desnacionaliza-se e concentra-se em bens de baixa tecnologia. Quais as consequências econômicas e sociais. Como reverter espiral descendente.
A reportagem é de Téia Magalhães, no Retrato do Brasil, publicada por Outras Palavras, 23-06-2015.
No mês em que, ano passado, se iniciou a campanha eleitoral gratuita em rádio e TV para o cargo de presidente da República, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga Andrade, afirmou em palestra na Associação Comercial do Rio de Janeiro que o desempenho da indústria brasileira no segundo trimestre foi “um fracasso” e que o ano estava perdido para o setor, o qual atravessa “talvez um dos piores momentos da história”.
A situação não é muito diferente da vivida nos últimos três anos. Em 2011, o setor teve crescimento da produção de 0,4%; em 2012, queda de 2,5%; e, em 2013 passado, alta de 1,2%. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas (Abimaq), o segmento por ela representado está ainda pior: nos primeiros cinco meses do ano passado, as vendas foram 14% menores do que no mesmo período de 2013. Números como esses reforçam a ideia de que o País passa por uma fase de desindustrialização.
O setor industrial é considerado o motor do desenvolvimento econômico pelos efeitos que exerce para a frente e para trás na cadeia produtiva, pelo potencial de elevação da produtividade, pela maior ocorrência de mudança tecnológica e sua possibilidade de difundir esse progresso a outros setores da economia. Quando a indústria de um país atinge elevado padrão de sofisticação, com a produção não só de bens de consumo, mas também de bens intermediários e bens de produção, ocorre a elevação da renda percapita, a pauta de exportações é dominada por produtos industriais de grande valor agregado e a própria estrutura produtiva passa a exigir serviços mais modernos e diversificados, aumentando seu peso relativo no PIB. Alcançado esse patamar, ocorre, então, um processo de desindustrialização da economia, que é positivo e natural.
De acordo com a definição mais amplamente aceita, a desindustrialização acontece quando tanto o emprego industrial perde importância no conjunto do mercado de trabalho quanto a produção industrial perde participação no PIB. A desindustrialização pode ocorrer, portanto, quando o emprego e o PIB estão em expansão, mas a indústria contribui em menor proporção para isso.
A desindustrialização adquire caráter negativo quando ocorre de forma precoce, sem que tenha havido o pleno desenvolvimento industrial de um país. Há, então, uma reversão da pauta exportadora em direção às commodities, produtos primários ou manufaturas com baixo valor adicionado e baixo conteúdo tecnológico, algo que, segundo alguns economistas, pode ser sintoma da “doença holandesa”, numa referência ao processo de perda de competitividade da indústria da Holanda quando a subida dos preços do gás nos anos 1960 aumentou expressivamente as receitas de exportação do país, valorizando a moeda local.
Alguns economistas consideram que a desindustrialização de maneira geral não é um fator relevante para o crescimento de longo prazo, que seria resultado do processo de acumulação e do progresso tecnológico, independentemente da composição setorial da produção. Outros acreditam que, no caso brasileiro, as mudanças da economia nos últimos vinte anos, ao contrário de trazer prejuízos, favoreceram a indústria ao permitir a importação de máquinas e equipamentos tecnologicamente mais avançados, modernizando o parque industrial brasileiro e, consequentemente, a própria expansão da produção industrial.
Independentemente das opiniões quanto aos efeitos da desindustrialização para o futuro da economia brasileira, é inegável que a indústria vem perdendo espaço no PIB. Esse processo teve início nos anos 1980. No texto “A desindustrialização no Brasil”, escrito em 2012, Wilson Cano, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lembra que a participação da indústria de transformação no PIB em 1980 era de 33% e caiu para 18% em 2010 – em 2012, segundo dados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), desceu para 13,3%. Cano mostra que entre as taxas médias anuais de crescimento dos setores que formam o PIB, a da indústria de transformação é a que apresenta pior resultado: entre 1989 e 2001 ficou em 1,4%, entre 2001 e 2006, em 2,8% e entre 2006 e 2010,
em 2,3%.
Ele analisa ainda a evolução da relação entre o valor da transformação industrial (VTI) e o valor bruto da produção industrial (VBPI) – que mede o quanto o processo de transformação industrial representa no valor total dos produtos –, a qual caiu de 47 em 1996 para 41,1 em 2004, crescendo um pouco a partir de 2006, fato que atribui aos incentivos a determinados setores da indústria, em função de políticas anticíclicas do governo, como a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para automóveis e linha branca. Tais estímulos foram eliminados no início de 2015, quando Joaquim Levy assumiu o ministério da Fazenda.
Fernando Maccari Lara, professor da Unisinos, do Rio Grande do Sul, fez um estudo do processo de desindustrialização para o período de 1994 a 2010, separando os indicadores nos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. O trabalho mostra que, no conjunto desses dezesseis anos, a taxa média de crescimento da indústria foi de 1,93% ao ano. Considerando apenas a indústria de transformação, que tem maior poder de repercussão sobre o desenvolvimento, a taxa foi ainda menor, de 1,51% ao ano, enquanto o crescimento médio do PIB foi de 2,58%.
Lara utiliza como indicadores a diferença, expressa em pontos percentuais (pp), entre a taxa de crescimento do PIB e a taxa de crescimento da indústria e entre a taxa de crescimento do PIB e a taxa de crescimento da indústria de transformação. Quando a diferença é negativa, isso indica desindustrialização. No conjunto dos dezesseis anos, a taxa diferencial para a indústria de transformação foi de -1,07 pp – ou seja, a economia como um todo cresceu mais do que esse ramo da indústria. Para o conjunto da indústria, a diferença foi de -0,65 pp. A desindustrialização foi maior no período Lula: -0,77 pp para o conjunto da indústria e -1,34 pp para a indústria de transformação (no período FHC, os índices foram, respectivamente, -0,52 e -0,79).
O estudo utiliza também dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) para analisar o comportamento do emprego, o outro indicador da desindustrialização. Para o conjunto do período há redução na participação do emprego industrial, que em 1994 representava 21,37% do total e caiu para 17,89% em 2010. Nos primeiros oito anos (período FHC) a taxa média de crescimento do emprego na indústria de transformação foi de 0,37% ao ano e a do emprego total foi de 2,43%, o que gerou o índice equivalente a -2,06 pp.
No período Lula, quando a taxa de crescimento do emprego em geral foi maior, de 5,51% ao ano, a da indústria de transformação atingiu 5,32%, o que resultou em -0,19 pp, evidenciando que, também por esse ângulo de análise houve desindustrialização nos dezesseis anos analisados. No caso do emprego industrial, o problema também vem de antes: a participação da indústria de transformação no conjunto do pessoal ocupado caiu de 15,5% em 1980 para 12,4% em 1995.
Uma das principais causas apontadas para a desindustrialização precoce é a valorização da taxa de câmbio. Lara mostra que no período de câmbio desvalorizado, que vai do quarto trimestre de 1998 ao quarto trimestre de 2004, as diferenças entre o crescimento do PIB e do emprego no conjunto da economia e os respectivos crescimentos na indústria e na indústria de transformação são sempre positivas, indicando maior crescimento da indústria do que no conjunto da economia. Nos dois períodos de câmbio valorizado, entre o quarto trimestre de 1994 e o quarto trimestre de 1998 e entre o quarto trimestre de 2004 e o quarto trimestre de 2010, no entanto, as diferenças entre todas as taxas são negativas.
A observação em detalhe sobre como se deu essa queda de participação da indústria na economia brasileira revela que o setor não só perdeu importância na economia como regrediu em seu desenvolvimento interno, concentrando-se mais e mais na produção de bens menos sofisticados tecnologicamente. Cano mostra em seu trabalho que o VTI do setor de bens de capital representava 15,6% do VTI correspondente ao conjunto da indústria de transformação em 1970 e alcançou 19,9% em 1980. Mas, em 1996 já havia caído para 14,4% e chegou a 10% em 2003 (em 2009, era de 11%).
Em seu estudo, Lara apresenta dados levantados por Ricardo Carneiro, professor da Unicamp, correspondentes ao período entre 1996 e 2008, os quais detalham os saldos comerciais brasileiros relativos a produtos industriais e não industriais a cada três anos. Os saldos dos produtos não industriais crescem a partir de 1996 de forma contínua e expressiva (de 510 milhões de dólares em 1996 para 26 bilhões de dólares em 2008). Já os dos industriais são negativos no período de valorização cambial ocorrido entre 1996 e 1999 (-5 bilhões de dólares e -4,5 bilhões de dólares, respectivamente), tornam-se positivos em 2002 (8 bilhões de dólares) e em 2005 (33,2 bilhões de dólares), quando o câmbio se desvaloriza, e voltam a ser negativos em 2008 (-1,3 bilhão de dólares), novo período de valorização. Enquanto os saldos comerciais dos produtos de média-baixa tecnologia e baixa tecnologia são sempre positivos, com maior crescimento no saldo dos produtos de baixa tecnologia, os dos produtos de alta e média-alta tecnologia são sempre negativos, de tal forma que em 2008 esse déficit chega a 51 bilhões de dólares, mais do que a entrada de capital estrangeiro na forma de investimento direto no Brasil naquele ano (45 bilhões de dólares).
A desvalorização cambial ao longo dos oito anos de governo Lula promoveu mudanças nos coeficientes de exportação e importação da indústria. O coeficiente de importação da indústria em geral passou de 14,6 % em 2005 para 21,8% em 2010 – no caso das máquinas e equipamentos para fins industriais e comerciais, saltou de 33% para 47,2%. O coeficiente de exportação da indústria em geral foi de 21,1% em 2005 para 18,9% em 2010, mas o de automóveis, caminhões e ônibus caiu mais, de 28,7% para 13,4%, enquanto o da indústria extrativa subiu de 54,5% para 75,3%, segundo dados da Fiesp apresentados por Fernando Maccari. E Carneiro observa ainda que dois conjuntos de setores aumentaram o coeficiente de exportação: o da empresas industriais ligadas à base de matérias-primas e o das produtoras de bens de capital, devido, neste caso, a uma tendência de crescimento de coeficiente de importação no setor, indicando atividades de montagem.
Mesmo o capital estrangeiro, que aumenta cada vez mais seu domínio sobre a indústria brasileira, está diminuindo seus investimentos no setor. Estudo da CNI, divulgado no início do mês passado, mostra que o investimento estrangeiro direto (IED) na indústria caiu de 46,5% em 2007 para 33% em 2013, enquanto o IED no setor agrícola e mineral cresceu de 13,9% para 26,2% e em serviços aumentou de 38,1% para 44% no mesmo período.
E com a perda do vigor da economia, que cresceu em ritmo lentíssimo nos últimos três anos, a situação da indústria ficou ainda mais agravada. Até no agronegócio se pode perceber o retrocesso. Nos últimos dez anos, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a produção de soja cresceu 73%, mas a capacidade de moagem da indústria aumentou apenas 35%, enquanto o volume de matéria-prima efetivamente processada cresceu menos ainda: 28%. E se em 2004 o Brasil processava 57% da soja produzida, a Abiove espera para este ano apenas 42%, devido, principalmente, a mudanças na China, que hoje prefere comprar soja para processar no próprio país. E mesmo a área automobilística, o setor mais dinâmico da indústria no País – o qual reduziu a produção de 2,8 milhões de veículos em 2010 para 2,7 milhões em 2014, período em que as vendas ao exterior passaram, respectivamente, de 610 mil para 397 mil unidades – estima forte retração este ano.
Diante da evidência da perda relativa do papel da indústria na economia, os empresários cobram medidas do governo. Em meados do ano passado, a CNI promoveu um debate com presidenciáveis, quando apresentou um conjunto de 42 proposições para o aumento da produtividade e da competitividade. A proposta da entidade estabelece para 2018 o cumprimento de cinco metas: sistema tributário livre de ineficiências que o caracterizam hoje, mudanças nas relações de trabalho no sentido de liberdade de negociação, crescente participação da iniciativa privada e maior alocação de recursos públicos em infraestrutura, juros em padrões próximos dos internacionais e taxa de câmbio competitiva, melhoria expressiva na educação básica. Nada muito diferente do rumo das reformas liberais dos anos 1990, cujo resultado foi exatamente a desindustrialização.
Carlos Pastoriza, presidente da Abimaq, eleito recentemente, disse ao diário Valor Econômico que, em conversas com empresários de diversos segmentos da indústria de máquinas, observou que muitos estão fechando fábricas e transformando suas empresas em importadoras. E as empresas que ainda estão resistindo constituem um parque fabril envelhecido, com equipamentos com dezessete anos de uso em média, segundo avaliação do ex-ministro do Desenvolvimento, Mauro Borges, exposta em evento sobre o comércio exterior brasileiro em 2014. Por essa razão, inclusive, um dos pleitos da Abimaq aos candidatos à Presidência da República foi a implantação de um programa de modernização, que vem sendo chamado de Modermaq, que envolveria crédito fiscal de 15% para empresas que comprovarem o descarte de máquinas antigas substituídas por novas.
Reverter o processo de desindustrialização não é fácil. Uma mudança na política de valorização cambial, como muitos reclamam, poderia, em tese, favorecer um processo de reindustrialização, como já ocorreu entre 1999 e 2004. Embora o câmbio tenha efetivamente um papel nesse processo, ele evidentemente não explica tudo. Basta ver que mesmo nos períodos de valorização cambial as áreas industriais menos avançadas tecnologicamente conseguem manter superávits, especialmente as de baixa tecnologia. Mas o problema está nos produtos de maior conteúdo tecnológico, nos setores de ponta, nos quais nossa indústria não é competitiva.
Em seu estudo, Cano aponta algumas das principais causas do processo que conduziu o setor a essa situação. Ele destaca a eliminação indiscriminada da proteção que o País tinha sobre as importações como um dos fatores que agravaram nossa desindustrialização. E, principalmente, o fato de ter assumido compromissos internacionais, como a entrada na Organização Mundial do Comercio (OMC), que o impede de enfrentar seus problemas com políticas adequadas. Cano atribui à abertura da conta de capital a questão central: China, Rússia e Índia, mesmo sendo economias de mercado, mantêm controle sobre entrada e saída de capitais internacionais e nacionais, sobre remessas de lucros e dividendos e sobre fluxos de investimentos.
Ele avalia que o que está ocorrendo com a indústria brasileira não é apenas uma crise passageira, mas a continuidade de uma longa crise iniciada no final da década de 1970, a qual destruiu instituições de desenvolvimento, debilitou o Estado e desvirtuou o caminho do empresariado produtivo e progressista. Ele lembra que nenhum país se tornou uma potência industrial sem forte apoio e proteção do Estado, cujos maiores exemplos são, antes da China, a Alemanha, o Japão e a Coreia do Sul. E no caso brasileiro, nenhuma política industrial será eficiente se não houver mudanças importantes na política macroeconômica, especialmente nos juros e câmbio e conta de capitais, além da subordinação à OMC.
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A lenta agonia da indústria brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU