Por: Cesar Sanson | 09 Fevereiro 2015
"É forçoso reconhecer, não são os/as eleitores/as que decidem, é o poder econômico. Se queremos acabar com esta frustração, repetida a cada vez, temos de mudar o sistema político", constata o Informe Abong publicado no portal da Abong, 05-02-2015.
Eis o editorial.
É comum dizer que o Brasil é uma democracia. De fato, pelos parâmetros usuais – eleições regulares e liberdade de opinião e de expressão – somos um país democrático. Sobretudo se levamos em conta que tivemos vinte e um anos de ditadura, durante a qual as liberdades foram suspensas e as eleições, quando ocorreram, foram controladas. Mas, basta aprofundar um pouco mais sobre o sentido da palavra democracia para percebermos que somos um regime com vários elementos formais da democracia, mas onde a maioria não tem qualquer poder na definição da política, onde o povo, portanto, não é o soberano.
Examinemos os fatos recentes. O povo brasileiro votou, em outubro passado, para presidente e elegeu Dilma Rousseff, numa campanha em que defendeu as conquistas sociais e o não retrocesso em relação aos direitos dos/as trabalhadores/as. O candidato adversário, derrotado, defendia mudança na política econômica, maior rigor no controle dos gastos sociais e maior abertura ao mercado. A candidata vitoriosa, antes mesmo da posse, tomou medidas que faziam parte do programa da oposição e nomeou ministros que representam o oposto do que ela havia defendido ao longo da campanha.
Que democracia é essa?
Isso nos leva a perguntarmos quem detém de fato o poder no Brasil. Os/As eleitores/as? Seria mais correto dizer: os financiadores das campanhas eleitorais: bancos, empreiteiras e expoentes do agronegócio. A política econômica que foi anunciada e está sendo adotada atende aos interesses do capital financeiro, em primeiro lugar, em seguida aos interesses das grandes empreiteiras e do agronegócio. Os juros já subiram – e sabe-se que vão subir mais -, garantindo lucros certos aos bancos e investidores financeiros. Enquanto isso, para "colocar ordem no caos", direitos sociais estão sendo atingidos: pensões de viúvos/as, seguro-desemprego, abono salarial, crédito para compra de casa pela Caixa Econômica Federal.
As usinas hidrelétricas em construção nos rios da Amazônia – tanto as que estão em curso quanto as projetadas – estão garantidas, a despeito de as principais empreiteiras envolvidas nestas obras serem acusadas de corrupção na Operação Lava Jato - que investiga acusações de pagamento de vultosas propinas em troca de obras públicas com superfaturamento. O agronegócio, a despeito de o governo se dizer defensor dos/as trabalhadores/as, emplacou sua principal líder no Ministério da Agricultura. O que evidencia que não há nem haverá qualquer coisa parecida com reforma agrária nos próximos anos: trabalhadores/as sem terra e pequenos/as agricultores/as deverão se contentar com migalhas.
A "política de austeridade", adotada na Europa pelos países endividados – Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda, mas também França, Itália, entre outros -, é a opção econômica do segundo mandato do governo Dilma. Todos/as os/as analistas sabem dos desastrosos resultados desta política lá, o contrário das previsões de seus idealizadores: aumento da dívida pública, empobrecimento da população, aumento do desemprego, perda de direitos sociais, desmonte do Estado de bem estar, crescimento econômico estagnado ou negativo. Se já sabemos que são estes os resultados, por que esta escolha? Não só os prêmios Nobel de Economia Joseph Stiglitz e Paul Krugmann, mas também os/as nossos/as economistas de competência reconhecida como Maria da Conceição Tavares, Luiz Gonzaga Belluzzo, entre outros/as, denunciaram o caráter deletério da chamada "política de austeridade".
Então, é forçoso reconhecer, não são os/as eleitores/as que decidem, é o poder econômico. Se queremos acabar com esta frustração, repetida a cada vez, temos de mudar o sistema político. Em primeiro lugar, acabando com a possibilidade de financiamento empresarial privado: banco não vota, empreiteira não vota, agronegócio não vota, portanto, não podem financiar campanhas. Quem vota são os/as cidadãos/ãs, eles/as é que formam a maioria que deveria decidir os destinos do país.
Diz-se que o Congresso eleito reflete o povo brasileiro. Não é verdade: a grande maioria do povo brasileiro é constituída de trabalhadores/as, as grandes bancadas no Congresso são a bancada dos/as ruralistas (grandes proprietários/as de terra), que representam 1% dos/as proprietários/as no campo; a bancada da bala, que representa as indústrias de armas (uma minoria dentro do empresariado brasileiro que, por sua vez, é minoria entre os/as eleitores/as); a bancada do setor privado na saúde (planos e seguros de saúde); e poderíamos citar outras. No conjunto do eleitorado brasileiro, os/as eleitos/as representam a minoria da minoria: 90% dos/as eleitores/as brasileiros/as não estão representados neste Congresso.
Alguém poderá questionar dizendo que, no entanto, foram os/as cidadãos/ãs que os/as elegeram. Sem dúvida. Foram os/as cidadãos/ãs que votaram sob a influência absolutamente desigual da propaganda dos/as candidatos/as com recursos e da campanha feita pela grande mídia – aliada dos grupos econômicos mais fortes. A maioria dos/as eleitos/as é constituída por aqueles/as financiados/as pelos bancos, empreiteiras, agronegócio, multinacionais da agricultura, empresas interessadas no voto dos/as parlamentares em favor de seus negócios. No Congresso, estes/as se tornam defensores/as dos interesses das empresas, não dos/as cidadãos/ãs que neles/as votaram.
O Senado acaba de eleger seu presidente, Renan Calheiros (PMDB), e a Câmara elegeu o seu, Eduardo Cunha (também PMDB), ambos alvos de acusações por corrupção. A diferença entre os dois é que um é permanente aliado do governo Dilma e o outro é oposição explícita. Qual o interesse de um ou de outro no que pensam ou no que desejam os/as eleitores/as brasileiros/as? Nenhum. Seu interesse se dirige unicamente àqueles/as que podem lhes dar mais poder ou mais recursos (ou ambos). Este é o poder legislativo no Brasil. O povo sabe perfeitamente o que pode esperar da grande maioria destes seus/suas "representantes".
É este o sistema político vigente. Neste sistema, é assim que funcionam as eleições, é assim que alguém é eleito/a presidente/a (ou governador/a, prefeito/a, deputado/a ou senador/a), é assim que o governo obtém "governabilidade" (maioria de parlamentares para votar em seus projetos). E, neste sistema, como vimos, quem manda é o poder econômico. O governo não é refém - obrigado a fazer o que não quer -, o governo age em seu nome, toma medidas a seu serviço, se submete ao "mercado" (o poder econômico).
É verdade que este mesmo governo toma medidas sociais, tem um programa “Bolsa Família” para os/as mais pobres, aumenta o salário-mínimo (um pouco) acima da inflação, oferece um programa "Minha Casa Minha Vida" (com todos os defeitos que possa ter), em suma, é um governo com viés social – viés que os governos tipicamente de direita não têm. Mas, a diferença acaba aí: o governo atende aos/às mais pobres, melhora a situação dos/as trabalhadores/as, mas atende sobretudo aos/às mais ricos/as, é a eles/as que serve em primeiro lugar, é para eles/as que a maior parte do orçamento público é dirigido. E, quando vem a crise, onde este governo começa a cortar? Naquilo que os/as trabalhadores/as e desempregados/as ganham – nos direitos sociais -, não na renda e na riqueza dos/as que têm de sobra.
Para economizar 18 bilhões de reais, o governo determinou uma série de reduções e perdas para os/as trabalhadores/as. Se cortasse 1% nos juros, conseguiria a mesma economia, mas quem "sofreria" seriam os/as rentistas e os/as banqueiros/as: entre os/as ricos/as e os/as pobres, o governo já escolheu quem deve pagar a conta.
É por isso que precisamos urgentemente de uma reforma do sistema político. E sabemos de antemão que a grande maioria dos/as atuais parlamentares, eleitos/as pelo velho sistema, não tem qualquer interesse nesta reforma. Sabemos também que parte do atual governo, eleito também segundo os velhos métodos, igualmente não quer nenhuma reforma profunda. Portanto, a reforma política só ocorrerá sob pressão da sociedade civil, dos movimentos sociais, das ruas.
É a pressão das ruas (há vários abaixo-assinados na internet) que obrigará Gilmar Mendes a devolver o processo pelo fim do financiamento privado para o Supremo Tribunal Federal – processo este onde a maioria dos juízes já votou favoravelmente. É a pressão das ruas que obrigará o Congresso a votar o projeto de lei de iniciativa popular por eleições limpas e reforma democrática. É a pressão das ruas que obrigará o Congresso a debater o plebiscito oficial sobre uma constituinte para a reforma política. Somente esta forma de exercício da democracia devolverá o governo ao povo.
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O sistema político brasileiro é democrático? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU