03 Fevereiro 2015
Diego nasceu menina. Veio ao mundo há 47 anos em Plasencia (Cáceres, Espanha), mas com um corpo oposto ao seu, incompatível, rival e até mesmo inimigo. Corpo de outra na mentalidade de outro: transexual. Há oito anos decidiu operar-se. Afirma que recebeu insultos e que em uma manhã um sacerdote de sua cidade lhe disse: “Você é a filha do diabo”. Não foi trabalhar neste dia. Voltar a nascer e receber insultos causou uma reformulação em sua fé cristã, muito arraigada em sua família. Farto, decidiu escrever uma carta ao Papa para perguntar-lhe se ainda havia lugar para ele na casa do Senhor. Em 8 de dezembro, o papa Francisco o contatou por telefone. E no sábado, 24 de janeiro, junto com sua namorada, o recebeu. “A conversa no Vaticano ficará entre nós. É um segredo que guardarei para sempre", conta sorridente em um canto de uma cafeteria, com vista para a Praça Mayor, na cidade de 45.000 habitantes.
A reportagem é de Manuel Viejo Madri, publicada pelo jornal El País, 01-02-2015.
Quando tinha “sete ou oito anos”, Diego Neria Lejárraga percebeu que sua mente não batia com seu corpo. Na idade de 11 anos, o diretor do colégio privado no qual estudava o chamou em seu escritório e lhe disse: “Não pode continuar aqui”. E ele saiu. Com 12, enquanto seu corpo se desenvolvia, mudou de escola, de professores e de amigos. “Tinha claro o que sou desde bem pequeno. Eu brincava com meu Madelman e me vestia como qualquer garoto de minha idade... Mas escondendo meus seios como podia”.
Os transexuais, de acordo com o último estudo da Federação Estadual de Lésbicas, Gays, Transexuais e Bissexuais (FELGBT), são uma minoria pouco conhecida; são relacionados mais com o espetáculo e a pornografia do que com os problemas de exclusão social que vivem. Na maioria dos países nos quais foram estudados, observa-se uma incidência que oscila entre os 0,14 e 0,26 casos para cada 100.000 habitantes e ano. Além disso, o mesmo relatório mostra que a média de idade na qual se conscientizam da própria transexualidade situa-se em 10,8 anos e, entretanto, não comunicam a terceiros até os 18.
No caso de Diego, sua família o apoiou rápido, apesar de ter existido um “breve período” no qual pensaram tratar-se de uma “bobagem” própria da idade. “E não, não era”, frisa. As pessoas mais próximas ajudaram-no tanto que “quase sempre” emociona-se ao lembrar. Como agora. Na sua família, foi amparado de maneira incondicional: seu pai, um engenheiro já aposentado; sua mãe, uma dona de casa que colaborava com o jornal Hoy – primeiro veículo a noticiar a reunião com o Papa –; e sua irmã, enfermeira que tornou possível Diego agora ser tio, graças a uma sobrinha que o adora. Hoje em dia, entretanto, ainda tem “um ou outro” parente próximo que o considera “uma vergonha para a família”.
Mas o problema para Diego não estava na sala de sua casa. Sua via-crúcis se encontrava na rua. Um dia, um vizinho se aproximou e lhe disse: “Olha o que você precisa ter, porque sei que você não tem”. Sua mãe, com a qual tinha uma química muito especial, tinha medo desse repúdio social que seu filho poderia sofrer e, ainda mais, no caso deste decidir operar. Um dia, veio e lhe sussurrou:
“Filho, como você sabe, estou com uma doença nos rins e vou durar pouco, só te peço que não faça nenhuma intervenção cirúrgica enquanto eu estiver viva”.
Diego respeitou sua vontade. “Por ela, faria isso mil vezes”. Em 2006, sua mãe morreu e foi então quando, aos 40 anos, realizou o processo de mudança de gênero em uma clínica privada de Madri.
- O que sentiu quando viu sua barba crescer?
- Uma alegria imensa. Fui ver meu médico e lhe disse que queria mais pelos. Ele sorriu e me respondeu: “Espere e verá, vai ficar farto deles”.
A mudança de voz, para Diego, veio aos 40 anos. “Lembro quando minha voz desafinou pela primeira vez. Minha mãe, que alegria!”. De acordo com a FELGBT, 88% dos transexuais submeteram-se a tratamento hormonal, muitos sem controle médico; 55,6% a intervenções cirúrgicas menores e somente 15% à reconstrução genital. Diego lembra que, logo antes da mudança de gênero e, após jantar com sua ex-namorada em um restaurante de Madri, foi ao banheiro das mulheres ao ver que o dos homens estava cheio. “Uma senhora aproximou-se de mim com uma bengala e me disse: ‘O que está fazendo aqui, depravado!”.
No seu caso, depois da mudança de gênero, foi tudo muito rápido. Os trâmites para obter a nova cédula de identidade com seu nome duraram três meses, ainda que segundo a Lei de Gênero de 2007, este processo pode demorar até dois anos. “Quando o apalpei foi um momento único”.
Já era oficialmente Diego. Isso fez com que iniciasse as mudanças de nome com sua companhia telefônica, com a de eletricidade... até seu crachá de trabalho da Agência de Informação e Controle Alimentar de Madri. Poucos dias depois, pegou na caixa de correio a primeira carta com seu nome de verdade, comprou um calção de banho para nadar pela primeira vez em uma piscina pública e, “finalmente”, gostou do que viu no espelho.
- Voltaria a viver a vida que viveu?
- Não. Eu sofri muito.
Apesar de não se conhecerem, para a FELGBT e a Fundação Triângulo da Estremadura, Diego é um exemplo a ser seguido. Na sua cidade, a notícia correu por todas as casas e suas duas catedrais foram objetos das câmeras da CNN, por estes dias. Seu prefeito, Fernando Pizarro (PP), se orgulha. Diego diz que agora está no melhor momento de sua vida, e que, entre outros sonhos a realizar, gostaria de se casar, escrever um livro e ser irmão da Irmandade da Macarena de Sevilha.
- O que sua mãe pensaria agora?
- Tudo isso que me aconteceu foi graças a ela. Acredito que no dia em que eu morrer, ela me receberá de braços abertos e me dirá: “Como está bonito, como estou orgulhosa, provavelmente deveríamos ter feitos isso antes, e juntos”.
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Odisseia cristã de Diego - Instituto Humanitas Unisinos - IHU