Por: Cesar Sanson | 20 Março 2014
"Para a grande maioria dos jornais, uma mulher faleceu. Para nós, faleceu Claudia Silva Ferreira, uma pessoa que tinha uma identidade, uma história, um nome digno de ser mencionado nas manchetes de jornais". O comentário é de Amanda Vieira em artigo publicado pelo sítio Femmaterna, 19-03-2014.
Eis o artigo.
A maioria dos jornais publicou a manchete “mulher é arrastada por PMs“. Na TV, o Jornal Nacional mostrou até o vídeo feito por um cinegrafista amador, que mostrava o corpo de Claudia Ferreira sendo arrastado – mas não “lembrou” de mencionar o nome dela na escalada do Jornal Nacional (aquela parte inicial do jornal de televisão em que as manchetes das reportagens são lidas pelo casal de apresentadores). Optou por mostrar a barbárie – o nome da vítima ficou em segundo plano.
Para a grande maioria dos jornais, uma mulher faleceu. Para nós, faleceu Claudia Silva Ferreira, uma pessoa que tinha uma identidade, uma história, um nome digno de ser mencionado nas manchetes de jornais. Ela tinha uma vida digna de ser preservada, tanto quanto qualquer outra neste país que, pelo menos oficialmente, não aceita pena de morte.
Na prática morre muita gente pelas mãos da polícia – e não por acaso ou acidente. Há uma aceitação subliminar para se matar pessoas em nome de se “conter o terror” causado pelo tráfico de drogas. Quando a política de se combater a violência se resume à própria violência (estatal, por meio da PM, pela ação da UPP), o resultado é a proliferação dos ciclos violentos. E a para manter esse ciclo, é preciso fazer com que as pessoas “se acostumem” com as mortes “inevitáveis” nas periferias. E para a população se “acostumar” com as mortes, as vítimas não podem ter nome nem história, para que ninguém desenvolva empatia, para que ninguém questione, para que tudo permaneça como está.
Por isso é bom repetir: o nome dela é Cláudia Silva Ferreira. Quem a matou? A política que dá suporte às ações das UPPs nas favelas – não se trata “apenas” de policiais que já respondem inquérito por homicídio. Não é exceção à regra. Não é um número nas estatísticas. Matar Cláudias não pode ser aceito como caminho político para se combater o tráfico nas favelas. A morte dela é parte dessa política em que a polícia tem licença para matar, sejam bandidos ou inocentes, não importa, com o apoio silencioso de certas camadas da população que estão anestesiadas demais pra questionar alguma coisa.
Qual é a necessidade da UPP na favela? Nenhuma. Adianta implantar uma UPP sem escola, sem saneamento básico, sem o mínimo de estrutura estatal, se o tráfico encontra a moçada da favela desocupada e sem perspectiva? Adianta UPP se ela está matando pessoas como Claudia Ferreira, uma mulher que trabalhava fora de casa, cuidava de quatro filhos e ainda tomava conta das crianças de outras mulheres? E se Claudia Ferreira fosse traficante, e daí? Nenhum agente do estado tem o direito de matar quem quer que seja, mas ainda assim, no imaginário de muita gente, é só com violência que se combate a violência!
Precisamos começar neste ponto: Cláudia Ferreira deveria estar viva – foi assassinada por uma política que não a enxergou como ser humano, como pessoa. Quando a gente partir desse ponto, encontraremos melhores respostas para combater o tráfico.
Precisamos dar nomes, precisamos contar as histórias por trás dos números: existem mães e pais que perdem filhos; filhos que perdem mães e pais, é toda uma teia social de amigos, vizinhos e conhecidos que se rompe. São cidadãos que vivem constantemente sob a ameaça da violência na próxima esquina e são obrigados a se acostumar com essa realidade. E não contam nem com a empatia dos jornais porque eles, na maioria das vezes, só chegam pra mostrar o enterro “de uma mulher” e o choro “dos parentes e amigos”. Não ficam pra mostrar como é que a vida continua ali, depois disso.
Importante, por exemplo, é cobrar do governo do Estado as consequências de suas ações desmedidas: como ficarão os familiares de Cláudia Ferreira? Quem vai se responsabilizar pelos cuidados dos filhos dela e das crianças que ela ajudava a tomar conta? As autoridades do Rio de Janeiro já não oferecem suporte para as crianças que têm pai e mãe na favela: falta creche, falta escola, falta saneamento básico, faltam centros de convivência. Será que os filhos de Cláudia Ferreira, que já não tinham apoio do Estado, serão indenizados de alguma forma?
O manifesto dos moradores do Complexo do Alemão é bastante incisivo na cobrança por escolas públicas e saneamento básico nas favelas e também na crítica às ações violentas dos policiais dentro das casas das pessoas. Precisamos ouvir essa população urgentemente! Clique aqui e veja como os moradores da comunidade cobriram a notícia. São muitas vozes que não aparecem com o devido destaque nos jornais tradicionais.
Sugestões para os jornais? Que comecem a contar as histórias de Claudias e Amarildos. Que mudem suas narrativas. Que façam os desdobramentos da reportagem não só consultando autoridades (que é o mais comum), mas sim frequentando a periferia, ouvindo as reivindicações das pessoas que moram naquela região, procurando saber qual é a necessidade delas. Procurar respostas na academia também é válido, muitos pesquisadores estudam a violência há muito tempo e têm muito a contribuir. O que não pode é essa invisibilidade de quem morre pelas mãos do estado. Não dá pra fingir que está tudo bem – esses assassinatos precisam acabar.
Foto: Jornal Extra.
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Claudia Silva Ferreira: baleada, arrastada e morta pela PM. Até quando? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU