30 Setembro 2014
"O culto carismático se tornou uma das expressões principais do catolicismo ao redor do mundo, e todo o reavivamento religioso deve encontrar formas de se tornar rotina no intuito de sobreviver no longo prazo. Se a Igreja Católica provou ser boa em alguma coisa, certamente é em sobreviver ao longo dos séculos", escreve Molly Worthen, professora assistente na Universidade da Carolina do Norte/Chapel Hill, onde leciona cursos sobre o cristianismo global, cultura religiosa e intelectual norte-americana e história da política e ideologia; em artigo publicado pelo Crux, 26-09-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Quando em 1999 Álvaro Soares se mudou do Brasil para Boston, viu-se convidado a participar de um seminário (“Vida no Espírito”) numa comunidade católica local – um encontro de oração, adoração e discussão que prometia renovar a sua fé.
Um padre dividiu os participantes em pequenos grupos. Quatro outros fiéis puseram suas mãos sobre o Sr. Soares e todos rezaram para que ele recebesse o “batismo no Espírito Santo”. Ele olhou ao redor e viu que “as outras pessoas estavam tendo reações fortes – minha esposa e minha filha estavam”, disse ele. “No começo eu não senti nada. De repente, senti uma paz. Comecei a falar em línguas mais tarde”.
O que tinha acontecido? A maioria das pessoas – inclusive muitos católicos – associam o culto católico a hinos sóbrios e uma liturgia rígida conduzidos por um sacerdote. Certamente que os católicos acreditam em milagres, mas rezar por cura divina, estremecendo-se nos bancos ou gritando sequências de palavras sem sentido por capricho do Espírito Santo, não seriam práticas que só os pentecostais barulhentos fazem?
A resposta é não: alguns católicos vêm rezando desta forma desde que o movimento de renovação carismática começou a quase 50 anos atrás (“charisma” é a palavra grega para “dom da graça”). Numa época em que a Igreja está sob os holofotes internacionais e em que muitos se perguntam como Roma vai enfrentar os desafios da modernidade secular e dos escândalos internos, o catolicismo carismático surge como umas das subculturas mais vibrantes na religiosidade global.
A renovação carismática começou entre os protestantes americanos no fim da década de 1950, quando alguns luteranos em Minnesota e episcopalianos na Califórnia se sentiram impelidos, pelo Espírito Santo, a falar em línguas (segundo o Livro de Atos, o Espírito Santo concedeu o dom de falar línguas estranhas aos apóstolos no dia de Pentecostes). Este reavivamento chegou ao catolicismo em 1967, quando alunos e corpo docente na Universidade de Duquesne, instituição católica em Pittsburgh, Pensilvânia, anunciaram que eles também haviam sido “batizados no Espírito”.
O movimento de renovação carismática se tornou o reavivamento religioso mais formidável no século XX: um fenômeno global que mexeu com quase todas as comunidades cristãs quando se estabilizou em meados da década de 1970. Os protestante e católicos que sempre preferiram um culto calmo e “respeitável”, que viam os pentecostais como o primo que causava embaraços, de repente acolheram as práticas destes tais como falar em línguas, pedir por curas divinas e entregar o controle físico de seus corpos ao Espírito Santo.
A hierarquia da Igreja em Roma desconfiou do movimento primeiramente, mas depois decidiu afirmar o reavivamento como uma efusão da graça divina numa era secular difícil.
“Algum dia, quando a história for contata de verdade, uma das coisas que veremos é que a salvação do catolicismo popular nos EUA da década de 1970 era, em muitos sentidos, o movimento carismático”, falou Mark Shea, escritor católico que se converteu ao catolicismo depois de ter sido evangélico.
Na era pós-Vaticano II, período de bons sentimentos ecumênicos, alguns esperavam que o movimento aproximasse os protestantes e católicos. Os evangélicos – há muito tempo unidos em seu anticatolicismo – assistiam o movimento com interesse. Às vezes se viram participando de celebrações ao lado de católicos em congressos da renovação carismática.
No ano de 1969, quatro monges cistercienses tiveram a coragem de participar de um encontro de oração pentecostal no sul da Califórnia. Assim que eles chegaram, “a nossa presença e identidade monástica foi notícia em todos os lugares, e em pouco tempo nos vimos deixado de lado, tal como a história proverbial do irmão há muito tempo perdido”, disse um monge.
Mas os evangélicos estavam convencidos de que tão logo os católicos vivenciassem este novo tipo de adoração, iriam abandonar Roma e se tornarem protestantes. Alguns assim fizeram: um estudioso que pesquisou igrejas carismáticas protestantes descobriu que 28% dos participantes que responderam ao estudo cresceram em lares católicos. Mas o mais frequente foi que os católicos carismáticos se tornaram ainda mais católicos.
“Os católicos carismáticos estão falando sobre uma redescoberta de Maria, dos sacramentos, do rosário, dos santos e de outras crenças e práticas tradicionais”, escreveu um colaborador da revista católica New Covenant, em 1970.
À primeira vista, esta renascença da tradição da Igreja parece contraintuitiva. Afinal de contas, os fiéis que rezam para um batismo do Espírito Santo estão querendo voltar a 2000 anos atrás e vivenciar o mesmo milagre que abalou os apóstolos no Pentecostes. Os pentecostais insistem, muitas vezes, que eles têm pouco a aprender com a história da Igreja depois do primeiro século, dizendo que a sua fé é a mesma dos tempos bíblicos.
Mas entre os católicos carismáticos, o contato com o Espírito Santo não é diferente dos outros meios católicos de se encontrar com o divino, seja rezando para os santos ou consumindo o corpo e sangue de Cristo durante a missa. Os seus encontros de oração ecoam a cultura antiga das confrarias, associações voluntárias de leigos que rezavam juntos e que faziam boas obras durante a Idade Média. O apelo da oração carismática “começa com louvor e adoração”, disse Álvaro Soares, que hoje é o diretor dos Serviços de Renovação Carismática para a Arquidiocese de Boston. “No entanto, na medida em que a gente se aprofunda, começamos a ver coisas além do simples amém e aleluia. Vemos as pessoas mais ‘enraizadas’ na história”.
“Raízes” pode significar muitas coisas para os católicos americanos, onde os não brancos podem logo se tornar uma maioria (em 2013, 60% dos católicos eram brancos, enquanto os católicos latinos contabilizavam 34%). Muitos vêm de culturas mais expressivas de culto e se sentem mais à vontade estando com suas mãos no ar, falando em línguas durante um encontro de oração, do que se sentiriam numa paróquia católica tradicional da Irlanda ou da Itália (o apelo da renovação carismática no sul global – África, América Latina e a Ásia desenvolvida – nunca foi deixado de lado pelas autoridades em Roma).
Em Boston, os católicos africanos, caribenhos e latino-americanos compõem uma grande parcela da comunidade carismática, e em todo o país é um movimento não branco em crescimento. Segundo uma pesquisa de 2007 do Centro de Pesquisas Pew, mais da metade dos católicos latinos nos EUA se identificam como carismáticos, enquanto que apenas 12% de não latinos assim se identificavam.
Hoje, o centro de gravidade no mundo cristão está se deslocando do branco para o negro e pardo, do ocidente para o sul global. Roma faz certo em acolher o estilo de culto no qual muitos dos fiéis se sentem mais à vontade. O Papa Francisco certa vez zombou do catolicismo carismático como uma “escola de samba”, mas, depois, aceitou e a Igreja o escolheu para ajudar a liderar a renovação carismática na Argentina. Quando falou a um encontro maciço de carismáticos em Roma em junho deste ano, elogiou a exuberância deles, pedindo-lhes que continuassem evangelizando os não convertidos e a, também, ficarem “próximos dos pobres”.
Francisco é conhecido por provocar alguns conservadores ao enfatizar a justiça social em detrimento de questões culturais polêmicas. Suas falas levantam um assunto interessante: os católicos carismáticos nos EUA são “conservadores” ou “progressistas”? O movimento terá consequências políticas?
Nas décadas de 1960 e 1970, as pontes que o movimento criou entre os evangélicos brancos conservadores e católicos brancos pode ter preparado o terreno para a colaboração política deles na direita cristã através de organizações inter-religiosas como a “Moral Majority”. Mas muitos católicos – que interpretam o “pró-vida” de tal modo a incluir o apoio à igualdade econômica e à dignidade para com os pobres assim como uma oposição ao aborto – nunca se ajustaram facilmente às categorias das guerras culturais. Os católicos latinos, particularmente sensíveis às injustiças construídas dentro das estruturas econômicas e sociais americanas, votaram esmagadoramente no Partido Democrata nas últimas quatro eleições presidenciais. Em muitos grupos carismáticos de oração, o batismo no Espírito Santo não é só uma experiência espiritual pessoal, mas uma porta de entrada do fiel para os serviços da Igreja e da comunidade: ajudar um companheiro é uma espécie de culto não menos importante do que a oração pessoal nas missas de domingo.
Mas isso não quer dizer que os carismáticos sejam “progressistas” também. Segundo a pesquisa do Centro Pew, estes são muito mais propensos do que os não carismáticos a acreditar que a “Bíblia é a palavra literal de Deus” e que Jesus irá voltar em breve. Os carismáticos tendem a ser muito obedientes ao que a Igreja diz”, falou Álvaro Soares. “Assim, se eles disserem que haverá ordenação de mulheres, seremos obedientes a isso. Se a Igreja disser que não, nós diremos não também. Estamos comprometidos com a justiça social porque estamos alinhados com a Igreja. O Papa Francisco está alinhado com a justiça social – é neste sentido que a maioria destas pessoas irá votar”.
Cinquenta anos depois, a renovação carismática seguiu o caminho da maioria dos movimentos religiosos: tornou-se menos um reavivamento espontâneo do que uma subcultura bem-coordenada de congressos, ministérios e grupos e oração. O Papa Francisco advertiu os carismáticos em Roma de que a organização demasiada é um perigo: “Sim, vocês precisam se organizar, mas não percam a graça de deixar Deus ser Deus!” Eles parecem estar mantendo o equilíbrio certo.
O culto carismático se tornou uma das expressões principais do catolicismo ao redor do mundo, e todo o reavivamento religioso deve encontrar formas de se tornar rotina no intuito de sobreviver no longo prazo. Se a Igreja Católica provou ser boa em alguma coisa, certamente é em sobreviver ao longo dos séculos.
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O catolicismo carismático está vivo e bem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU