18 Dezembro 2014
Quando Bento XVI surpreendeu os católicos ao anunciar que se tornaria o primeiro papa em seis séculos a renunciar, isso imediatamente levantou preocupações – que foram desfeitas com a mesma rapidez – de que um ex-papa poderia minar a legitimidade do novo pontífice.
A reportagem é de David Gibson, publicada no sítio Religion News Service, 26-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Agora, quase dois anos mais tarde, esses temores estão emergindo novamente, alimentados pelo crescente descontentamento dos católicos conservadores com o sucessor de Bento XVI, o Papa Francisco, e pela presença de Bento XVI, mesmo que não exatamente como um ator, nos debates eclesiais levantados por Francisco.
"Bento XVI está nos bastidores por enquanto, mas não há nenhuma dúvida de que ele poderia facilmente se tornar uma figura de ponta para os tradicionalistas que anseiam pelos bons velhos tempos", alertaram a professora de Novo Testamento da Universidade de Notre Dame, Candida Moss, e Joel Baden, professor de Antigo Testamento da Yale Divinity School, em uma coluna publicada no sítio Daily Beast no início deste mês.
Hubert Wolf, historiador da Igreja da Universidade de Münster, ecoou esses pensamentos em comentários divulgados por um grande jornal alemão na semana passada, quando disse que havia preocupações de que, "em torno de Francisco e de Bento XVI, poderiam surgir dois centros de poder concorrentes na Cúria romana, com o papa e o antipapa no topo de cada um deles".
O que está alimentando esses medos? Eles parecem estranhos, quase medievais. Mas há ao menos quatro fatores em ação:
1. "Não há outro papa ainda vivo!"
O colunista do New York Times Ross Douthat, um católico que se tornou uma espécie de porta-voz dos conservadores, fez essa afirmação em uma coluna amplamente divulgada, alertando que Francisco poderia provocar um cisma à direita.
Sua declaração parece ao mesmo tempo óbvia e perigosa: se há "outro papa", isso significa que há um rival em potencial para o trono.
Mas o meme dos "dois papas vivos", de fato, não é verdadeiro, mesmo que ele continue sendo repetido.
"Há apenas uma papa, e o seu nome é Francisco, quer as pessoas gostem ou não dele e da direção em que ele está guiando o catolicismo romano", escreveu Christopher Bellitto, historiador da Igreja da Kean University, em uma coluna para a Reuters.
"Não há mais do que um presidente ou primeiro-ministro, mesmo que os antecessores ainda estejam vivos", escreveu Bellitto. "Uma pessoa ocupa o cargo de presidente, de primeiro-ministro ou de papa. Quando essa pessoa não detém mais esse ofício, então essa pessoa não é mais presidente, primeiro-ministro ou papa."
2. As teorias da conspiração não morrem
Boa sorte ao tentar dizer isso para alguns católicos e amantes da conspiração, que propuseram uma série de teorias que eles dizem que minam as reivindicações de Francisco ao papado.
Dentre elas: Bento XVI usou um latim incorreto na sua carta de renúncia, por isso é inválida; alternativamente, dizem eles, os cardeais, no conclave de março de 2013, que elegeu Francisco, violaram certos procedimentos, de modo que a sua eleição é nula e sem efeito.
A especulação foi tão insistente que, no primeiro aniversário da sua renúncia, em fevereiro passado, um Bento XVI exasperado chamou publicamente de "simplesmente absurdas" as afirmações de que ele ainda é papa.
3. Se ele caminha como um papa...
Apesar dos seus protestos, Bento XVI não ajudou exatamente a situação ao manter o seu nome papal, continuando a vestir a distintiva batina papal branca e portando o título – que ele criou para si mesmo – de "papa emérito".
Alguns especialistas da Igreja dizem que, ao invés, ele poderia ter voltado a vestir uma batina preta e o seu nome de batismo, Joseph Ratzinger, e usar o título de "bispo emérito de Roma" ou, simplesmente, de cardeal Ratzinger.
"Juridicamente, há apenas um papa. Um 'papa emérito' não pode existir", alertou Manuel Jesus Arroba, professor de Direito Canônico da Pontifícia Universidade Lateranense, nos dias depois que Bento XVI anunciou a inovação.
Os debates sobre a legitimidade do título e das regalias papais não mostraram nenhum sinal de abatimento, e isso alimenta o frenesi conspiratório, que, por sua vez, desperta mais debates sobre a sabedoria das escolhas pós-aposentadoria de Bento XVI.
4. … e fala como um papa...
Quando Bento XVI renunciou, ele disse que iria permanecer "escondido para o mundo", vivendo em reclusão em um mosteiro dentro dos muros vaticanos. Mas Francisco encorajou Bento XVI a sair de vez em quando, e o ex-papa não apenas participou de alguns eventos públicos, mas também deu a sua opinião em cartas e em outros comunicados.
Não é nenhuma surpresa que nem todos os seus pontos de vista parecem estar em sintonia com os de Francisco, o que dispara alarmes entre alguns e levanta esperanças entre outros.
O último exemplo disso foi quando um livro editado de escritos teológicos de Bento XVI foi publicado, e descobriu-se que ele tinha deletado uma parte fundamental de um artigo de 1972, em que ele defendia uma maneira para que os católicos divorciados em segunda união tomassem a Comunhão – uma proposta que Francisco colocou sobre a mesa, para o intenso desgosto de muitos conservadores.
A redação de Bento XVI foi vista como uma frustração de qualquer esforço de recrutá-lo para o lado dos reformadores e colocou-o bem no meio das últimas polêmicas.
No fim, parece inverosímil pensar que Bento XVI pudesse se tornar um verdadeiro antipapa ou fomentar um cisma real.
Por um lado, aos 87 anos, ele é muito frágil para assumir qualquer papel ativo no governo da Igreja. Além disso, nada, no seu histórico passado ou nas suas declarações pós-aposentadoria, dá qualquer indício de que ele sequer contemplaria tal passo divisivo.
O problema é que não se trata realmente de Bento XVI. Trata-se dos seus seguidores. A paixão deles pode até durar mais do que o próprio ex-papa.
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Bento XVI é o papa de verdade? Quatro fatores que alimentam as teorias da conspiração vaticanas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU