25 Março 2014
“A fortuna crítica do filme é imensa e majoritariamente positiva. Para François Truffaut, crítico da prestigiada revista Cahiers du Cinéma à época do lançamento de Noite e Nevoeiro, trata-se do maior filme da história do cinema, sendo impossível falar dele com as palavras da crítica cinematográfica, pois ele ultrapassa o documentário, a denúncia ou o poema para afirmar-se como uma meditação sobre o fenômeno mais importante do século XX”, pontua o crítico de cinema.
Foto: Herdeiro de Aécio |
A polêmica obra cinematográfica do cineasta francês Alain Resnais, Noite e Nevoeiro, foi a primeira a tratar do Holocausto e a apresentar “imagens até então desconhecidas dos campos de concentração nazistas, nos quais seis milhões de judeus foram brutalmente exterminados”. Produzida dez anos depois da Guerra que chocou o mundo, Noite e Nevoeiro abordou “um acontecimento ainda recente, que permanecia como uma chaga incomodamente aberta, a ser necessariamente enfrentada”, afirma Marcus Mello em entrevista à IHU On-Line, por e-mail.
Por Márcia Junges e Patrícia Fachin
Quase 60 anos depois da primeira exibição, “Noite e Nevoeiro se impõe ainda hoje como um modelo ético de abordagem a um objeto tão delicado, colocando em xeque versões mais espetaculares do Holocausto”, avalia o crítico de cinema. Para Mello, o longa coloca o espectador em “uma posição de grande vulnerabilidade. A memória é um bem precioso, que define a existência de cada ser humano. Ao mesmo tempo, algumas experiências são tão traumáticas que o esquecimento é a única forma de seguir vivendo. Mas este esquecimento, claro, só é admissível no âmbito individual, já que em relação ao coletivo temos obrigação de não apagar os acontecimentos terríveis de nossa história”.
Marcus Mello estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na noite desta terça-feira, 25-03-2014, comentando Noite e Nevoeiro, às 20h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros.
O filme será exibido às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros.
O evento faz parte da 11ª edição da Programação de Páscoa do IHU, intitulada Ética, Memória, Esperança. Uma perspectiva de triunfo da Justiça e da Vida.
Marcus Mello é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Rio Grande do Sul - UFRGS. Crítico de cinema, é editor da revista Teorema e colaborador das revistas Aplauso e Cinética. Em 2000, assumiu a função de programador da Sala P. F. Gastal, na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, primeiro cinema municipal de Porto Alegre, mantido pela Secretaria Municipal da Cultura.
Também organizou os livros Cinema Falado – 5 Anos de seminários de cinema em Porto Alegre (Porto Alegre: Unidade Editorial, 2001), Sublime obsessão (Porto Alegre: Unidade Editorial, 2003), de Tuio Becker, e Trajetórias do cinema moderno e outros textos (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; A Nação, 2007), de Enéas de Souza.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais foram os motivos de comoção e polêmica que Noite e Nevoeiro (Nuit et Brouillard) gerou entre o público?
Marcus Mello - A comoção se deu inicialmente pelo fato de Noite e Nevoeiro ser a primeira obra cinematográfica a abordar diretamente o Holocausto, trazendo a público imagens até então desconhecidas dos campos de concentração nazistas, nos quais seis milhões de judeus foram brutalmente exterminados. É importante notar que o filme foi lançado em 1955, apenas 10 anos após o final da Segunda Guerra Mundial e a consequente liberação dos sobreviventes desses campos pelas tropas aliadas. Ou seja, um acontecimento ainda recente, que permanecia como uma chaga incomodamente aberta, a ser necessariamente enfrentada. Outro motivo de polêmica está relacionado à nacionalidade do filme, uma produção francesa, país que após a invasão das tropas alemãs manteve um governo colaboracionista, apoiando os nazistas.
Resnais era então um jovem diretor, com apenas 33 anos de idade, conhecido por uma série de curtas bastante elogiados, como o libelo anticolonialista As Estátuas Também Morrem (1953), e ainda não havia realizado Hiroshima Meu Amor (1959) e O Ano Passado em Marienbad (1961), com os quais revolucionaria a narrativa cinematográfica. Noite e Nevoeiro era uma obra de encomenda, feita a pedido do Comitê de História da Segunda Guerra Mundial, com a intenção de ser um documento imagético sobre um dos episódios mais terríveis da história da humanidade. Mas a princípio o próprio Resnais teve dúvidas em relação aos inúmeros impasses éticos envolvidos na produção do filme e só foi convencido a realizá-lo devido à adesão do roteirista Jean Cayrol, um sobrevivente dos campos de concentração.
IHU On-Line - Por que Noite e Nevoeiro é considerado um “dispositivo de alerta” contra o nazismo e todas as formas de extermínio?
Marcus Mello - Justamente pela forma que Resnais deu ao filme, o qual, embora seja classificado como um documentário, é na verdade um filme-ensaio. Em apenas 32 minutos, Resnais combina imagens de arquivo com filmagens com cenas do presente nos antigos campos, rodadas em cor. Por meio de um extraordinário trabalho de montagem, o jovem diretor intercala tempos históricos distintos — ainda que separados por apenas uma década — e sobrepõe a essas imagens um texto extremamente poético, assinado pelo escritor Jean Cayrol. É pela manipulação habilidosa desses elementos — imagem, texto, montagem — que Resnais transforma seu filme em um alerta para as futuras gerações, prevenindo-as sobre o fato de a barbárie estar sempre à espreita, e não apenas relegada a um passado remoto.
IHU On-Line - Qual é a importância desse documentário na narrativa sobre o Holocausto?
Marcus Mello - É enorme, não apenas por seu aspecto seminal, mas, sobretudo, pela influência que irá exercer em outros diretores que passarão a abordar o tema, como Marcel Ophuls em A Tristeza e a Piedade (1969) e Claude Lanzmann em Shoah (1985). Noite e Nevoeiro se impõe ainda hoje como um modelo ético de abordagem a um objeto tão delicado, colocando em xeque versões mais espetaculares do Holocausto, como as da famosa minissérie televisiva Holocausto (1978) e as recriações hollywoodianas levadas a cabo por Alan J. Pakula em A Escolha de Sofia (1982) e Steven Spielberg em A Lista de Schindler (1993). A fortuna crítica do filme é imensa e majoritariamente positiva. Para François Truffaut, crítico da prestigiada revista Cahiers du Cinéma à época do lançamento de Noite e Nevoeiro, trata-se do maior filme da história do cinema, sendo impossível falar dele com as palavras da crítica cinematográfica, pois ele ultrapassa o documentário, a denúncia ou o poema para afirmar-se como uma meditação sobre o fenômeno mais importante do século XX.
IHU On-Line - Como analisa o recurso de mescla entre o passado e o presente nessa produção de Resnais?
Marcus Mello - Ela é fundamental para que o diretor atinja seu objetivo principal, que é justamente fazer um filme que sirva de alerta para impedir a repetição da barbárie no futuro. Este embaralhamento temporal, vale notar, será o pilar fundador da obra de Resnais, como logo confirmariam suas experiências ficcionais nos já citados Hiroshima Meu Amor e O Ano Passado em Marienbad, e ao longo de toda a sua filmografia, de Muriel (1963) a Eu Te Amo, Eu Te Amo (1968), passando por Providence (1977) e Meu Tio da América (1980), até chegar a produções recentes como Vocês Ainda Não Viram Nada! (2012).
IHU On-Line - Godard pensava que o cinema errou de modo inexpiável ao não filmar a construção dos campos de concentração. Em que sentido o documentário de Resnais “chega depois”, mas cumpre um papel importante junto à categoria da memória?
Marcus Mello - Godard, não esqueçamos, é um eterno provocador, um polemista nato, que adora lançar bombásticas frases de efeito. Provavelmente, se Resnais tivesse chegado antes e pudesse ter filmado a construção desses campos ou o próprio extermínio dos judeus, Godard teria chamado seu colega de imoral, por haver preferido registrar a barbárie ao invés de fazer algo para impedi-la. Vale lembrar que alguns dos ataques mais violentos contra Spielberg e seu A Lista de Schindler partiram de Godard. Acredito que Resnais chegou exatamente no momento em que deveria ter chegado, nem antes nem depois, e isto pode ser comprovado a cada nova revisão do filme, que, passados mais de 50 anos, mantém intacta a sua força. A propósito, Noite e Nevoeiro mostra imagens da construção dos campos, o que desde logo denuncia a fragilidade do discurso de Godard.
IHU On-Line - Em que medida o desespero de não lembrar ou de não poder esquecer são elementos importantes que aparecem nessa obra do cineasta francês?
Marcus Mello - Na medida em que a incapacidade de lembrar ou a impossibilidade de esquecer são experiências igualmente terríveis, por paradoxal que isso possa parecer. Ambas colocam o indivíduo e, por consequência, o espectador, em uma posição de grande vulnerabilidade. A memória é um bem precioso, que define a existência de cada ser humano.
Ao mesmo tempo, algumas experiências são tão traumáticas que o esquecimento é a única forma de seguir vivendo. Mas este esquecimento, claro, só é admissível no âmbito individual, já que em relação ao coletivo temos obrigação de não apagar os acontecimentos terríveis de nossa história. Essa contradição permeia o filme de Resnais do início ao fim, e faz dele uma obra que, embora se debruce sobre o passado, está dirigida ao futuro. Um futuro que esteja sempre alerta aos erros do passado, em constante vigilância para não repeti-los.
IHU On-Line - Como esse documentário dialoga com a pretensa invisibilidade que os campos tinham à época de seu funcionamento?
Marcus Mello - Por seu caráter revelatório, que mostra de forma pioneira o horror da experiência dos campos de concentração, até então conhecidos apenas através de fotografias e cinejornais. Também vale assinalar mais uma vez o fato de Noite e Nevoeiro ser uma produção francesa, país que tem uma relação bastante discutível com o regime nazista. Após o final da Segunda Guerra, muitos franceses tentaram apagar seu envolvimento com os nazistas, evitando falar sobre seu colaboracionismo com o regime de Hitler ou mesmo sobre a omissão da maior parte da sociedade diante daquele momento de exceção. Quando a guerra terminou, procurou-se dar a impressão de que todos os cidadãos franceses fizeram parte da Resistência, incluindo aí vários intelectuais de ponta, o que sabemos que não é verdade.
IHU On-Line - Em que aspectos Auschwitz e Hiroshima, outra temática de Resnais, são “possíveis” somente através da arte?
Marcus Mello - Trata-se de uma questão meramente retórica, pelo simples fato de que tanto Hiroshima quanto Auschwitz ocorreram realmente, vitimaram milhões de seres humanos e não houve nada de arte ali. Pergunte a um sobrevivente de Auschwitz — são poucos, mas eles ainda existem — se aquilo só foi possível através de uma experiência artística. Certamente ele lhe dará uma resposta bastante dura.
IHU On-Line - Em que consiste o maior legado cinematográfico de Resnais, recentemente falecido?
Marcus Mello - Resnais foi um dos maiores renovadores da arte cinematográfica, ao explorar novas formas narrativas, a partir de seu interesse pelas questões envolvendo o tempo e a memória. Nesse sentido, sua contribuição à história do cinema é inestimável, fazendo esta arte atingir um outro patamar, capaz de dar conta da complexidade da experiência humana, e transformando em imagens estados de consciência até então não representados por seus antecessores.
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Noite e nevoeiro: “Um alerta para as futuras gerações”. Entrevista especial com Marcus Mello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU