03 Abril 2014
No dia 28 de janeiro de 1200 anos atrás, morria o "Rei dos Francos". O grande historiador da Idade Média desmonta os mitos sobre a sua figura. Um grande personagem, mas que olhava mais para o passado do que para o futuro.
A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 28-01-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mil e duzentos anos atrás, no dia 28 de janeiro de 814, em Aachen, morria Carlos Magno, o rei dos Francos, que, na noite de Natal do ano 800, em Roma, na Basílica de São Pedro, foi coroado pelo Papa Leão III, imperador do Sacro Império Romano.
Aquele que derrotou os Saxões e os Avaros, e que, em 774, também se tornou rei dos Lombardos, foi um dos maiores protagonistas da Alta Idade Média, em cuja ação muitas vezes se quis ver um dos pais da Europa. Como escreveu o historiador Lucien Febvre, "o império de Carlos Magno deu forma, pela primeira vez, ao que nós chamamos de Europa".
Um juízo que, no entanto, não é compartilhado por Jacques Le Goff, para quem o rei dos Francos, "se é verdade que unificou no plano militar e administrativo uma vasta parte do nosso continente", na realidade, "não tinha nenhuma consciência da Europa".
O estudioso francês fala a respeito disso na sua casa parisiense, repleta de livros, buscando distinguir a lenda que cerca o personagem da realidade concreta dos fatos históricos.
"No século IX, a ideia da Europa não existia. Ela ganharia corpo apenas muito mais tarde", explica Le Goff que, para festejar os 90 anos recém-completo, envia para as livrarias um novo livro, Faut-il vraiment découper l'histoire en tranches? (Seuil, 208 páginas). "Ao ser coroado pelo papa, Carlos Magno não olhava para o futuro, mas para o passado. O seu modelo era o Império Romano. Mais do que criar uma civilização futura, ele queria fazer renascer a antiga civilização romana, reanimando-a graças ao cristianismo. Naturalmente, ele continua sendo um grande personagem histórico. Teve grandes projetos que, em parte, conseguiu realizar, contribuindo para fundir os latinos e os germanos, a tradição romana com a bárbara. Desse ponto de vista, ele foi, indubitavelmente, um dos fundadores da civilização medieval, embora fosse um guerreiro violento e sanguinário, como prova o extermínio dos Saxões. Portanto, ele foi um protagonista da Alta Idade Média, mas não um pai da Europa."
Eis a entrevista.
No entanto, o nascimento do Sacro Império Romano é visto como um primeiro esboço da Europa atual...
Repito. Carlos Magno não perseguia nenhuma ideia de Europa. Ele pensava no Império Romano. O ideal europeu nasceria muito mais tarde. Por exemplo, no século XV, o Papa Pio II escreveu em latim o tratado De Europa, em cujas páginas a Europa se impõe como uma ideia presente e um futuro desejável.
Para o senhor, quais são os aspectos significativos da ação de Carlos Magno?
Pessoalmente, eu considero capital uma questão que geralmente é deixada em segundo plano pelos historiadores. Antes de se tornar imperador, por ocasião do Concílio de Niceia, ele defendeu e praticamente impôs ao cristianismo o uso de imagens, contrapondo-se aos iconoclastas que, naquele período, dominavam o Império Bizantino. Levando o cristianismo a autorizar a criação e a difusão das imagens, incluindo as de Deus, Carlos Magno deu à cristandade, ou seja, à época, à Europa, um meio de expressão de grandíssimo valor. A história da arte europeia lhe deve muito.
No plano da cultura, fala-se do renascimento carolíngio. É correto?
Toda a Idade Média europeia é marcada por uma série de renascimentos, que sempre nascem na memória do Império Romano. Entre eles, há também o renascimento carolíngio, que apelou a todas as forças culturais presentes no Sacro Império Romano. Carlos Magno reuniu ao seu redor muitos grandes intelectuais da época das mais diversas proveniências: irlandeses, francos, germanos, espanhóis etc. Nesse âmbito, mesmo sem ter a consciência nem a vontade disso, ele se moveu em uma perspectiva europeia. Precisamente a vontade de impulsionar a cultura faz dele uma das figuras centrais da época medieval. Ao redor desse dado histórico indiscutível, porém, nasceram muitas lendas.
Por exemplo?
Foi atribuído a ele um papel importante na promoção das escolas e ele foi quase transformado em uma espécie de Jules Ferry do século IX. Na realidade, a sua ação interessou apenas um grupo social minoritário, já que se limitou a favorecer a criação de escolas para os filhos dos nobres. Ele queria dar impulso a uma aristocracia competente destinada à administração do império. Justamente esse compromisso no plano administrativo é um aspecto muito importante da sua obra. A esse propósito, fala-se muitas vezes dos enviados às diferentes áreas do império, os missi dominici, mas que são apenas um detalhe dentro de uma ação administrativa muito mais vasta, que se manifestou, dentre outras coisas, com a promulgação de textos importantíssimos, como os capitulares.
Destaca-se muitas vezes o compromisso de Carlos Magno pela difusão do ensino das artes liberais do trívio (gramática, retórica e dialética) e do quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música). Essa também é uma lenda?
Eu diria que sim, porque o sistema das artes liberais, que depois favoreceria o nascimento das universidades no fim do século XII, na realidade, existia muito antes do seu reinado. O trívio e o quadrívio estavam presentes nas escolas monásticas desde os tempos de São Bento, no século VI. Certamente, Carlos Magno contribuiu para a difusão de tais ensinamentos, mas nada mais. Certamente ele não foi o seu iniciador. Ao invés, é importante assinalar a herança deixada no âmbito da escrita, graças à minúscula carolíngia (imagem ao lado) utilizada pelos eruditos em todos os estados do Sacro Império Romano. Também nesse caso, a invenção não se deve a ele, mas a adoção e a difusão de tal escrita de chancelaria é um elemento significativo da sua política intelectual e da vontade de unificação.
A sua ação foi importante para a consolidação da cristandade?
Mais uma vez, estamos no campo do mito, porque a força e a influência do cristianismo já estavam asseguradas antes do seu reinado. Se o cristianismo continuou existindo depois dele, isso certamente não depende da sua ação. Talvez, se possa interpretar a vitória sobre os Lombardos como uma contribuição para a defesa da cristandade, mas me parece antes uma retomada da política de conquista da antiguidade romana. É verdade que, na época das Cruzadas, Carlos Magno foi considerado um herói da cristandade. Na realidade, no entanto, ele nunca foi um cruzado, mesmo que assim tenha sido apresentado na Chanson de Roland. No que diz respeito às relações com o mundo oriental, ele simplesmente tentou afirmar a sua autoridade através de algumas trocas simbólicas com os grandes daquela parte do mundo, isto é, a Imperatriz Irene de Constantinopla e o califa Harun al-Rashid.
Portanto, circulam em torno de Carlos Magno muitas lendas tenazes, talvez até mais do que em relação a outros protagonistas da história medieval. Como se explica esse destino póstumo?
O personagem, que certamente não era banal, foi quase imediatamente transformado em um personagem excepcional, sobretudo graças aos poemas épicos que muito contribuíram para o nascimento do seu mito. Mais recentemente, a elaboração da lenda de Carlos Magno conheceu outro momento importante depois da Segunda Guerra Mundial, quando, com o Tratado de Roma de 1957, começou a se formar a comunidade europeia. Os dirigentes dessa Europa que desejava a unificação – Schuman, Adenauer e De Gasperi – eram democratas cristãos e, portanto, escolheram como padroeiro da nascente Europa justamente Carlos Magno, que para eles, era o símbolo da defesa de um continente cristão. E, desse modo, contribuíram para reforçar o mito.
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''Carlos Magno não é o pai da Europa.'' Entrevista com Jacques Le Goff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU