30 Outubro 2014
"Usar a palavra 'verdade', no singular, em um mundo polifônico é um pouco como tentar aplaudir com uma mão só... Com uma mão só, é possível dar um soco no nariz, mas não aplaudir." Teórico da sociedade líquida, Zygmunt Bauman, sociólogo de fama mundial, sempre foi bastante alheio a reflexões de caráter teológico. Mas, na venerável idade de 89 anos, ele ainda sabe surpreender: nestes dias, a editora Laterza manda para as livrarias o seu novo livro Conversazioni su Dio e l’uomo (176 páginas), diálogo com o teólogo polonês Stanislaw Obirek.
A reportagem é de Lorenzo Fazzini, publicada no jornal Avvenire, 29-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Embora sendo agnóstico convicto, no livro, Bauman gasta palavras positivas para algumas experiências de fé, por exemplo a do Solidarnosc. Ele conta sobre um artigo dele publicado no jornal católico de Cracóvia, muito próximo de João Paulo II, Tygodnik Powszechny, justamente sobre o movimento sindical de Lech Walesa.
Ao recordar essa página gloriosa da história, Bauman denuncia: "A nossa sociedade de consumidores totalmente individualizada é uma fábrica não de solidariedade, mas de suspeitas e concorrência recíprocas. Um produto colateral, mas extremamente comum, dessa fábrica é a depreciação da solidariedade humana que afunda suas raízes na atrofia do cuidado do bem comum e da qualidade da sociedade em que a vida do indivíduo se desenvolve".
Em suma, para recuperar a metáfora inicial, com uma mão, é possível também abraçar o outro, ajudá-lo a se levantar da pobreza e fazê-lo se encaixar na categoria dos humanos.
Eis a entrevista.
Professor Bauman, no seu novo livro, o senhor indica diversos tipos de pessoas dogmáticas: as religiosas, as marxistas, os dogmáticos da genética, do consumismo, da informação e do mercado. Qual dogmatismo é mais perigoso hoje?
Poderíamos acrescentar outros exemplos. Os dogmatismos são vários e diversificados, mas eu não saberia dizer qual é o mais perigoso. Eles têm em comum o pecado original de se taparem os ouvidos e de fecharem os olhos sobre a inalienável humanidade daqueles que vivem ao seu redor, por mais diferentes que possam ser. Todas as variedades de dogmatismos, no fim das contas, são a rejeição ou a não capacidade de comunicar e de se envolver em um diálogo: são essas duas as artes cruciais para sobreviver neste mundo marcado pela diversificação crescente e por uma diáspora que dá origem a uma crescente interdependência.
O que significa essa interdependência?
Significa que não podemos mais nos separar dos outros, sejam eles estrangeiros, crentes de outra fé em relação à nossa, ou defensores de modos diferentes de viver. Eles não estão distantes ou do outro lado em relação a uma fronteira controlada por algum guardião, mas se encontram no meio de nós, encontramo-los todos os dias no trabalho, nas escolas frequentadas pelos nossos filhos, nas ruas onde vivemos. A diversidade humana está ao nosso lado, até mesmo nos lugares mais próximos. Aprender e praticar a arte do diálogo deveria ser uma das opções a serem inseridas entre as tarefas mais urgentes com as que devemos nos defrontar. A alternativa a cuidarmos uns dos outros é atirar uns nos outros.
O senhor, não crente agnóstico, é muitas vezes convidado a ambientes católicos, como por exemplo, recentemente, na Universidade Católica do Sagrado Coração, de Milão. Um exemplo daquele diálogo autêntico que Francisco pede, um debate entre pessoas que pensam de maneira claramente diferente. Como o senhor reagiu a esse convite de Francisco?
Um diálogo genuíno e digno desse nome não consiste em falar somente com pessoas com as quais gostamos de discutir, negando o direito de intervir e recusando-nos a ouvir. O diálogo consiste em nos abrirmos, sem nenhum fechamento ou preconceito, ao fato da diversidade humana que possui muitas faces. Isso se explica em tentar entender as razões que estão por trás do apego de alguns a determinados assuntos; em aceitar a agir não desde já como um mestre, mas como um aluno; em assumir desde o início uma atitude cooperativa e não combativa, tentando alcançar alguns benefícios recíprocos em sabedoria e experiência, em vez de dividir os participantes entre vencedores e derrotados. Jorge Mario Bergoglio, mesmo antes de se tornar papa, foi para nós um luminoso exemplo da arte de tal diálogo genuíno. Ele fala e falou com a intenção de uma compreensão recíproca e da partilha do conhecimento do outro, e não com a vontade de fazer valer a própria superioridade pré-designada e indiscutível.
"Para que haja verdadeiro diálogo, devemos levar em conta a derrota", o senhor mesmo admitiu. Na sua carreira, o senhor viveu uma "derrota" do seu pensamento?
Isso é o que decorre do que eu dizia antes: o diálogo está destinado a se tornar uma série de monólogos – um exercício que significa falar ao lado de alguém, em vez de com alguém – até nos lembrarmos de que errare humanum est. E, portanto, estarmos prontos a nos pormos em discussão, porque são colocados à nossa frente posicionamentos melhores do que os nossos. Eu devo estar preparado para confessar a minha derrota, para admitir que eu estava errado e para agradecer àqueles que me tiraram do erro. Isso consiste em algo difícil: a maioria das pessoas preferem estar certas, em vez de erradas. Estar errado nos faz perceber um sopro doloroso sobre a nossa autoestima. Mas não aprendemos totalmente a arte do diálogo se não forem praticadas as suas condições mais difíceis. Olhando retrospectivamente para a minha história, eu posso dizer que a admissão de alguns dos meus erros de julgamento e a sua sincera admissão chegaram tarde demais em relação ao que eu queria, embora esperasse que, ao longo da minha longa vida, a distância de tempo entre ter cometido um erro e a sua admissão pudesse se reduzir.
No seu diálogo com Stanislaw Obirek, o senhor sugere um novo modo de dialogar, ou seja, implementar o "polílogo" entre posições diferentes.
É a extensão óbvia do monólogo e do diálogo, ou seja, de um debate que seja mais amplo do que só dois pontos de vista: trata-se de um evento que ocorre muito frequentemente em todas as cidades modernas ou nas ruas debaixo da nossa casa. Na realidade, toda discussão pública é, por definição, um "polílogo". O mundo em que vivemos não é nada digital. Poderíamos dizer que é um mundo analógico, com muitas divisões que se cruzam, algumas simplesmente justapostas, outras que se sobrepõem ou que emergem de maneira leve. Um verdadeiro debate público precisa levar em consideração o fato de ajudar a cristalizar os pontos de contenda e instaurar os potenciais testes de ponte entre a variedade de pontos de vista e de opiniões.
"A verdade é um encontro." O Papa Francisco lembrou várias vezes essa definição. O senhor concorda?
Sim. As verdades, assim como todo conhecimento e tipo de compreensão, são sempre e nada mais do que discursivas. Os encontros humanos são o seu lugar de nascimento e o seu habitat natural. Elas surgem e vivem, ao longo da sua duração e existência, dentro da comunicação inter-humana. Nós, humanos, somos, pela nossa natureza, sociais, interagimos, comunicamos com outros seres humanos. Ninguém pode reivindicar uma verdade como sua própria criação ou propriedade. Ela é formada e se sustenta através de negociações contínuas, mediante a solidariedade e a interação própria dos humanos. A verdade não tem outro lugar para habitar. Se esquecermos desse fato, ocorre aquilo que Martin Buber advertia, ou seja, o encontro se transforma em um encontro fracassado, ineficaz e, enfim, sem propósito.
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''Em vez de diálogo, é preciso um polílogo.'' Entrevista com Zygmunt Bauman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU