13 Março 2015
A arma do crime é uma revista, e o cenário, a internet. No primeiro número do ano da revista de sociologia "Sociétés", Manuel Quinon e Arnaud Saint-Martin publicaram, sob o pseudônimo de Jean-Pierre Tremblay, um artigo dedicado ao Autolib', o serviço parisiense de compartilhamento de carros elétricos.
A reportagem é de Benoît Floc'h, publicada no jornal Le Monde e reproduzida pelo portal Uol, 12-03-2015.
Esse texto, baseado em "uma pesquisa de campo aprofundada, ela mesma combinada a um fenômeno hermenêutico consistente", pretendia mostrar que o carro da Bolloré é "um indicador privilegiado de uma dinâmica macrossocial subjacente: ou seja, a passagem de uma episteme 'moderna' para uma episteme 'pós-moderna'". A formulação é erudita, mas não importa. O artigo é uma farsa grosseira, um "hoax".
E foi também uma bomba jogada sobre um pedaço de território da sociologia. Em um texto postado na internet no dia 7 de março, depois que saiu a edição da "Sociétés", os dois farsantes entregaram o jogo. O objetivo deles era "tirar a sociologia de seu torpor", desmontando por dentro "a fraude daquilo que chamaremos de 'maffesolismo', ou seja, bem além somente da personalidade de Michel Maffesoli, fundador e diretor da revista 'Sociétés', uma certa 'sociologia interpretativa/pós-moderna' de vocação acadêmica". Eles também atacam essas "revistas fajutas sem ética" que "publicam qualquer coisa". De forma geral, a proposta é denunciar a "junk science", não rigorosa, casual ou até forjada. Jean-Pierre Tremblay, no caso, não existe.
"Dados pobres"
Eles descrevem em seu texto a forma como atuaram, espantados com o fato de que essa "soma de besteiras" tenha encontrado lugar em "uma revista que proclama sua cientificidade". Jean-Pierre Tremblay não fez "pesquisa de campo". "Vamos ser diretos", afirmaram aqueles que escreveram em seu lugar: "não, nunca entramos em um Autolib' e nunca 'experimentamos' por um único segundo sua direção. Os únicos dados que utilizamos eram pobres."
O não uso do transporte por via terrestre não impediu os transportes verbais: "Em quatro, os passageiros ficam apertados, melhor ainda", escreve Jean-Pierre Tremblay. "Os corpos se tocarão em um abraço passageiro, eles se unirão nessa réplica do ovo primordial destacado da matriz (o poste de recarga elétrica), conectada/a reconectar."
O intrépido Tremblay mostra que o Autolib' anuncia "uma nova tecnossocialidade" e se inspira em um modelo materno: "Assim, a masculinidade apagada, corrigida e até desviada do Autolib' pode (enfim!) dar lugar a uma maternidade oblonga, não mais ao falo e à energia seminal do carro esportivo, mas sim ao útero acolhedor da estação do Autolib'."
Manuel Quinon e Arnaud Saint-Martin persuadiram os integrantes da revista de Michel Maffesoli usando todos os subterfúgios possíveis. Assim como para qualquer pastiche, a ideia é imitar a "maneira de fazer": "o texto estava repleto de todas as referências bibliográficas que bajulam a ideologia espontânea do maffesolismo", eles afirmam. Seguindo essa linha, os autores não pouparam nem a mitologia nem os "misteriosos oximoros dispensados pelo professor". O que não os impediu de incrementar seu texto com "jogos de palavras terríveis e sem nenhum sentido" e fotos "grotescas".
"O texto não suscitou nenhuma avaliação, nenhum parecer", dizem os autores. "A 'Sociétés' é uma peneira". No entanto, Michel Maffesoli, professor aposentado da Universidade Paris-Descartes, reconhece que foram "dois professores universitários" que releram o texto. "Um deles emitiu um parecer negativo", ele conta ao "Le Monde". "O segundo considerou, por pura negligência, que era bobagem, o assunto não era desinteressante e podia passar. Foi uma negligência repreensível, isso mostra que não fui vigilante o suficiente. Então, a partir de agora, será outro colega a assumir a direção da revista. E eu apresentarei minhas desculpas no próximo número. Quanto ao resto, estou tranquilo."
O "resto" evidentemente é o ataque lançado contra a "sociologia pós-moderna". Os autores publicaram um estudo sem pesquisa nem provas pensando em denunciar "o método no mínimo indiferente com o qual Maffesoli e seus alunos coletam os fatos, método no qual nos inspiramos amplamente para redigir nossa farsa".
"A ideia de que se pode tirar conclusões gerais a partir da experiência de uma única pessoa", alfinetam Quinon e Saint-Martin, "fere todos os preceitos das ciências humanas e sociais, a menos que se admita, como parece fazer Maffesoli e alguns de seus epígonos, que estas últimas não diferem em nada de conversas de boteco."
Maffesoli refuta essas acusações. "Desde a tese de [Elizabeth] Teissier, todas as oportunidades têm sido boas para me atacar", suspira o professor. "São colegas que estão se vingando por inveja, porque sou convidado por todos os lugares, porque sou publicado e traduzido..." A tese em questão foi defendida pela astróloga midiática Elizabeth Teissier em 2001, orientada por Michel Maffesoli. Ela provocou grande polêmica no meio acadêmico.
"Herói da sociologia"
Um dos membros da revista, Stéphane Hugon, considera que Arnaud Saint-Martin está procurando sobretudo um "cargo". "Aos 40 anos, ele ainda não é professor", ele diz. "Esse é o cerne da questão. Ele está procurando um cargo, uma legitimidade. Autoridade é o poder de dizer, e hoje ele não tem isso. É por isso que ele quer bancar o herói da sociologia…"
Essa afirmação diverte Arnaud Saint-Martin: "Eu sou pesquisador no CNRS", ele retruca. "Já tenho um cargo fixo e não quero ser professor. A questão não é essa, mas sim mostrar a futilidade de um discurso que tem uma audiência, sobretudo na mídia, mas nenhuma base científica. É usurpação, vender filosofia ruim como sociologia... Espero que tenhamos conseguido provocar um debate saudável sobre a cientificidade da sociologia, uma disciplina ainda considerada sem seriedade, por alguns."
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Sociólogos usam nome falso para publicar 'pegadinha' e denunciar revista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU