Por: André | 04 Mai 2015
Quando um jornalista encara uma reportagem com uma personalidade determinante em sua área, uma das maiores expectativas é que aquilo que disser “vire notícia”. Esses conteúdos sutis, agudos, claros, que nos fazem nos deter, que nos indicam para onde vai o artigo, essas instâncias inesperadas nas quais o entrevistado afiata com o provável leitor e com o ocasional interlocutor. Esta expectativa está mais que cumprida com o arcebispo Víctor Manuel Fernández (foto), reitor da Universidade Católica Argentina (UCA).
Fonte: http://bit.ly/1DNhqjm |
Ele acaba de publicar um novo livro – é um prolífico autor há muitos anos: 300 títulos – Breve Guia para aplicar a Evangelii Gaudium, da Editora San Pablo da Argentina. Livro bom, mas vamos à conversa.
A entrevista é de Virginia Bonard e publicada por Noticelam, Agência de Notícias do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), 29-04-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Como lhe ocorreu escrever este guia tão, tão clarinho sobre a primeira encíclica (inteira) do Papa Francisco, Breve guia para aplicar a Evangelii Gaudium? E o que fez para conseguir – nesses 16 pontos – que nada do essencial tenha ficado fora e seja apto para qualquer leitor?
Existe uma grande dificuldade para aplicar os documentos da Igreja, porque muitas pessoas se prendem a detalhes secundários e não captam os eixos, as linhas principais e a mensagem fundamental de um documento. Assim, a maioria dos grandes documentos fica sem aplicação concreta. Isto se torna ainda mais grave com a Evangelii Gaudium, porque o Papa a apresentou como o “programa” do seu pontificado. O risco é que muitos gostem do Francisco, mas não apliquem o que ele propõe, e tudo segue como está. Por isso, pareceu-me urgente ajudar a captar os temas centrais da Evangelii Gaudium para mostrar, sobretudo, como podem ser aplicados nas dioceses, paróquias, movimentos, comunidades e instituições católicas.
Você pensa que o mundo está pronto para compreender a mensagem de vida cristã que este documento oferece e propõe?
A mensagem do Papa é clara, mas há três problemas: alguns dizem que não sabem concretamente como aplicar o que ele pede, e esse livrinho que escrevi pode ajudá-los nessa tarefa. Outros não aplicam as linhas do Papa por outra questão, muito pós-moderna: simplesmente porque não tem vontade, estão cômodos com seu estilo de vida e não lhes interessa gastar energias nem tempo em algo que nos lhes traga um benefício imediato. Em terceiro lugar, outros não as aplicam porque se fecham em sua própria ideologia e só estão esperando que o Francisco morra logo para não se sentirem interpelados para uma mudança.
Por associação, o que entende que acontece com as pessoas, instituições, líderes de diferentes âmbitos quando Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, irrompe no plano global?
Este Papa desestabiliza a todos, inclusive àqueles que pensam como ele. Porque exige de todos, sobretudo, um novo estilo de vida, com outros objetivos, uma mudança exigente em nosso modo de utilizar o tempo e as energias e uma capacidade de romper os esquemas pessoais e de se colocar no lugar dos que estão numa situação pior que a nossa. Porque não se trata só de dizer que gostamos do que diz o Papa. A questão é, como ele pede constantemente, viver mais desprendidos do nosso ego e dos nossos interesses pessoais, viver com mais generosidade, nos atrever a entrar em contato com as diferentes periferias que não fazem parte do nosso círculo fechado, etc. Se estamos aferrados às nossas comodidades, isso no fundo nos inquieta, nos perturba. Eu mesmo, que estou profundamente de acordo com suas linhas de pensamento, no entanto estou longe de ser um exemplo do que ele propõe. Porque o grande problema atual é traduzir o pensamento em estilos de vida coerentes. Esse é o drama da Igreja atual, que não consegue reagir.
No ano passado, você escreveu no jornal argentino Página/12 um artigo intitulado “A violência de não saber ler”. Interessante e aguda crítica aos meios de comunicação e sua capacidade de interpretação dos textos eclesiais. Como anda a relação com os meios de comunicação, com o jornalismo? Como pondera a comunicação da Igreja argentina tanto com meios confessionais como com meios não confessionais?
Peço-lhe que me permita deter-me nesta resposta, porque é de vital importância. A questão dos meios de comunicação faz parte, na realidade, de um problema mais amplo, que afeta a cultura atual em geral. Mas não estou dizendo que se tenha que criticar a cultura dos pobres ou dos menos instruídos. Pelo contrário, refiro-me à cultura dos setores intelectuais, profissionais, que se consideram a si mesmos os autênticos intérpretes da realidade. Por quê? Porque poucos se tomam o trabalho sério e profundo de procurar compreender o outro em suas preocupações, de entender o seu ponto de vista.
Na maioria das matérias jornalísticas nota-se a busca de um detalhe que sirva para a linha editorial ou para as diretrizes dos donos do próprio meio, ou a um determinado interesse político, econômico, etc. O que o outro quer transmitir realmente, a parte de verdade que há em suas palavras, a sua contribuição para a sociedade, interessa pouco e às vezes nada. Dessa maneira, não se oferece uma informação adequada que sirva à sociedade para formar sua própria opinião. Aos membros da Igreja preocupa-nos o fato de que as manchetes não refletem o que buscamos contribuir, ou que só se comuniquem alguns detalhes, mas não o fundo.
No entanto, a Igreja na Argentina não tem problemas com a imprensa, não está diretamente em confronto com ela. A relação dos bispos com os jornalistas é, em geral, excelente. Eu me sento frequentemente para conversar com jornalistas, tratando de analisar a fundo alguma questão, e nos entendemos. Creio que o problema não está nos jornalistas, mas no filtro de informação imposto pelos interesses editoriais, de tal maneira que se tornou normal que as coisas sejam tiradas do seu contexto e distorcidas segundo a conveniência da hora. Temos que nos resignar a isso? Não é possível outro tipo de jornalismo?
Também devemos reconhecer que há um ponto essencial pelo qual os outros não costumam nos compreender: um bispo ou um padre normalmente evita ser identificado como sendo da situação ou da oposição, porque um pastor deve estar aberto a todos e tenta não espantar a ninguém; caso contrário, perderia a possibilidade de ajudá-lo. Se se coloca muito do lado de um setor político, ou contra, acaba fechando as portas a quem tem outra opção política. Pode provocar seu afastamento da Igreja e até mesmo que não peçam o acompanhamento pastoral quando a morte, por exemplo, se aproximar. Sou testemunha de muitos casos assim. Quando um pastor faz um apelo à ação política (seja nacional, provincial (estadual) ou local) jamais o faz como opositor político, mas como um pastor que, vivendo a dimensão social do Evangelho, defende a dignidade do povo e os grandes princípios sociais. Do mesmo modo, se um bispo acompanha alguma iniciativa de um político, o faz porque o considera um bem para sua gente e não porque esteja apoiando a campanha pessoal do político. E o faz sabendo que ninguém é perfeito e que o trigo costuma vir misturado com o joio.
Por outro lado, se um leigo ou um grupo de leigos faz uma opção partidária e se posiciona a favor ou contra um partido, está no seu direito, mas não se pode dizer que “a Igreja disse...”. Nem sequer quando fala algum bispo de maneira individual ou um grupo de bispos, ou uma universidade católica, se pode dizer que “a Igreja disse”. Se em alguma ocasião quer emitir uma opinião como Igreja na Argentina, os bispos se reúnem, discutem vários dias palavra por palavra, vão se colocando de acordo pouco a pouco em relação ao tom do texto e seus acentos, e finalmente votam.
Os meios de comunicação não costumam entender tudo isso e, às vezes, tenta-se forçar uma palavra ou uma frase para que seja interpretada na linha de um determinado interesse político partidário. Isso dificulta enormemente que os ministros da Igreja façam chegar à sociedade a sua contribuição específica.
Muitos indicam que seu principal objetivo como reitor é aproximar a universidade dos setores mais humildes da sociedade, gerando sinergias de superação e mútuo conhecimento. É isso mesmo?
Desde que cheguei à UCA, além de me ocupar com as múltiplas exigências da gestão ordinária (revisão dos cursos, salários de professores, melhoria dos procedimentos, promoção da pesquisa, etc.), tive quatro preocupações que conversei várias vezes com o então cardeal Bergoglio.
Uma é a de aprofundar a vida espiritual na comunidade universitária, e nesse sentido a inauguração da igreja maior da universidade (com cinco missas diárias e a adoração permanente a Jesus Eucaristia) foi uma grande alegria.
Outra preocupação é acentuar a dimensão social da vida universitária, comprometida com os pobres. Isto foi se concretizando em vários programas de compromisso social que desenvolvemos especialmente na Favela 1-11-14 de Buenos Aires, mas também nas sedes de Rosário e Paraná. No ano passado, houve um fato muito eloquente nesta linha: os alunos da faculdade de Música ensinaram a tocar diversos instrumentos a adolescentes da favela (violino, oboé, etc.) e formou-se uma orquestra juvenil que tocou em um salão da UCA, incluindo peças de Mozart. Eles também tocaram uma peça de Piazzola acompanhados por um bandoneonista profissional do Teatro Colombo. Ver o resultado desse esforço, a alegria dos pais e o sentimento de dignidade que isto despertava nesses adolescentes, foi um dos melhores momentos que passei na UCA.
Uma terceira preocupação é a da presença pública da UCA: que seja um espaço de diálogo com a sociedade e seus problemas. Para isso quis fortalecer o ODSA (ampliando o número de casos, desenvolvendo novas temáticas, situando-o em um diálogo interdisciplinar, etc.). Nesta mesma linha quis que a reitoria fosse um espaço de diálogo sobre a sociedade, recebendo constantemente políticos, sindicalistas, empresários, profissionais e artistas.
Finalmente, uma quarta linha de trabalho foi promover a integração: o diálogo entre as diferentes ciências, cursos, faculdades, etc. Isto se plasmou, por exemplo, em alguns cursos e jornadas que quatro ou cinco faculdades organizaram e ofereceram conjuntamente. E nesta mesma linha, procurar que as disciplinas teológicas e filosóficas estejam melhor conectadas com o pensamento próprio de cada faculdade e cheguem realmente a penetrar o pensamento dos alunos, em vez de ser um peso ou uma chateação.
Você é considerado um dos homens de maior confiança do Papa Francisco, pessoa de consulta por suas múltiplas expertises teológicas, eclesiais, pastorais e de trabalho ombro a ombro. Como vive esta instância de serviço a um Papa que conhece muito bem e há muito tempo? E como viveu aquele já mítico 13 de março de 2013?
Creio que, como todo bispo, tenho que auxiliar na compreensão das propostas do Papa, porque a partir da minha fé católica estou convencido de que ele tem uma iluminação especial do Espírito e creio que ele é a pessoa que a Igreja necessita hoje. Fizemos a mesma coisa com Bento XVI: fizemos o esforço de compreender o que ele nos pedia e de aproveitar sua contribuição específica. O problema é que alguns ouvem um Papa só quando concordam com suas ideias ou com sua própria estrutura mental. Estes, embora pareçam muito conservadores na doutrina, no fundo parecem não ter fé na assistência especial do Espírito Santo que Jesus prometeu ao Papa. Sua pergunta é muito pessoal. Eu penso entender o que Francisco está propondo, mas seria um grave erro pedir que me ouçam em vez de ajudar para que se compreenda e aplique o que este grande pastor nos está propondo. Vivo com muita gratidão a paternidade do Papa. Não posso me apresentar como amigo, mas como filho e testemunha da imensa misericórdia deste grande homem que reflete a proximidade e a generosidade de Jesus Cristo.
E naquele 13 de março de 2013 fiquei pasmo. Alguns dizem que o haviam anunciado. Eu não esperava isso. Posso lhe dizer com toda a sinceridade que estava convencido de que a própria renúncia de Bento XVI manifestava a necessidade de começar uma etapa muito diferente na Igreja, que estava se afastando das pessoas. Mas ignorava quem poderia ser a pessoa adequada para conduzi-la. Quando vi o Bergoglio na sacada, disse a mim mesmo: “Como pude ser tão curto e incrédulo? Se estava claro que esta era a pessoa para este momento da Igreja e do mundo?” Tudo o que aconteceu depois e o lugar que a palavra do Papa tem no coração das pessoas e nos debates internacionais, o confirmou.
Gostaria de compartilhar uma experiência pessoal que teve com o cardeal Bergoglio naqueles dias de Aparecida, no Brasil?
Escrevi um livro sobre Aparecida, que inclui um diário onde narrei detalhadamente o que ia acontecendo e onde expliquei o sentido do que estava sendo decidido. Mas você me pergunta por alguma experiência pessoal relacionada ao Papa Francisco.
Conto-lhe o que vi nele durante esse mês. Fiquei admirado com sua paciência, como se estivesse completamente liberado da ansiedade e da obsessão (defeitos que eu possuo). Não tinha o projeto de impor determinadas ideias nem de obter resultados deslumbrantes. Interessava-lhe que as pessoas se manifestassem, dialogassem muito, debatessem, e fossem encontrando pouco a pouco grandes consensos. Ele presidia a comissão de redação do documento e eu era um participante. Os dias iam passando perigosamente e não se perfilava que pudéssemos chegar a redigir um documento. Corria-se o perigo de que se acabasse o tempo e não tivéssemos um texto terminado. Mas ele se empenhava em não precipitar nem forçar as coisas. Por isso, os últimos três dias foram uma corrida louca para conseguir fechar o texto. O próprio Bergoglio ficava até as três ou quatros da manhã (quando seu hábito era de ir dormir às 21h). Terminamos como pudemos, e ele mesmo, no último dia, me disse: “Faltou-nos um dia”.
Por isso – ele sabe disso –, esse documento não é uma joia literária nem um modelo de ordem e harmonia textual. Mas tem um imenso valor, que é o que Bergoglio lhe quis dar: expressa consensos reais, forjados em um intenso, paciente e prolongado diálogo. Isto permitiu que a Igreja na América Latina recuperasse um sentimento de identidade própria, de liberdade e de entusiasmo. A anterior Conferência de Santo Domingo foi sentida como excessivamente conduzida pela cúria vaticana, que queria evitar que se dissessem coisas que considerava inconvenientes. Por isso, Bergoglio queria que Aparecida devolvesse à Igreja da América Latina uma experiência de responsável liberdade e cujo documento expressasse realmente as inquietudes dos participantes.
Poderia fazer algum comentário sobre a nova encíclica que o Papa está preparando sobre a ecologia?
Soube que a encíclica do Papa sobre a ecologia será uma contribuição diferente da Evangelii Gaudium. Porque se tratará de um texto mais reflexivo, que ajudará a compreender a profundidade do pensamento de Francisco. Sabe-se que foi elaborada consultando centenas de pessoas e que significa um grande esforço interdisciplinar, para que o pensamento cristão mostre sua fecundidade no diálogo com as ciências e com as preocupações da sociedade. Nesse sentido, intuo que será uma encíclica muito inovadora e enriquecedora, por seu estilo, por sua forma de encarar a temática, por sua metodologia, por sua linguagem. Evidentemente, não creio que lhe faltem essas frases pungentes e exortativas características deste Papa. Ouvi dizer que sairá no final de maio, e desse modo se antecipará às reuniões de julho que prepararão a cúpula do final do ano sobre o meio ambiente (Paris). Isto nos leva a pensar que fará fortes exigências à política internacional.
E a última pergunta já com o pé sobre o estribo. Chegou a informação de que se está trabalhando no âmbito universitário (várias universidades, inclusive a UCA) em um projeto sobre drogas/narcotráfico a pedido do Papa Francisco.
Na realidade há apenas um espaço de diálogo entre algumas universidades e outras instituições, mas isso está in fieri, ainda não é algo acabado de um ponto de vista acadêmico e profissional. Com respeito ao Papa Francisco, ele não costuma solicitar este tipo de coisas. O que sempre faz, quando alguém comenta com ele um projeto, é dizer: “Em frente!” Isso não significa estritamente que ele o solicite. A UCA participa dessas reuniões porque nos interessa trocar opiniões e pensar em possíveis projetos.
Por outro lado, a UCA já tem um Barômetro da drogadição e vícios, que trabalha com parâmetros científicos, e que fará sua primeira apresentação em meados de maio. Inclui um estudo quantitativo sobre drogadição na Argentina baseado em 5.700 casos, mais um aprofundamento sobre a cidade de La Plata, além de um complemento qualitativo baseado em lugares da Grande Buenos Aires.
O grande valor deste Barômetro é que cada ano apresentará um relatório que permitirá comparar com os dados do ano anterior e ver a evolução. Falei sobre isso com o Papa, para acompanhar sua preocupação com esta questão, e como sempre, me disse: “Em frente!”
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“Este Papa desestabiliza a todos”. Entrevista com Víctor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU