12 Fevereiro 2015
"Ivereigh compara o sucesso de Aparecida com as conclusões tímidas e controvertidas do recente Sínodo para a Nova Evangelização, que acabou reforçando a impressão de uma Igreja 'desolada, voltada a si mesma, excessivamente focada nas sombras, com um medo exagerado de ameaças percebidas'", escreve John Cavadini, consultor do Comitê de Doutrina dos bispos norte-americanos, em artigo publicado por Commonweal, 22-01-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope [O Grande Reformador Francisco e a construção de um papa radical, em tradução livre.] de Austen Ivereigh, Henry Holt, 445 p. [Nota da IHU On-Line: Acaba de ser publicada a tradução italiana com o título Tempo di Misericórdia. Vita di Jorge Mario Bergoglio. Mondadori, 2014, 450 pp)]
“The Great Reformer” [O Grande Reformador] é um livro magnífico que deve conquistar um amplo público leitor. A obra resulta de uma excepcional pesquisa biográfica e de um bom juízo; fornece informações úteis aos leitores que desconhecem a história da Argentina, os jesuítas, e mesmo a linguagem e os costumes católicos. Austen Ivereigh consegue iluminar todos os aspectos que envolvem a liderança de Francisco – em particular, os aspectos incomuns que vêm atraindo a admiração de alguns e preocupações de outros, e em muitos casos ambas as coisas ao mesmo tempo.
Ivereigh organizou cronologicamente o livro. Porém cada capítulo começa com uma qualidade da vida de Francisco como papa que ilumina – ou é iluminado pelo – período da vida de Francisco considerado no mesmo capítulo. Por exemplo, o capítulo de abertura, que descreve o próprio histórico de Francisco como imigrante, é prefaciado com um relato de sua visita papal a Lampedusa, onde ele se encontrou com imigrantes africanos. De modo semelhante, o capítulo sobre a sua eleição como provincial jesuíta aos 36 anos de idade começa descrevendo o seu estilo intimista como papa, um estilo que se reflete em sua insistência – tanto como provincial quanto agora como pontífice – no encontro pessoal com os pobres. Como provincial, Jorge Bergoglio viveu no Colégio Máximo, seminário jesuíta. Aí ajudou que pessoas escapassem da ditadura militar argentina, embora ele fosse mais tarde ser (falsamente) acusado de colaborar com a ditadura. O capítulo que relata os primeiros anos de Bergoglio como arcebispo de Buenos Aires, incluindo o seu papel central na conferência dos bispos latino-americanos em Aparecida no ano de 2007, é prefaciado com a história de como ele se tornou um candidato ao papado no conclave que, por fim, elegeu o Papa Bento XVI – e do porquê Bergoglio retirou o seu nome.
Como o título sugere, o livro conta a história de alguém cuja vida inteira como líder na Igreja esteve dedicada a reformar – primeiramente, em sua própria província jesuíta, em seguida na arquidiocese de Buenos Aires e, finalmente, como papa. Os princípios de reforma de Francisco vêm se mostrando destacadamente consistentes. Em primeira instância, se baseiam em sua leitura das obras de Inácio de Loyola, este mesmo um reformador. Os princípios postos em prática também se baseiam em seu conhecimento da história dos jesuítas e, em particular, das comunidades indígenas promovidas por eles chamadas “Reduções”, que os missionários jesuítas organizaram no intuito de proteger os índios da ganância dos colonizadores espanhóis. “Os jesuítas agiram, essencialmente, como agentes comunitários do século XVII entre os pobres”, escreve Ivereigh. A independência dos jesuítas e de suas comunidades indígenas ofenderam os monarcas absolutistas de Portugal, da França e Espanha; então, os jesuítas foram ordenados a se retirarem.
Uma outra fonte para a teoria de Bergoglio sobre a renovação da cultura e vida eclesial é a obra “Verdadeira e falsa reforma na Igreja”, de Yves Congar, publicada em 1950. Congar ensinou que a reforma verdadeira “sempre esteve enraizada na preocupação pastoral pela vida cotidiana das pessoas; sempre esteve orientada e configurada para a periferia, não para o centro”. Novamente, Bergoglio lançou os seus programas e iniciativas com a exortação de se ir às periferias e, uma vez aí, não impor uma “ideologia”, mas aprender com as pessoas – com o santo pueblo fiel de Dios. Como Ivereigh escreve, a reforma verdadeira envolve não evitar, mas aprender a partir das “formas da religiosidade popular – as devoções e procissões, os festivais e oferendas, novenas e rosários – que são descritas, com tanto poder, no documento de Aparecida [escrito por Bergoglio] como o lugar onde os pobres encontram Deus, tomam decisões importantes e se convertem”. O pueblo fiel serve como a “hermenêutica da reforma verdadeira”.
O primeiro alvo das reformas de Bergoglio na Argentina foi a Companhia de Jesus, que vivenciou uma escassez tão grave de vocações que nenhuma pessoa sequer foi ordenada na província no ano seguinte à sua própria ordenação. Ele implementou um novo e ousado programa no Colégio Máximo, combinando um retorno à educação humanista com um alcance missionário direto ao pobres e trabalhadores braçais (pois os pobres são os que têm de trabalhar). “Foi”, escreve Ivereigh, “uma ‘enculturação’ radical para dentro da vida do povo fiel de Deus”, inclusive aprendendo e rezando as devoções que as pessoas praticavam. A ideia de Bergoglio para os seminaristas era a de que “apenas partilhando da vida dos pobres (...) é que se poderia descobrir ‘as possibilidades verdadeiras da justiça no mundo’, em oposição a uma ‘justiça abstrata que não gera vida’”. Os alunos acharam esta visão “profundamente atraente” e o Colégio começou a transbordar de vocações, mesmo enquanto a comunidade vizinha de San Miguel se transfigurava. Mas a reforma de Bergoglio foi, por fim, renegada pelos jesuítas mais antigos, com tendências de esquerda, os quais não acreditavam que ela se embasava suficientemente numa análise científica da situação social dos pobres, religiosos que se ofenderam ao descobrir que os seminaristas jesuítas estavam aprendendo e rezando as devoções de pessoas sem instrução.
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Em 1992, Bergoglio foi nomeado bispo auxiliar da Arquidiocese de Buenos Aires sob a liderança de Dom Antonio Quarracino, “que tinha visto a forma como o trabalho pastoral de Bergoglio transformara San Miguel e que tinha ficado chocado ao saber que os jesuítas o haviam condenado ao ostracismo”. Bergoglio se propôs a reformar a Igreja em Buenos Aires em harmonia com as ideias que já tinha usado com os jesuítas. Acima de tudo, tratava-se de ir às periferias como uma forma de combater aquilo que o teólogo jesuíta francês Henri de Lubac chamava de “mundanidade espiritual” (“usar a Igreja para fins temporais – para ganho político ou pessoal – transformando-a num instrumento de manuseio humano”). Como bispo, era um objetivo de Bergoglio reformar a Igreja local, salvá-la de uma “rede elaborada de mundanidade espiritual que se estendia desde a Igreja em Buenos Aires até o Vaticano”, escreve Ivereigh. Bergoglio trabalhou em quatro frentes principais: “os pobres, a política, a educação e o diálogo com as outras igrejas e religiões”. A seu ver, estas quatro áreas se inter-relacionavam entre si. A opção pelos pobres exigia uma crítica do poder; também significava uma renovação e expansão dos ministérios educativos da Igreja. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento das relações com os demais cristãos, judeus e muçulmanos permitia que os pobres se tornassem uma prioridade inter-religiosa. Ao ir às periferias da sociedade, Bergoglio pôde inspirar as pessoas a recuperarem o básico do engajamento cívico: o cuidado pelo próximo e a identificação da bondade deles com a sua própria bondade. A esquerda queria mais ideologia; a direita pedia mais patriotismo. Mas Bergoglio manteve-se focado na vizinhança e na solidariedade prática.
Como arcebispo de Buenos Aires, ele desempenhou um papel fundamental na assembleia geral do Conselho Episcopal Latino-Americano – CELAM, em Aparecida, no ano de 2007. Dada a tarefa de redigir o documento final do encontro, Bergoglio fixou-se na abordagem do pueblo fiel. O documento foi, segundo Ivereigh, “a expressão de uma nova maturidade, o amadurecimento de uma Igreja local”. O autor sustenta que esta assembleia, como um todo, representou um avanço.
Em sua visão e vigor, em sua defesa incisiva dos pobres e em sua espiritualidade missionária; em sua proclamação arrojada do nascimento de uma nova primavera da fé, o documento de Aparecida era, agora, o programa e a chave para um novo esforço de evangelização na América Latina.
Ivereigh compara o sucesso de Aparecida com as conclusões tímidas e controvertidas do recente Sínodo para a Nova Evangelização, que acabou reforçando a impressão de uma Igreja “desolada, voltada a si mesma, excessivamente focada nas sombras, com um medo exagerado de ameaças percebidas”. Foi a “Igreja do mundo rico (...) culpando a cultura, em vez de si mesma, por seu declínio”. Quanto ao documento de Aparecida, em nenhum outro lugar do mundo houve algo comparável a ele. Ele se transformou no programa para a Igreja universal. Tudo o que se precisava, neste momento, era de um papa latino-americano que trouxesse a chama da periferia para dentro do centro do catolicismo, este cada vez mais desolado”. Então, chegamos, no livro de Ivereigh, ao papado de Francisco, com a Igreja latino-americana apresentando uma proposta viável para substituir a Igreja europeia como a “Igreja fonte” para o resto do mundo.
Na época do bicentenário da Argentina, a conferência argentina dos bispos, sob a presidência de Bergoglio, divulgou um documento convidando o país a abraçar um projeto ambicioso de renovação baseado no bem comum, no espírito do documento de Aparecida. Ivereigh sustenta que o “pensamento profundo” por trás deste documento pode ser encontrado em alguns dos escritos mais recentes de Bergoglio. Como o autor explica: o que reteve o pueblo não mais era a ideologia marxista, mas aquilo que chamou de “gnosticismo teísta”, uma nova forma de pensar, sem corpo, que em termos eclesiais pode ser dito como “Deus sem Igreja, uma Igreja sem Cristo, Cristo sem povo”. Contra este “teísmo pulverizador” de elite, Bergoglio estabeleceu aquilo que chamou lo concreto católico, a coisa concreta católica, que estava no coração da história e cultura do povo latino-americano.
Esta “coisa concreta católica” é, até mesmo mais do que o próprio Papa Francisco, o núcleo do livro de Ivereigh. Através de uma exposição das realizações do papa, Ivereigh apresenta carinhosamente a “coisa concreta católica” como algo que ainda tem o poder de criar solidariedade, esperança e renovação verdadeiras na Igreja e no mundo. Ao comentar a exortação de Francisco contra a mundanidade espiritual, Ivereigh observa: “A Igreja, por várias vezes Francisco fez notar, não é um ONG, mas uma história de amor, e os homens e mulheres estão ligados nesta ‘cadeia do amor’. ‘E se não entendemos isso, não entendemos nada daquilo que é a Igreja’”. A questão posta ao leitor é: Podemos ainda, em pleno século XXI, acreditar em histórias de amor? Podemos acreditar nesta história? Se sim, sugere Ivereigh, e somente assim, é que poderemos começar a perceber as possibilidades de uma reforma genuína em nossos corações e na Igreja.
Nota da IHU On-Line: O livro, segundo a nossa opinião, é importante, até imprescindível, para compreeder o pontificado do Papa Francisco. Por isso, temos publicado tantas resenhas e avaliações do livro.
Sobre o livro de Austen Ivereigh veja as resenhas publicadas no sítio do IHU:
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Francisco, O Grande Reformador. Biografia do Papa escrito por Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU