11 Março 2015
Se hoje temos à disposição a Bíblia de Jerusalém, verdadeiro texto de autoridade no campo dos estudos escriturísticos, devemos o mérito a um tenaz dominicano francês, capaz de fundir fé e ciência, razão e religião, ao avaliar criticamente a autorrevelação de Deus em forma humana, a Escritura, justamente.
A reportagem é de Lorenzo Fazzini, publicada no jornal Avvenire, 07-03-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Homem de fé e de ciência, nascido há 160 anos (7 de março de 1855), Marie-Joseph Lagrange foi o fundador da École Biblique de Jérusalem (instituída em 1890), cujos estudos arqueológicos, filológicos e exegéticos levaram à edição da Bíblia citada acima, importada na Itália nos anos 1960 pelas edições Dehoniane e ainda hoje o texto bíblico com o melhor comentário disponível, segundo a opinião unânime dos especialistas.
Se a estatura de Lagrange como homem de ciência, conhecedor como poucos do mundo do antigo Oriente, das suas línguas (no seu Journal Spirituel – tomo denso, recém-publicado na França pela editora Cerf (528 páginas) – ele anota as datas de início do aprendizado de hebraico, siríaco, árabe, assírio) é bem conhecida, o seu perfil de místico e asceta é igualmente inédito e interessante.
De fato, o padre Marie-Joseph se destaca nessas suas anotações espirituais como um crente em todos os sentidos, realmente piedoso, orante e penitente. Capaz, nisso, de despertar toda a admiração de outro grande estudioso da Bíblia, Carlo Maria Martini.
Este último, em uma nota inédita contida na introdução do Journal, afirma: "Sempre olhei com gratidão para essa figura de estudioso e de filho devoto da Igreja, e fico contente por saber que ele também era um homem fervoroso, um homem cuja oração era fogo".
Martini, nessa comunicação confidencial aos promotores da causa de beatificação de Lagrange, iniciada em 1986, atesta a fundamental importância de Lagrange para a exegese: "Considero que o padre Lagrange é como que o iniciador de todo o renascimento católico dos estudos bíblicos".
Ainda mais que o horizonte do dominicano transalpino era realmente de largas e amplas visões: quando o diálogo inter-religioso ainda não era uma prioridade dentro do âmbito eclesial, ele já projetava uma teologia semita (estamos em 1900): "O que eu gostaria como programa é a religião dos semitas. Teologia do Antigo Testamento, talvez do Novo e, consequentemente, do messianismo. Tomar notas para tudo isso, em suma, sobre quase toda a Bíblia".
Mas o caminho desse dominicano esteve longe de ser fácil, e as suas anotações espirituais – publicadas pela primeira vez no Jornal, fruto da transcrição (com duração de vários anos) de dois manuscritos que chegaram até nós, um terceiro se perdeu – confirmam isso.
Em 1881, ele correu o risco de exclusão do colégio, por causa da sua exuberância. Ainda no mesmo ano, emergem as controvérsias intelectuais com os jesuítas, um choque cultural que o manteria ocupado por muito tempo, tanto que, em 1911, chegou a afirmar: "Eu pensava que já tinha desarmado os adversários por força de tato e prudência... Mas eis que a fundação autorizada pelo papa [o então Pio X] de uma sucursal do Instituto Bíblico [dos jesuítas] de Roma [em Jerusalém] nos traz uma ameaça de ruína", onde o plural indica a École, da qual Lagrange sempre se sentiu pai e protetor.
E não se pense que a oposição à abordagem histórico-crítica à Bíblia só fosse de proveniência vaticana. Lagrange também denuncia "a oposição surda da casa generalícia" da sua ordem: "Talvez seja a primeira vez – escrevia ele em 1913, quando a sua criatura intelectual estava afirmada, mas já tinha recebido as primeiras críticas – que eu sou tão claramente aprovado pelo Padre Geral".
Sim, porque, apenas dois anos antes, ele anotava desconsolado: "Ontem à noite, eu estava completamente desencorajado ao abordar qualquer livro bíblico... Depois de 21 anos de esforços, ser ainda tão suspeito... Mas, esta manhã, eu me decidi: estar mais perto de Jesus. Nenhum outro estudo que não seja o Evangelho me aproximará da sua pessoa nem me fará degustar os seus ensinamentos".
Deve-se assinalar, além disso, que, com Leão XIII, Lagrange tinha recebido um forte e preciso apoio: "Quando ele me chamou a Roma, me admirei que a crise tinha passado tão rapidamente", apontou ele em 1908, enquanto, em 1913, admitiu: "Dou-me conta de que nunca deixei de desejar o retorno da simpatia como ocorria com Leão XIII".
Esse "retorno" já se completou em 1926, quando Lagrange confidencia nas suas páginas: "Todos me dizem que eu devo escrever uma vida de Jesus", e aquele "todos" é muito significativo. "Sinto que eu sou indigno disso, como essa tarefa supera as minhas forças... mas parece que eu vislumbre como, sem desejá-lo deliberadamente, todos os meus pensamentos se dirigiram do meu ingresso ao seminário a uma espécie de apologia histórica da manifestação de Nosso Senhor".
Eis a expressão que resume a vida, espiritual e intelectual, de Lagrange: "Apologia histórica". Ou seja, copresença de estudo ("histórico") e de fé ("apologia"): "A grande razão de crer é a razão dos simples" – sublinhava ele em 1898: "Da autoridade humana da Igreja à sua autoridade divina: Deus se encontra ali! E é por isso que os argumentos de credibilidade dos doutos podem mudar enquanto aquele não muda nunca".
E, na sua verve apologética, Lagrange – não nos esqueçamos de que estamos nos anos da desmistificação do cristianismo do fim do século XIX e início do século XX – não hesitava em apelar justamente para a história, viva e combativa, do cristianismo para assinalar a sua originalidade: "Aqueles que dizem que o cristianismo é uma sequência natural da filosofia pagã não leram os Atos dos mártires. É aqui que aparece o triunfo de Cristo sobre uma falsa sabedoria: mulheres e crianças que venceram a resistência da natureza contra a graça".
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Lagrange, o místico da Bíblia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU