24 Março 2014
A ética que o papa privilegia é uma ética da missão, comprometida a dilatar criativamente os espaços da liberdade e da solidariedade humana e voltada a oferecer àqueles que vivem em situações difíceis – seja de material, seja espiritual – um verdadeiro sustento fraterno.
A análise é do teólogo italiano Giannino Piana, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas. O artigo foi publicado na revista Rocca, 15-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
São muitas as intervenções de do Papa Francisco que dizem respeito à ética, e isso não só nos documentos oficiais – pense-se particularmente na Evangelii gaudium – mas também (e sobretudo) nas audiências públicas das quartas-feiras e nas homilias cotidianas de Santa Marta. Um acúmulo de reflexões que, à distância de um ano desde o início do seu pontificado, delineiam um quadro bastante preciso do pensamento do papa em torno de algumas temáticas morais e, mais em geral, acerca das direções de fundo da ética cristã.
Certamente não é possível condensar, no breve espaço de um artigo, o conjunto variado de propostas que o Papa Francisco ofereceu (e continua a oferecer), mas não é difícil entrever por trás do conjunto das suas intervenções um desenho inovador com contornos bem definidos, que manifesta a vontade de sair da ética cristã de visão estreita que, por muito tempo, a demarcou e de restituir um autêntico alento evangélico.
A recusa de uma ética obsessiva e ideológica
O que surpreende, aproximando os textos papais, é acima de tudo a insistência com que é reiterada a necessidade de ir além de uma "preceitística" dilatada e obsessiva, relacionada sobretudo com alguns âmbitos da vida moral – o da sexualidade, em primeiro lugar – para dar espaço à radicalidade e à beleza da mensagem moral cristã.
Trata-se, em outras palavras, de abandonar uma perspectiva negativa e legalista, que reduz a ética a uma série infinita de proibições ou a uma longa lista de pecados, para dar curso livre a uma perspectiva positiva, que coincide com o anúncio do que contribui para a verdadeira realização humana e coloca o homem na condição de alcançar a felicidade. Ou, ainda mais, trata-se de conceber a ética cristã como resposta ao chamado do amor infinito de Deus, que pede para ser retribuído mediante o dom de si mesmo no serviço aos irmãos.
"Quando a pregação é fiel ao Evangelho – escreve o Papa Francisco a respeito –, manifesta-se com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação moral cristã não é uma ética estoica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. (…) Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de perder o seu frescor e já não ter 'o perfume do Evangelho'" (Evangelii gaudium, n. 39).
Mas há mais: o Papa Francisco não se contenta em assinalar uma orientação fundamental. Ele também indica o caminho a seguir para dar uma implementação a ela. Ele não nega a exigência de uma ética normativa, isto é, centrada na formulação de alguns preceitos, que – como afirmava Tomás de Aquino – têm a tarefa de ajudar o crente a dar encarnação concreta às instâncias que brotam da lei interior do Espírito e de verificar a conformidade a elas do agir, mas destaca fortemente a necessidade de um uso parcimonioso dela para evitar que se incorra em uma escravidão, que contrasta com o anúncio da liberdade evangélica.
"Há normas ou preceitos eclesiais – ainda são palavras do papa – que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus 'são pouquíssimos'. E, citando Santo Agostinho, observava que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, 'para não tornar pesada a vida aos fiéis' nem transformar a nossa religião em uma escravidão, quando 'a misericórdia de Deus quis que fosse livre'. Essa advertência, feita há vários séculos, tem uma atualidade tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar, quando se pensa em uma reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a todos" (Evangelii gaudium, n. 43).
Ideal de perfeição e misericórdia
A proposta moral do Papa Francisco, no entanto, não é indulgente ou permissiva. Ele não hesita em chamar a atenção para o ideal de perfeição evangélico, que exige a adoção de estilos de vida rigorosos inspirados na lógica das Bem-aventuranças e dos "mas eu vos digo" do Sermão da Montanha.
A referência aos textos de Mateus e de Lucas que expõem tal programa é bastante frequente na sua pregação. À sublimidade do chamado recebido do alto deve corresponder uma resposta generosa e radical. A pobreza, a mansidão, a humildade, a gratuidade, a ternura, o serviço, a magnanimidade e o perdão dos inimigos são, igualmente, atitudes às quais o papa retorna frequentemente nas homilias cotidianas (um magistério simples e ferial, mas amplamente incisivo), não só porque devem conotar o modo de ser do cristão, mas também porque respondem a instâncias de libertação humana que devem ser oferecidas a todos.
Por isso, ele estigmatiza uma série de comportamentos que alteram as relações humanas, criando situações de conflito: da riqueza e da cobiça do dinheiro à busca excessiva do bem-estar material; da hipocrisia ao ciúmes e à inveja; das fofocas malévolas à calúnia, até a cólera e o insulto; e a lista poderia continuar.
Mas, acima de tudo, ele não deixa de denunciar as raízes profundas de tais comportamentos, que têm a sua sede última na soberba e na adesão ao espírito mundano – é significativa, a esse respeito, a fórmulas recorrente da "mundanidade espiritual" –, assim como na corrida ao consumismo e às modas, que alimentam sentimentos de rivalidade e geram condições de opressão para muitos.
O núcleo em torno do qual gira positivamente todo o edifício da moral cristã para o Papa Francisco, portanto, é o mandamento novo, a caridade, que tem o seu fundamento na própria essência do mistério de Deus – o Deus Trindade que, segundo a definição de João, não tem amor, mas é Amor – e o seu paradigma comportamental na pessoa de Jesus de Nazaré, que veio ao mundo para servir e dar a vida.
A insistência com que retorna na reflexão do pontífice a referência a esse motivo inspirador, que não tem o caráter de um simples preceito, mas é a chave interpretativa de toda a conduta cristã, significa que o que importa na avaliação do comportamento moral é a capacidade do sujeito de sair dos impasses do egoísmo e da autorreferencialidade para fazer de si e da própria vida dom aos irmãos: "Quem procura conservar a própria vida, vai perdê-la. E quem perde a sua vida vai encontrá-la".
A ética do Papa Francisco, então, é uma ética das intenções profundas, do coração ou do espírito, da opção fundamental, uma ética que, longe de renunciar ao radicalismo evangélico, o propõe com força, sem qualquer hesitação, confiando na capacidade transformadora da graça e na obra renovadora do perdão.
Certamente não está ausente da leitura que o pontífice faz da realidade – ao contrário, é constantemente retomada por ele – a consciência da fragilidade e da precariedade da condição humana: não somente pelo limite conatural ao estado de criaturalidade, mas também pela presença do pecado, que exerce um forte condicionamento sobre as decisões do homem.
Daí a atenção a não medir apenas os resultados conseguidos, mas também a premiar o esforço daqueles que se comprometem para vencer o mal e a solicitação a seguir constantemente em frente, fazendo da própria existência um caminho de conversão permanente. Daí, sobretudo, o anúncio, repetido com insistência, de confiar na misericórdia de Deus, cuja porta está sempre aberta para a acolhida daqueles que reconhecem a própria pobreza e não hesitam em se abandonar à ação do Espírito.
Confiança possibilitada pelo encontro com uma Igreja que renuncia ao exercício unicamente do julgamento e se faz portadora sobretudo do amor misericordioso do Pai. "A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam se sentir acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho. (…) Devemos dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida cristã" (Evangelii gaudium, n. 114; 169).
O primado da ética social
Por fim, se, do plano do método e da sistematização de fundo passarmos ao dos conteúdos, o que fica imediatamente evidente é o primado que o Papa Francisco confere às questões da ética social e política, deixando em segundo plano temáticas mais estreitamente conectadas com a ética da pessoa e das relações intersubjetivas – da sexualidade, à família, à vida – que ocuparam um espaço bastante consistente nas intervenções dos pontífices anteriores.
Ao invés, às vezes, nas intervenções do papa atual, há até a tendência a diluir a sua importância, destacando a presença de uma obsessividade patológica onde se voltar a falar a respeito com uma frequência demasiada. A razão dessa escolha, acima de tudo, deve ser debitada da proveniência geográfica do pontífice: o fato de pertencer ao continente latino-americano, isto é, a uma área do mundo caracterizada pela presença de graves formas de pobreza e de pesadas desigualdades sociais, certamente exerceu (e exerce) um peso determinantes sobre as suas orientações éticas.
Mas, para além das motivações sociológicas, a razão mais importante (e mais profunda) dessa escolha é de natureza teológica ou, melhor, eclesiológica: desde o início do seu ministério, o Papa Francisco quis dar à sua ação uma clara marca reformadora, marcada pela proposta de "uma Igreja pobre para os pobres", retomando nisso um filão significativo de reflexão que, por ocasião do Concílio, um grupo consistente (embora minoritário) de Padres tinha desenvolvido, mas que tinha encontrado pouca expressão nos textos oficiais. A adesão a esse modelo de Igreja, ao qual o papa volta com insistência, explica o corte não ideológico, mas plenamente evangélico e, por isso, radical (é sintomático que tenha havido nos EUA quem chegasse impropriamente a acusá-lo de marxismo) dos posicionamentos no campo social.
Muitas são as questões examinadas, a esse respeito, pelo Papa Francisco. Elas vão do plano das opções individuais ao das intervenções de caráter estrutural. De fato, não falta a denúncia explícita de comportamentos subjetivos desviantes – além disso, frequentes na Itália – como o clientelismo, a evasão fiscal (e a elisão), a espiral do silêncio com relação às várias formas de máfia e muito mais.
Mas o pontífice leva em consideração, sobretudo, algumas temáticas de ordem estrutural nas quais as injustiças e as desigualdades são particularmente evidentes: da situação do mercado de trabalho, em que se vai da dramática redução dos postos – pense-se no nível alarmante de desemprego alcançado na Itália (e, mais em geral, na Europa) – e da persistência daquilo que o papa define como "trabalho escravo", ou seja, com salários indecentes e com a ausência da proteção dos direitos fundamentais do trabalhador – à denúncia da crise ambiental, em que, ao lado das responsabilidades estruturais, ligadas ao modelo de desenvolvimento ainda dominante, estão as responsabilidades dos indivíduos devido ao consumo descontrolado dos recursos; até a explícita condenação dos focos de guerra e a proclamação do bem da paz.
Algumas condições
As condições, que o papa frequentemente retoma como necessárias, são, por um lado, a produção de uma cultura do encontro e do diálogo, que favoreça o desenvolvimento de relações marcadas pelo conhecimento recíproco e pelo respeito das diferenças, além de estarem voltadas à busca da justiça e da equidade; e, por outro, a aquisição de estilos de vida inspirados em valores como a austeridade, a sobriedade, a redução das necessidades, o uso parcimonioso dos recursos e a atenção ao desperdício como forma de restituir valor aos bens relacionais e melhorar a qualidade de vida.
Trata-se, segundo o Papa Bergoglio, de ter a coragem de ir contra a corrente, de não ter medo de enfrentar situações novas com espírito novo, saindo dos postos consolidados, das aparentes seguranças adquiridas e buscando o que realmente importa para o bem de todos.
A ética que o papa privilegia, em última instância, é uma ética da missão, comprometida a dilatar criativamente os espaços da liberdade e da solidariedade humana e voltada a oferecer àqueles que vivem em situações difíceis – seja de material, seja espiritual – um verdadeiro sustento fraterno.
Daí o convite a sair ao ar livre, aceitando também o risco de errar, para se pôr incondicionalmente a serviço daqueles que esperam dos fiéis e da Igreja um sinal de esperança para o futuro.
"Mais do que o temor de nos equivocarmos – afirma o Papa Francisco –, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta, e Jesus nos repete sem cessar: 'Dai-lhes vós mesmos de comer' (Mc 6, 37)" ( Evangelii gaudium, n. 49).
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A ética do Papa Francisco. Artigo de Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU