06 Março 2014
O economista francês François Chesnais costuma fazer uma visita por ano ao Brasil, para rever amigos e participar de conferências. Na sua mais recente estada, há pouco dias, aproveitou para conhecer Alter do Chão (PA), onde ficou por uma semana, após uma passagem pelo Rio, onde participou de seminário e recebeu uma homenagem por seus 80 anos, com a publicação do livro "O Brasil e o Pensamento de François Chesnais", organizado por professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Crítico do neoliberalismo, em entrevista concedida por e-mail, após retorno a Paris, Chesnais disse acreditar que a qualquer momento uma nova crise mundial pode ocorrer por conta, sobretudo, da falta de maior regulação sobre o sistema financeiro. Após o colapso mundial de 2007/2008, algumas instituições financeiras "têm feito suas operações ainda mais opacas e difíceis de identificar". Além disso, ressalta que a imensa massa de capital fictício (sem lastro na economia real) leva à perspectiva da existência de apenas recuperações cíclicas de curto prazo em certas economias, como ele acredita que acontece nos Estados Unidos hoje.
A entrevista é de Vanessa Jurgenfeld, publicada pelo jornal Valor, 05-03-2014.
Sobre o Brasil, a avaliação do economista é a de que a falta de crescimento mais robusto decorre da reprimarização da economia e pelo fato de o país ter eleito a indústria automobilística como o grande motor do seu desenvolvimento e mantê-la neste papel, mesmo com a perda do seu poder.
Chesnais ganhou notoriedade com o livro "A Mundialização do Capital", publicado no Brasil em 1996 [editora Xamã ]. Ex-diretor da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e professor da Universidade Paris XIII (agora Paris-Nord), ele chamou a atenção para um movimento que se evidenciava de forma mais intensa a partir dos anos 1980: a internacionalização do capital produtivo facilitada pela desregulamentação dos fluxos de capitais e pelo avanço na comunicação e nos transportes.
Com uma interpretação teórica marxista, ele mostrou que este processo propiciou a expansão dos grandes grupos transnacionais que, por meio de fusões e aquisições, aumentaram a concentração da produção, formando oligopólios mundiais em diversos setores.
Atualmente, Chesnais finaliza uma edição em inglês de um livro que trará sua interpretação sobre a crise financeira mundial mais recente.
Eis a entrevista.
Uma das suas principais ideias é que a globalização financeira cria um mundo mais instável e estimula crises econômicas. Bancos, governos, fundos mútuos e as grandes corporações seriam a grande força por trás desse movimento? E na sua avaliação ele estaria se tornando cada vez mais forte?
A massa de juros cobrada por bancos e fundos, em particular por meio do mecanismo de emissão de títulos de dívidas governamentais, somada à massa de lucros empresariais distribuídos como dividendos, é canalizada para os mercados financeiros. E ela acaba nas mãos de um pequeno número, altamente concentrado, de grandes bancos, fundos, empresas e indivíduos muito ricos. A maior parte dessa massa de juros e dividendos nunca deixa a arena dos mercados financeiros globais. Isso infla o volume do que é chamado de "capital fictício à enésima potência", com negociações por meio de derivativos, mercados de câmbio e papéis securitizados que germinaram nos anos 2000 - como os "asset-backet security" (ABS, na sigla em inglês) e os "collateralized debt obligations" (CDOs, na sigla em inglês) - e rendendo lucros fictícios, como meus colegas Mauricio Sabadini, Paulo Nakatani e Rosa Marques os chamam. Essas somas imensas movem-se cada vez mais de um mercado a outro. E elas o fazem cada vez mais rápido, por meio das negociações de alta velocidade.
Os mercados emergentes enfrentam neste momento um período difícil, especialmente países como Turquia e Argentina. Como o sr. interpreta esse momento?
Isso mostra que a desaceleração do crescimento desses países e as tensões políticas internas, combinadas com uma perspectiva de mudança da política monetária americana, estão levando os fundos especulativos de curto prazo a arbitrar em favor de investimentos em outros mercados.
O sr. acredita que ainda há efeitos da crise mundial de 2007-08 sobre a economia global? Por que está sendo tão demorada a superação dessa crise?
A raiz da crise foram as quedas na taxa de lucro das economias centrais do G7 e a construção de um investimento excessivo e de superprodução em vários lugares do sistema mundial, incluindo a China, claro, por conta do seu programa de investimentos e regime de orientação exportadora. Em 1998 e de novo em 2001, a explosão da crise global foi postergada, notadamente pelo governo americano e pela emissão de moeda pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano). A partir de 2002, uma grande quantidade de dívida do setor imobiliário, sustentada pela explosão da securitização, retornou para a aquisição de residências e edifícios comerciais. Isso criou uma dupla bolha de ativos, no mercado imobiliário e nos títulos lastreados por hipotecas [Mortgage Backed Securities (MBS)]. Casas e apartamentos não eram vistos apenas - ou se é que eram vistos - como valor de uso, mas como ativos financeiros cujos preços continuariam a subir e nunca haveria um colapso. Os empréstimos "subprime" para famílias muito pobres foram só a ponta do iceberg. Hoje, a persistência da acumulação excessiva global e da superprodução, conjuntamente com a existência de uma massa de capital fictício indestrutível como dito antes, significa que a única perspectiva é que só existem recuperações cíclicas de curto prazo em certas economias, como é temporariamente o caso dos Estados Unidos. É interessante notar que no Japão o "Abeconomics" já está tendo efeitos reduzidos. A taxa de crescimento do Japão nos últimos dois trimestres caiu significativamente e também houve redução de suas exportações, mesmo com taxa de câmbio favorável ao exportador.
Na sua opinião, as novas formas que assumiram as grandes corporações, principalmente pós-70, seriam uma das mais importantes causas da desigualdade mundial, pela preocupação maior do negócio empresarial em obter ganhos para os acionistas do que em melhorar os salários dos seus funcionários, por exemplo?
Nenhuma corporação jamais teve o aumento do salário dos seus trabalhadores como um objetivo! Aumentos salariais apenas têm sido obtidos pela classe trabalhadora por meio de sindicatos e ações políticas. O recente desenvolvimento na organização e no gerenciamento das grandes corporações é o degrau por meio do qual o poder oligopolístico e monopsônico [situação onde há um único comprador, que concentra poder de mercado, diante de inúmeros vendedores] permite a elas atacar as pequenas firmas, valendo-se de práticas predatórias. Esse poder força as pequenas firmas a reduzir os salários e a aumentar a produtividade dos seus próprios trabalhadores. Esta é uma das grandes causas do aumento da desigualdade que vem conjuntamente aos grandes ganhos obtidos por meio do mercado financeiro e, claro, com a baixa taxação sobre a riqueza.
O sr. acredita que a financeirização se tornou maior na estrutura de capital das empresas em diferentes países? Ou é possível ver algumas exceções como na China, por exemplo?
O que é chamado de "financeirização das corporações industriais" contempla duas grandes áreas: as suas operações no mercado financeiro e os seus métodos atuais de gerenciamento global não tão direcionados à produção de mais-valia quanto à sua apropriação, ou seja, [direcionados] à caça predatória das pequenas firmas. Desde os anos 1960, primeiramente as firmas americanas e então todas as transnacionais se tornaram organizações engajadas tanto em produzir valor e mais-valia quanto em operações no mercado financeiro e empréstimos. Isso simplesmente se tornou mais visível e estudado um pouco melhor [nos últimos anos]. O parasitismo difundido pelo capital financeiro contemporâneo são essas novas formas de organização da corporação, que agora focam menos na exploração do trabalho "intra-muros" e mais na apropriação predatória de mais-valia em cima das firmas mais frágeis, o que é permitido pela posição de monopólio e de monopsônio que ocupam nas "cadeias de valor globais" (global value chains, em inglês). As corporações chinesas estão em uma situação diferente. Mesmo quando o Estado não tem fatia no capital, elas estão protegidas contra a interferência de "hedge funds" na sua administração e ainda estão em uma fase de cuidadosamente focar em "joint ventures" para acesso à tecnologia estrangeira. Mas, como mostra o desenvolvimento do sistema bancário paralelo [que engloba instituições que na prática cumprem funções de bancos, mas não são bancos e não estão sujeitas à regulamentação dos bancos, chamado em inglês de "shadow banking system"), a China não está fora do movimento de globalização e financeirização.
Considerando o aumento da importância do capital financeiro dentro das empresas, o sr. acredita que há muitas diferenças entre o capitalista industrial e o capitalista financeiro (bancos)? No capitalismo dominado pelas finanças, eles não são praticamente o mesmo agente? Quais as consequências disso no longo prazo?
As diferenças são muito, muito pequenas. Nas condições contemporâneas da globalização, o capital financeiro é o resultado de um processo contínuo de centralização e concentração. O capital financeiro resulta de um processo incessante de centralização e concentração dos capitais industrial, bancário e mercantil como um todo e de suas inter-relações. O capital financeiro contemporâneo está de forma combinada no "capital produtivo", alojado em corporações industriais - todas corporações transnacionais -, no "capital dinheiro", centralizado em grandes e poderosos conglomerados financeiros (J.P. Morgan, BNP Paribas, Santander [por exemplo]), e no "capital mercantil e comercial" incorporado tanto pelos conglomerados que operam em commodities (Cargill, Dreyfus) como aqueles que operam na comercialização final dos produtos (Walmart, Carrefour). Acionistas e gestores das empresas cada vez mais dividem o mesmo objetivo de maximizar o valor para os acionistas do mercado financeiro. Como consequência de longo prazo, a mais central e dramática é que a relação do ser humano com a natureza está agora principalmente moldada pelo parasitismo criado por esse capital. Esse capital é essencialmente incapaz de aceitar limites para suas operações. E esse capital está direcionado a perseguir um curso no qual desconsidera mudanças climáticas, apesar do trabalho de cientistas no IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change) e do fato de que recursos naturais limitados continuam a alimentar investimentos destrutivos.
O sr. acredita que esse aumento da financeirização das corporações é parte do problema do baixo crescimento de diversos países nos últimos anos? O Brasil tem enfrentado baixas taxas...
Isso é apenas parte do problema. Em quase todos os países há outros fatores que derivam de decisões escondidas ou implícitas tomadas por industriais nacionais e pelas elites financeiras, e por políticas governamentais deliberadas. Grandes bancos nacionais e estrangeiros estão, claro, envolvidos em todas elas. A queda na taxa de crescimento do Brasil está relacionada com a "reprimarização" da economia, que cria uma alta dependência da demanda estrangeira, sobretudo, da China. A indústria automobilística foi escolhida como o motor do crescimento doméstico e mantida neste papel apesar da visível perda do seu poder e dos problemas sistêmicos urbanos de grande magnitude nas cidades. Essas escolhas e suas possíveis consequências foram de fato alguma vez realmente discutidas? A vulnerabilidade do Brasil à saída repentina do capital externo de curto prazo - que não é tão séria, mas também não é totalmente diferente da de países como Turquia e Argentina - resulta da baixa taxação [sobre o capital externo], alta dívida pública e alta taxa de juros. Isso não está relacionado com o baixo crescimento do PIB? É indiferente para a justiça social, assim como para o crescimento, que mais de 45% do orçamento federal sejam gastos com o serviço da dívida pública brasileira, como revelado por Maria Lucia Facttorelli e a Auditoria Cidadã da Dívida? A mídia permitiu que essa questão fosse discutida?
Os fundos se tornaram os "grandes vencedores" da economia desregulada, que se evidenciou com a crise de 2007-08? O sr. acha que mesmo após 2007-08, ainda se vive em uma economia mundial muito desregulada?
Sim, isso é, de fato, o caso. Mas é justamente nisso que estão as sementes de uma nova e grande crise financeira. O sistema bancário paralelo (shadow banking system), em particular, tem crescido e tem feito suas operações ainda mais opacas e difíceis de identificar. Mesmo Hank Paulson, que era secretário do Tesouro dos Estados Unidos em 2008, começou a alertar sobre os perigos do sistema bancário paralelo. Apenas uma nova crise financeira e muito mais severa e totalmente em escala global - e o Brasil não vai escapar da próxima vez - poderia criar as condições para qualquer controle real. Essa [nova] crise pode ocorrer em algum momento nos próximos anos.
Por que diversos governos não conseguiram impor controles mais rigorosos sobre o sistema financeiro?
A razão básica é que os governos defendem uma ordem social hierárquica de divisão de classes, atualmente uma verdadeira ordem oligárquica. Alguns governos consideram essa situação como natural, outros como muito poderosa para ser desafiada e transformada. Os chamados governos esquerdistas não confiam na capacidade criativa de uma grande massa de homens e mulheres. Eles [os chamados governos esquerdistas] nunca pediram seu apoio [o da grande massa], a não ser em alguns poucos e breves momentos, em um pequeno número de países. Na verdade, em sua maioria, eles a temem.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Sementes de uma nova crise" estão postas, diz Chesnais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU