03 Março 2014
Homem e mulher são, conjuntamente e na célula familiar, futuro, virtude social e busca da felicidade. Se pensarmos na importância das famílias para o futuro da Igreja, o número em rápido crescimento das famílias desagregadas parece ser uma tragédia ainda maior. Há muito sofrimento. Não basta considerar o problema só do ponto de vista e da perspectiva da Igreja como instituição sacramental; precisamos de uma mudança de paradigma e devemos – como fez o bom samaritano (Lc 10, 29-37) – considerar a situação também a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda.
Publicamos aqui a palestra proferida pelo cardeal Walter Kasper, ex-presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, a pedido do Papa Francisco, por ocasião do consistório extraordinário recém-concluído, definida como ouverture em vista do Sínodo sobre a família de outubro.
O documento foi publicado pelo jornal Il Foglio, 01-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Neste ano internacional da família, o Papa Francisco convidou a Igreja a celebrar um processo sinodal sobre os "Desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização". Na exortação apostólica Evangelii gaudium, ele escreve: "A família atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade" (EG 66).
Muitas famílias hoje devem se confrontar com grandes dificuldades. Muitos milhões de pessoas se encontram em situação de migração, fuga e afastamento, ou em condições de miséria indignas do homem, nas quais não é possível uma vida familiar ordenada. O mundo atual está vivendo uma crise antropológica. O individualismo e o consumismo colocam em discussão a cultura tradicional da família; as condições econômicas e de trabalho tornam muitas vezes difícil a convivência e a coesão no seio da família. Portanto, o número daqueles que têm medo de fundar uma família ou que fracassam na realização do seu projeto de vida aumentou de modo dramático, como também o das crianças que não têm a sorte de crescer em uma família ordenada.
A Igreja, que compartilha as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens (GS 1), é desafiada por essa situação. Por ocasião do último ano da família, o Papa João Paulo II retocou as palavras da encíclica Redemptor hominis (1979): "O homem é a via da Igreja", afirmando que "a família é a via da Igreja" (2 de fevereiro de 1994). Porque, normalmente, a pessoa nasce em uma família e geralmente cresce no ventre de uma família. Em todas as culturas da história da humanidade, a família é o percurso normal do homem. Hoje também muitos jovens buscam a felicidade em uma família estável.
Porém, devemos ser honestos e admitir que, entre a doutrina da Igreja sobre o matrimônio e sobre a família e as convicções vividas por muitos cristãos criou-se um abismo. O ensinamento da Igreja se abre hoje a muitos cristãos como distante da realidade e da vida. Porém, também podemos dizer e podemos dizê-lo com alegria: também há famílias que fazem o seu melhor para viver a fé da Igreja e que dão testemunho da beleza e da alegria da fé vivida no seio da família.
Muitas vezes, são uma minoria, mas são uma minoria significativa. A situação da Igreja de hoje não é uma situação inédita. Ao contrário, a Igreja dos primeiros séculos também estava confrontada com conceitos e modelos de matrimônio e de família muito diferentes do pregado por Jesus, que era novíssimo tanto para os judeus quanto para os gregos e os romanos. Portanto, a nossa posição hoje não pode ser uma adaptação liberal ao status quo, mas sim uma posição radical que vai às raízes, isto é, ao Evangelho, e para além de um olhar à frente. Assim, será tarefa do Sínodo falar novamente da beleza e da alegria do Evangelho da família, que é sempre o mesmo e, no entanto, sempre novo (EG 11).
A presente intervenção não pode abordar todas as questões atuais, nem pretende antecipar os resultados do syn-odos, isto é, do caminho (odos) comum (syn) da Igreja inteira, o caminho da atenta escuta recíproca, do intercâmbio e da oração. Ao invés, ele quer ser uma espécie de ouverture que leva ao tema, na esperança de que, no fim, nos seja doada uma sym-phonia, ou seja, um conjunto harmônico de todas as vozes na Igreja, mesmo aquelas que, por enquanto, são em parte dissonantes.
Não se trata, agora, de reiterar a doutrina da Igreja. Interrogamo-nos sobre o Evangelho da família e, de tal modo, retornamos à fonte da qual brotou a doutrina. Como já afirmava o Concílio de Trento, o Evangelho acreditado e vivido na Igreja é a fonte de toda verdade de salvação e disciplina do costume (DH 1501; cfr. EG 36). Isso significa que a doutrina da Igreja não é uma laguna estagnada, mas sim uma torrente que brota da fonte do Evangelho, ao qual afluiu a experiência de fé do povo de Deus de todos os séculos. É uma tradição viva que, hoje, como muitas outras vezes na história, chegou a um ponto crítico e que, em vista dos "sinais dos tempos" (OS 4), exige ser continuada e aprofundada.
O que é esse Evangelho? Não é um código jurídico. É luz e força da vida que é Jesus Cristo. Ele doa o que se pede. Só à sua luz e na sua força é possível compreender e observar os mandamentos. Para Tomás de Aquino, a lei da nova Aliança não é uma lex scripta, mas sim a gratia Spiritus Sancti, quae datur per fidem Christi. Sem o Espírito que opera nos corações, a carta do Evangelho é uma lei que mata (2Cor 3-6). Portanto, o Evangelho da família não quer ser um peso, mas sim, como dom da fé, uma alegre novidade, luz e força da vida na família.
Chegamos assim ao ponto central. Os sacramentos, também o do matrimônio, são sacramentos da fé. Signa protestantia fidem, diz Tomás de Aquino. O Concílio Vaticano II reitera essa afirmação. Diz sobre os sacramentos: "Não só supõem a fé, mas também a alimentam, fortificam e exprimem" (SC 59). O sacramento do matrimônio também pode se tornar eficaz e ser vivido só na fé. Portanto, a pergunta essencial é: como é a fé dos futuros esposos e dos cônjuges? Nos países de antiga cultura cristã, observamos hoje o colapso daquelas que, por séculos, foram obviedades da fé cristã e da compreensão natural do matrimônio e da família. Muitas pessoas são batizadas, mas não evangelizadas. Dito em termos paradoxais, são catecúmenos batizados, senão até pagãos batizados.
Nessa situação, não podemos partir de uma lista de ensinamentos e de mandamentos, fixarmo-nos nas chamadas "questões candentes". Não queremos e não podemos evitar essas perguntas, mas devemos partir de modo radical, ou seja, da raiz da fé dos primeiros elementos da fé (Hb 5,12) e percorrer, passo a passo, um caminho de fé (FC 9; EG 3.439). Deus é um Deus do caminho; na história da salvação ele fez um caminho conosco; a Igreja, na sua história, também fez um caminho. Hoje, ela deve percorrê-lo de novo junto com as pessoas do presente. Não quer impor a fé a ninguém. Só pode apresentá-la e propô-la como via para a felicidade. O Evangelho só pode convencer através de si mesmo e da sua profunda beleza.
O Evangelho da família remonta aos primórdios da humanidade. Foi-lhe dado pelo Criador no seu caminho. Portanto, a instituição do matrimônio e família é apreciada em todas as culturas da humanidade. Ela é entendida como comunidade de vida entre homem e mulher, juntamente com os seus filhos. Essa tradição da humanidade tem características diferentes nas diversas culturas. Na origem, a família estava inserida na grande família ou no clã. A instituição da família é, embora com todas as diferenças particulares, a ordem original da cultura da humanidade. Não pode ter um bom sucesso estabelecer hoje uma nova definição da família, que contradiga ou mude a tradição cultural de toda a história da humanidade.
As antigas culturas da humanidade consideravam seus próprios costumes e leis da ordem familiar como ordem divina. Do seu respeito, dependiam a existência, o bem e o futuro do povo. No contexto do período axial, os gregos falavam de maneira não mais mitológica, mas sim, em certo sentido, iluminada, de uma ordem fundada na natureza do homem. São Paulo assumiu esse modo de pensar e falou de uma lei moral natural, inscrita por Deus no coração de todo homem (Rm 2, 14 s.).
Todas as culturas conhecem, de um modo ou de outro, a regra áurea que impõe que se respeite o outro como a si mesmo. No discurso da montanha, Jesus reiterou essa regra áurea (Mt 7, 12; Lc 6, 31). Nela, está plantando como um gérmen, o mandamento do amor pelo próximo, de amar o próximo como a si mesmo (Mt 22, 39). A regra áurea é considerada uma síntese do direito natural e do que ensinam a lei e os profetas (Mt 7,12; 22, 40; Lc 6, 31).
O direito natural, que encontra expressão na regra áurea, torna possível o diálogo com todas as pessoas de boa vontade. Oferece-nos um critério para avaliar a poligamia, os casamentos forçados, a violência do casamento em família, o machismo, a discriminação das mulheres, a prostituição, as condições econômicas modernas hostis à família, as situações de trabalho e salariais. A pergunta decisiva é sempre: O que, na relação entre homem, mulher e filhos, corresponde ao direito da dignidade do outro?
Embora útil, o direito natural permanece genérico e, quando se trata de questões concretas, ambíguo. Nessa situação, na revelação, Deus veio ao nosso encontro. A revelação interpreta de modo concreto o que podemos reconhecer do ponto de vista do direito natural. O Antigo Testamento ganhou impulso da sabedoria da tradição do antigo Oriente da época e, através de um longo processo educativo, o aperfeiçoou à luz da fé em Yahweh. A segunda tábua do decálogo (Ex 20, 12-17; Dt 5 5, 16-21) é o resultado de tal processo. Jesus o confirmou (Mt 19), e os Padres da Igreja estavam convencidos de que os mandamentos da segunda tábua do decálogo correspondiam a todos os mandamentos da consciência moral comum dos homens.
Os mandamentos da segunda tábua do decálogo, portanto, não são uma moral especial judaico-cristã. São tradições da humanidade concretizadas. Neles, valores fundamentais da vida familiar são confiados à proteção particular de Deus: O respeito pelos pais e o cuidado dos pais idosos, a inviolabilidade do matrimônio, a proteção da nova vida humana que nasce do matrimônio, a propriedade como base para a vida da família e as relações recíprocas verdadeiras, sem as quais não pode existir a comunidade.
Com esses mandamentos, foi dado aos homens um modelo, uma espécie de bússola para o seu caminho. Por isso, a Bíblia não entende esses mandamentos como um ônus e uma limitação da liberdade; ela se alegra com o mandamento de Deus (Sl 1, 2; 112, 1; 119). Eles são indicações sobre o caminho para uma vida feliz e realizada. Não podem ser impostos a ninguém, mas podem ser propostos a todos, com boa razão, como caminho para a felicidade.
O Evangelho da família no Antigo Testamento chega à conclusão nos dois primeiros capítulos do Gênesis. Estes também contêm antiquíssimas tradições da humanidade, interpretadas de maneira crítica e aprofundadas à luz da fé em Yahweh. Quando é estabelecido o cânone da Bíblia, no conjunto, foram postos por primeiro, de modo programático, como ajuda hermenêutica à leitura e à interpretação da Bíblia. Neles, é apresentado o desígnio original de Deus da família. É possível extrapolar três afirmações fundamentais a partir deles.
1. "E Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; e os criou homem e mulher" (Gn 1, 27). No seu duplo gênero, o homem é a boa ou até mesmo a ótima criação de Deus. Não foi criado solteiro: "Não é bom que o homem esteja sozinho. Vou fazer para ele uma auxiliar que lhe seja semelhante" (2, 18). Por isso, Adão acolhe a mulher com um alegre grito de boas-vindas (2, 23). O homem e a mulher foram doados por Deus um ao outro. Devem se completar e se sustentar, comprazer-se e encontrar alegria um no outro.
Ambos, homem e mulher, como imagem de Deus, têm a mesma dignidade. Não há lugar para a discriminação da mulher. Mas o homem e a mulher não são simplesmente iguais. A sua igualdade na dignidade se fundamenta também como a sua diversidade, na criação. Estas não são dadas a eles por ninguém, nem eles se dão por si mesmos. Não nos tornamos homem ou mulher através da respectiva cultura, como afirmam algumas opiniões recentes. O ser homem e o ser mulher estão fundamentados ontologicamente na criação. A igual dignidade da sua diversidade explica a atração entre os dois, cantada nos mitos e nos grandes poemas da humanidade, assim como no Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento. Querer torná-los iguais por ideologia destrói o amor erótico. A Bíblia entende esse amor como união para se tornar uma só carne, isto é, como uma comunidade de vida, que inclui sexo, eros, além da amizade humana (2, 24). Nesse sentido completo, o homem e a mulher foram criados pelo amor e são imagem de Deus, que é amor (1Jo 4, 8).
Como imagem de Deus, o amor humano é algo grande e belo, mas não é divino por si só. A Bíblia desmitiza a "baalização" vetero-oriental da sexualidade na prostituição nos templos e condena a licenciosidade como idolatria. Se um parceiro deifica o outro e espera dele que lhe prepare o céu na terra, então o outro, por força, se sente solicitado demais; só pode decepcionar. Por causa dessas expectativas excessivas, muitos matrimônios fracassam. A comunidade de vida entre homem e mulher, junto com os seus filhos, só pode ser feliz se eles se entendem reciprocamente como um dom que os transcende. Assim, a criação do homem desemboca no sétimo dia, na celebração do sabbat. O homem não foi criado como animal de trabalho, mas para o sabbat. Como dia para ser livres para Deus, também deve ser um dia para ser livres para a festa e a celebração comum, um dia de tempo livre a ser passado com e para o outro (cfr. Ex 20, 8-10; Dt 5, 12-14). O sabbat, ou seja, o domingo, como dia da família, é algo que devemos aprender de novo com os nossos amigos judeus.
2. "E Deus os abençoou e lhes disse: 'Sejam fecundos, multipliquem-se'" (1, 28). O amor entre o homem e a mulher não é fechado em si mesmo; transcende a si mesmo e se concretiza nos filhos que nascem desse amor. O amor entre um homem e uma mulher, e a transmissão da vida são inseparáveis. Isso não vale apenas para o ato do gerar, mas também vai além. O primeiro nascimento continua no segundo, o social e cultural, na introdução à vida e através da transmissão dos valores da vida. Por isso, os filhos precisam do espaço protetor e da segurança afetiva no amor dos país; ao contrário, os filhos reforçam e enriquecem o laço de amor entre os pais. As crianças são uma alegria e não um peso.
Para a Bíblia, a fecundidade não é uma realidade meramente biológica. Os filhos são fruto da bênção de Deus. A bênção é o poder de Deus na história e no futuro. A bênção na criação continua na promessa da descendência de Abrão (Gn 12, 2-5; 18, 18; 22, 18). Assim, a potência vital da fecundidade, divinizada no mundo antigo, é entrelaçada com a ação de Deus na história. Deus coloca o futuro do povo e a existência da humanidade nas mãos do homem e da mulher.
O discurso sobre a parentalidade responsável tem um significado mais profundo do que aquele que lhe é atribuído geralmente. Significa que Deus confia a coisa mais preciosa que pode dar, isto é, a vida humana, à responsabilidade do homem e da mulher. Eles podem decidir responsavelmente sobre o número e os tempos do nascimento dos seus filhos. Devem fazer isso na responsabilidade diante de Deus e no respeito da dignidade e do bem do parceiro, na responsabilidade com relação ao bem dos filhos, na responsabilidade com relação ao futuro da sociedade e no respeito da natureza do homem (GS 50). Disso resulta não uma casuística, mas sim uma figura sensata vinculante, cuja realização concreta é confiada à responsabilidade do homem e da mulher. A eles é dada a responsabilidade do futuro. O futuro da humanidade passa pela família. Sem a família, não há futuro, mas sim o envelhecimento da sociedade, perigo diante do qual se encontram as sociedades ocidentais.
3. "Encham a terra e submetam-na" (1, 28). Às vezes, as palavras submeter e reinar foram entendidas no sentido de submissão violenta e de exploração, atribuindo ao cristianismo a culpa pelos problemas ambientais. Os biblistas demonstraram que essas duas palavras não devem ser entendidas no sentido de uma submissão e de um domínio violento. A segunda narração da criação fala de cultivar e guardar (2, 15). Trata-se, portanto, como dizemos hoje, da missão cultural do homem. O homem deve cultivar e cuidar da terra como de um jardim, deve ser guardião do mundo e transformá-lo em um ambiente de vida digno do homem. Essa tarefa não cabe apenas ao homem, mas a homem e mulher conjuntamente. Ao seu cuidado e responsabilidade é confiada não apenas a vida humana, mas também a terra em geral.
Com essa missão cultural, mais uma vez a relação entre homem e mulher transcende a si mesma. Não é mero sentimentalismo que gira em torno de si mesmo; não deve se fechar em si mesmo, mas sim abrir-se à missão para o mundo. A família não é apenas uma comunidade pessoal privada. É a célula fundamental e vital da sociedade. É a escola de humanidade e das virtudes sociais, necessárias para a vida e o desenvolvimento da sociedade (OS 47; 52). É fundamental para o nascimento de uma civilização do amor e para a humanização e a personalização da sociedade, sem as quais ela se torna uma massa anônima. Nesse sentido, pode-se falar de uma tarefa social e política da família (FC 44).
Como instituição primordial da humanidade, a família é mais antiga do que o Estado e, com relação a ele, de direito próprio. Na ordem da criação, nunca se fala de Estado. Ele deve, sempre que possível, sustentar e promover a família; mas não pode interferir nos seus direitos próprios. Os direitos da família, indicados na carta da família, fundamentam-se na ordem da criação (FC 46). A família como célula fundamental do Estado e da sociedade é, ao mesmo tempo, modelo fundamental do Estado e da humanidade como única família humana. Disso resultam consequências para uma espécie de ordem familiar na igual distribuição dos bens, como também para a paz no mundo (EG 176; 258). O Evangelho da família é, ao mesmo tempo, um Evangelho para o bem e para a paz da humanidade.
O que foi dito até agora constitui um quadro ideal, mas, de fato, não é a realidade das famílias. A Bíblia também sabe disso. Assim, aos capítulos 1 e 2 do Gênesis, segue-se o capítulo 3, com a expulsão do paraíso e da realidade conjugal e familiar paradisíaca. A alienação do homem de Deus tem como consequência a alienação do homem e entre os homens. Na linguagem da tradição teológica, definimos essa alienação como concupiscência; ela não deve ser entendida somente como desejo sexual desregulado. Para evitar tal mal-entendido, muitas vezes hoje se fala de estruturas do pecado (FC 9). Estas agravam também a vida da família. A Bíblia oferece uma descrição realista da conditio humana e da sua interpretação a partir da fé.
A primeira alienação ocorre entre o homem e a mulher. Eles sentem vergonha um diante do outro (3, 10). A vergonha demonstra que a harmonia original entre corpo e espírito é perturbada e que o homem e a mulher são alienados um do outro. O afeto degenera no desejo recíproco e no domínio do homem sobre a mulher (3, 16). Eles se criticam e se acusam mutuamente (3, 12). Violência, ciúme e discórdia se insinuam no matrimônio e na família.
A segunda alienação refere-se de modo particular às mulheres e às mães. Agora, elas devem dar à luz os próprios filhos com fadiga e dor (3, 16). Também devem criá-los na dor. Quantas mães se lamentam e choram pelos seus filhos, assim como Raquel chorou pelos seus, sem querer ser consolada? (Jr 31, 15; Mt 2, 18).
A alienação diz respeito também à relação do homem com a natureza e com o mundo. A terra não é mais um belo jardim, tem espinhos e ervas daninhas, é indomável e hostil, e o trabalho tornou-se duro e difícil. Agora, o homem deve trabalhar com fadiga e com o suor do seu rosto (3, 19).
Bem cedo se chega também à alienação e à disputa em família. Sobrevêm a inveja e a discórdia entre irmãos, o fratricídio e a guerra entre irmãos (4, 1-16). A Bíblia conta sobre a infidelidade entre cônjuges. Esta se insinua até na árvore genealógica de Jesus; de fato, compreende duas mulheres (Tamar e a mulher de Urias), que são consideradas pecadoras (Mt 1, 5 s.). Jesus também tinha antepassados que não provinham "de boa família" e que se preferiria calar e manter escondidos. A Bíblia aqui é muito realista, muito honesta.
Enfim, há a alienação mais importante, a morte (3, 19; cfr. Rm 5, 12) e todas as forças da morte que enfurecem no mundo, trazendo chagas, luto e perdição. Trazem também sofrimento à família. Pensemos apenas no que acontece quando uma mãe se encontra diante do túmulo do próprio filho ou quando os cônjuges devem se dizer adeus, algo particularmente penoso nos matrimônios felizes e que, para as pessoas mais idosas, muitas vezes significa dolorosos anos de solidão.
Quando falamos da família e da beleza da família, não podemos partir de uma irrealista imagem romântica. Devemos ver também as duras realidades e participar da tristeza, das preocupações e das lágrimas de muitas famílias. O realismo bíblico pode até nos oferecer uma certa consolação. Ele nos mostra que aquilo pelo qual choramos não é algo de hoje e que, no fundo, sempre foi assim. Não devemos ceder à tentação de idealizar o passado e depois, como está na moda em alguns ambientes, ver o presente como mera história de decadência. A saudade dos bons e velhos tempos e as lamentações sobre as jovens gerações existem desde que existe uma geração mais velha. Não é só a Igreja que é (como disse o Papa Francisco) um hospital de campanha, mas a família também é um hospital de campo com muitas feridas a se enfaixar e tantas lágrimas a enxugar, e onde é preciso continuar criando reconciliação e paz.
No fim, o terceiro capítulo do Gênesis acende uma luz de esperança. Expulsando o homem do paraíso, Deus lhe deu uma esperança para lhe acompanhar no seu caminho. O que a tradição define como protoevangelho (Gn 3, 15) pode ser entendido também como protoevangelho da família. Da sua descendência, nascerá o Salvador. As genealogias em Mateus e Lucas (Mt 1, 1-7; Lc 3, 23-38) testemunham que, da sucessão das gerações, mesmo que sofrendo alguns abalos, no fim nasceu o Salvador. Deus pode escrever certo por linhas tortas. Por isso, acompanhando os homens no seu caminho, devemos ser não profetas da desventura, mas sim portadores de esperança, que oferecem consolação e que, também nas situações difíceis, encorajam a seguir em frente.
Jesus entrou em uma história familiar. Cresceu na família de Nazaré (Lc 2, 51 s.). Dela também faziam parte irmãos e irmãs em sentido lato (Mc 3, 1-33; 6, 3), além de parentes mais distantes, evidentemente íntimos, como Isabel, Zacarias e João Batista (Lc 1, 35; 39-56). No início da sua vida pública, Jesus participou da celebração das bodas de Caná, realizando o primeiro milagre (Jo 2, 1-12). Desse modo, colocou toda a sua obra sob o sinal de um matrimônio e da alegria matrimonial. Com ele, o Esposo, tiveram início o matrimônio escatológico e o tempo de alegria anunciados pelos profetas.
Uma afirmação fundamental de Jesus sobre o matrimônio e sobre a família se encontra nas famosas palavras sobre o divórcio (Mt 19, 3-9). Moisés o havia admitido sob determinações condições (Dt 24, 1); as condições eram motivo de controvérsia entre as diversas escolas dos escribas judeus. Jesus não se deixa envolver nessa casuística, fazendo, ao invés, referência à vontade original de Deus: "No início da criação, não era assim". Os discípulos se assustam com essa afirmação. Consideram-na como um ataque inaudito à concepção do matrimônio do mundo que os circunda, além de uma pretensão impiedosa e excessiva. "Se essa é a condição do homem no matrimônio, não convém se casar". Jesus confirma indiretamente que, do ponto de vista humano, trata-se de uma pretensão excessiva. Deve ser "concedida" ao homem; ela é um dom da graça.
A palavra "concedido" mostra que as palavras de Jesus não devem ser entendidas de modo isolado, mas sim no contexto abrangente da sua mensagem do reino de Deus. Jesus faz derivar o repúdio da dureza do coração (Mt 19, 8), que se fecha a Deus e ao próximo. Com a vinda do reino de Deus, se cumpriu a palavra dos profetas, segundo a qual Deus, no tempo messiânico, transformaria o coração endurecido em um coração novo, não mais duro como pedra, mas sim um coração de carne, terno, sensível e empático (Ez 36, 26 s.; cfr. Jr 31, 33; Sal 51, 12). Como o adultério tem início no coração (Mt 5, 28), a cura só pode ocorrer através da conversão e do dom de um coração novo. Por isso, Jesus tomou distância da dureza do coração e da hipocrisia das punições draconianas infligidas a uma adúltera e concedeu o perdão a uma mulher acusada de adultério (Jo 8, 2-11; cfr. Lc 7, 36-50).
A boa nova de Jesus é que a aliança estreitada pelos cônjuges é abraçada e sustentada pela aliança de Deus, que, pela fidelidade de Deus, continua existindo mesmo quando o frágil laço humano do amor se torna mais fraco ou até mesmo morre. A promessa definitiva de aliança e de fidelidade de Deus priva o vínculo humano da arbitrariedade humana; confere-lhe solidez e estabilidade. O vínculo que Deus estreita em torno dos esposos seria mal-entendido se se quisesse compreendê-lo como um jugo; ao invés, é a primorosa promessa de fidelidade de Deus ao homem; é um encorajamento e uma constante fonte de força para manter, nas alternadas vicissitudes da vida, a fidelidade recíproca.
Dessa mensagem, Agostinho tirou a doutrina da indissolubilidade do vínculo matrimonial, que continua subsistindo mesmo onde, humanamente, o matrimônio se despedaça. Muitos, hoje, têm dificuldade para compreendê-la. Essa doutrina não pode ser entendida como uma espécie de hipóstase metafísica ao lado ou acima do amor pessoal dos cônjuges; por outro lado, não se esgota no amor afetivo recíproco e não morre com ele (GS 48; EG 66). É Evangelho, ou seja, palavra definitiva e promessa permanentemente válida. Como tal, leva a sério o homem e a sua liberdade. É próprio da dignidade do homem poder tomar decisões definitivas. Elas pertencem de modo permanente à história da pessoa; caracterizam-na de modo duradouro; não é possível tirá-las de cima dos ombros e fazer como se nunca foram tomadas. Se são despedaçadas, cria-se uma ferida profunda. As feridas podem ser curadas, mas a cicatriz permanece e continua fazendo mal; mas se pode e se deve continuar vivendo mesmo com fadiga. De modo semelhante, a boa nova de Jesus é que, graças à misericórdia de Deus, para quem se converte, são possíveis o perdão, a cura e um novo início.
Paulo retoma a mensagem de Jesus. Fala de um matrimônio "no Senhor" (1Cor 7, 20). Ele não se refere à forma eclesial do matrimônio, que se desenvolveu de modo definitivo só diversos séculos depois, por meio do decreto Tametsi do Concílio de Trento (1563). As "tábuas da família" (Col 3, 18 - 4, 1; Ef 5, 21 – 6, 9; 1 Pd 2, 18 - 3, 7) mostram que "no Senhor" não se refere ao início do matrimônio, mas sim a toda a vida em família, à relação entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre os senhores e os escravos que vivem na casa. As tábuas da cada retomam a ordem patriarcal, modificando-a, porém, "no Senhor". Através do "no Senhor", a submissão unilateral da mulher ao homem torna-se uma relação recíproca de amor, que caracterizará também as outras relações familiares. Paulo diz até – algo singular e até mesmo revolucionário em toda a antiguidade – que a diferença entre o homem e a mulher não conta mais para aqueles que são "um em Cristo" (Gal 3, 28). Assim, as "tábuas da família" são um exemplo da força da fé cristã que modifica e caracteriza as normas.
A Carta aos Efésios também vai além. Retoma a metáfora vetero-testamentária, testemunhada de modo particular em Oseias (2, 18-25), do vínculo matrimonial como definição da aliança de Deus com o seu povo. Em Cristo, essa aliança se cumpriu e se aperfeiçoou. Assim, o vínculo entre homem e mulher se torna símbolo concreto da aliança de Deus com os homens que se cumpriu em Jesus Cristo. Aquela que, desde os inícios do mundo, era uma realidade da boa criação de Deus, agora se torna um símbolo que ilustra o mistério de Cristo e da Igreja (Ef 5, 32).
O Concílio de Trento, com base em um desenvolvimento da história da teologia que se concluiu no século XII, identificava nessa afirmação uma referência à sacramentalidade do matrimônio (DH 1799; cfr. DH 1327). A teologia recente busca aprofundar tal motivação cristológica mediante uma visão trinitária e entende a família como representação do mistério da comunhão trinitária.
Como sacramento, o matrimônio é tanto instrumento de cura para as consequências do pecado, quanto instrumento da graça santificante. Pode-se aplicar esse ensinamento à família e dizer: entrando na história de uma família, Jesus curou e santificou a família. A ordem da salvação abrange a ordem da criação. Não é hostil ao corpo e à sexualidade; incluir sexo, eros e amizade humana, purificando-os e aperfeiçoando-os. De modo semelhante à santidade da Igreja, a santidade da família também não é uma grandeza estática. É constantemente ameaçada pela dureza do coração. Deve continuar percorrendo o caminho da conversão, da renovação e da maturação.
Assim como a Igreja está a caminho na via da conversão e da renovação (LO 8), o matrimônio e a família também se encontram no caminho da cruz e da ressurreição (FC 12 s.), sob a lei da gradualidade do continuar crescendo de modo sempre novo e mais profundo no mistério de Cristo (PC 9. 34). Essa lei da gradualidade me parece ser uma coisa importantíssima para a vida e para a pastoral matrimonial e familiar. Não significa gradualidade da lei, mas sim gradualidade, isto é, crescimento na compreensão e na realização da lei do Evangelho, que é uma lei da liberdade (Tg 1, 25; 2, 12), que hoje, para tantos fiéis, se tornaram tão difíceis. Precisam de tempo e de acompanhadores pacientes no seu caminho.
O coração novo sempre exige uma nova formação do coração e pressupõe uma cultura do coração. A vida familiar deve ser cultivada segundo as três palavras-chave do Santo Padre: com licença, obrigado, desculpe. É preciso ter tempo uns para os outros e festejar juntos o sabbat, dar sempre prova de piedade, perdão e paciência; são necessários contínuos sinais de benevolência, de apreciação, de afeto, de gratidão e de amor. A oração comum, o sacramento da penitência e a celebração comum da eucaristia são uma ajuda para continuar a solidificar novamente o vínculo do matrimônio que Deus estreitou em torno dos cônjuges. É sempre bonito encontrar casais mais idosos que, mesmo em idade avançada, estão apaixonados de uma maneira que se tornou mais madura. Isso também é sinal de uma humanidade redimida.
A Bíblia termina com a visão do matrimônio escatológico do Cordeiro (Ap 19, 7-9). O matrimônio e a família se tornam, assim, um símbolo escatológico. Com a celebração das núpcias terrenas, antecipam-se as núpcias do Cordeiro, por isso devem ser alegres, esplêndidas e solenes, uma alegria que deve irradiar por toda a vida matrimonial e familiar.
Como antecipação escatológica, o matrimônio terreno é, ao mesmo tempo, relativizado. Jesus mesmo viveu – algo insólito para um rabi – no celibato, pedindo, para segui-lo, para estar disposto a deixar o matrimônio e a família (Mt 10, 37) e, àqueles aos quais é dado, viver no celibato por amor ao reino celeste (Mt 19, 12). Para Paulo, o celibato em um mundo cuja cena passa é o melhor caminho. Doa a liberdade de ser indivisível pela causa do Senhor (1Cor 7, 25-38). Como o celibato livremente escolhido se torna uma situação sociologicamente reconhecida em si mesma, o matrimônio também, por causa dessa alternativa, não é mais uma obrigação social, mas sim uma livre escolha. Sobretudo as mulheres não casadas são agora reconhecidas mesmo sem um marido. Assim, o matrimônio e o celibato se valorizam e se sustentam mutuamente, ou ambos juntos entram em uma crise, como infelizmente estamos experimentando agora.
É essa a crise que estamos vivendo. O Evangelho do matrimônio e da família, para muitos, não é mais compreensível, decaiu em uma crise profunda. Muitos consideram que na sua situação ele não é vivível. O que fazer? As belas palavras, sozinhas, de pouco servem. Jesus nos indica um caminho mais realista. Ele nos diz que todo cristão, casado ou não, abandonado pelo próprio parceiro ou tendo crescido desde criança ou desde jovem sem contatos com a própria família, nunca está sozinho ou perdido. É de casa em uma nova família de irmãos e irmãs (Mt 12, 48-50; 19, 27-29). O Evangelho da família se concretiza na Igreja doméstica; nela, ele pode se tornar novamente vivível. Ela é novamente atual.
A Igreja é, segundo o Novo Testamento, a casa de Deus (1Pd 2, 5; 4, 17; 1Tm 3, 15; Hb 10, 21). A liturgia muitas vezes define a Igreja como Familia Dei. Deve ser casa para todos; nela todos devem poder se sentir em casa e em família. Da casa, no mundo antigo, muitas vezes faziam parte, ao lado do chefe da família, da mulher e dos filhos, também os parentes que viviam em casa, os escravos e muitas vezes também amigos ou hóspedes. É nesse contexto que devemos pensar quando nos é contado, sobre a comunidade dos primórdios, que os primeiros cristãos se reuniam nas casas (At 2, 26; 5, 42). Mais vezes se fala de conversão de casas inteiras (At 11, 14; 16, 15; 31, 33).
Em Paulo, a Igreja era ordenada segundo casas, isto é, Igrejas domésticas (Rm 16, 5; 1Cor 16, 19; Col 4, 15; Fm 2). Constituam para ele um ponto de apoio e de partida nas suas viagens missionárias, eram centro da fundação e pedra para a construção da comunidade local, lugar de oração, de ensino catequético, de fraternidade cristã e de hospitalidade com relação aos cristãos de passagens. Antes da virada constantiniana, provavelmente também eram lugar de encontro para a celebração da ceia do Senhor.
Também em seguida, na história da Igreja, as Igrejas domésticas desempenharam um papel importante: é preciso lembrar, em particular, as comunidades leigas ainda na Idade Média, as comunidades pietistas e as Igrejas livres, das quais, desse ponto de vista, temos algo a aprender. Nas famílias católicas, havia, e ainda há, pequenos altares domésticos (cantos do crucifixo), junto dos quais era possível se reunir à noite ou em momentos particulares (Advento, vigília do Natal, situações de necessidade e de calamidade, e assim por diante) para rezar juntos. Vale pensar também na bênção dos pais aos filhos, nos símbolos religiosos, sobretudo a cruz na habitação, a água santa para lembrar a água batismal e mais ainda. Esses belos costumes da piedade popular merecem ser renovados.
O Concílio Vaticano II, reconectando-se com Crisóstomo, retomou a ideia da Igreja doméstica (LO 11; AA 11). Aquelas que, nos documentos do Concílio, são apenas breves referências, nos documentos pós-conciliares se tornaram capítulos extensos. Sobretudo a carta apostólica Evangelii nuntiandi (1975) prosseguiu o impulso do Concílio no pós-Concílio. Definiu as comunidades eclesiais de base como esperança para a Igreja universal (EN 58, 71). Na América Latina, na África e na Ásia (Filipinas, Índia, Coreia e assim por diante), as Igrejas domésticas, sob a forma de comunidades de base (Basic Christian Communities) ou de pequenas comunidades cristãs (Small Christian Communities), se tornaram uma receita pastoral de sucesso. Em particular, nas situações de minoria, de diáspora e de perseguição, tornaram-se uma questão de sobrevivência para a Igreja.
Enquanto isso, os impulsos provenientes da América Latina, da África e da Ásia começam a dar bons frutos também na civilização ocidental. Aqui, as antigas estruturas da Igreja popular demonstram-se cada vez menos solidárias; as áreas pastorais tornaram-se cada vez maiores, e os cristãos novamente se encontram muitas vezes na situação de minorias cognitivas. A isso se soma que, enquanto isso, a família nuclear, tendo se desenvolvido somente a partir do século XVIII a partir da grande família do passado, acabou em uma crise estrutural. As condições de trabalho e de habitação modernas levaram a uma separação entre habitação, lugar de trabalho e lugares das atividades do tempo livre e levam a uma desagregação da casa como unidade social. Por motivos profissionais, os pais, muitas vezes, devem se afastar da família por períodos prolongados; as mulheres também, por razões de trabalho, muitas vezes estão presentes apenas em parte na família. Por causa das condições da vida atual, hostis à família, a família nuclear moderna se encontra em dificuldade. No anônimo ambiente metropolitano, especialmente nas periferias muitas vezes desoladas das modernas megalópoles, as pessoas que não vivem nas ruas também se tornaram sem pátria e sem teto em um sentido mais profundo. Devemos construir para elas novas casas no sentido literal e no sentido figurado.
As Igrejas domésticas podem ser uma resposta. Naturalmente, não podemos simplesmente replicar as Igrejas domésticas da Igreja dos primórdios. Precisamos de grandes família de um novo tipo. Para que as famílias nucleares possam sobreviver, elas devem estar inseridas em uma coesão familiar que atravessa as gerações, na qual sobretudo as avós e os avôs desempenham um papel importante, em círculos interfamiliares de vizinhos e amigos em que as crianças possam ter um refúgio na ausência dos pais, e em que os idosos sozinhos, os divorciados e os pais sozinhos possam encontrar uma espécie de casa. As comunidades espirituais constituem muitas vezes o âmbito e o clima espiritual para as comunidades familiares. Também são referências de Igreja doméstica os grupos de oração, os grupos bíblicos, catequéticos, ecumênicos.
Como definir essas Igrejas domésticas? São uma ecclesiola in ecclesia, uma Igreja pequena dentro da Igreja. Tornam a Igreja local presente na vida concreta das pessoas. De fato, onde dois ou três se reúnem no nome de Cristo, ele está no meio deles (Mt 18, 20). Em virtude do batismo e da confirmação, as comunidades domésticas são povo messiânico de Deus (LG 9). Participam da missão sacerdotal, profética e real (1Pd 2, 8; Ap 1, 6; 5, 10; LG 10-12; 20-38). Por meio do Espírito Santo, possuem o sensus fidei, o sentido da fé, um sentido intuitivo da fé e da prática de vida conforme ao Evangelho. Não são somente objeto, mas também sujeito da pastoral familiar. Sobretudo através do seu exemplo, podem ajudar a Igreja a penetrar mais em profundidade na palavra de Deus e a aplicá-la de maneira mais plena na vida (LG 12; 35; EG 154 s.). Como o Espírito Santo é dado à Igreja no seu conjunto, elas não devem se isolar de modo sectário da communio mais ampla da Igreja. Esse "princípio católico" preserva a Igreja da desagregação em Igrejas livres, autônomas e individuais. Através de tal unidade na multiplicidade, a Igreja é igualmente sinal sacramental de unidade no mundo (LG 1; 9).
As Igrejas domésticas se dedicam à partilha da Bíblia. Da Palavra de Deus, obtêm luz e força para a sua vida cotidiana (DV 25; EG 152 s.). Diante da ruptura da transmissão geracional da fé (EG 70), têm a importante tarefa catequética de guiar rumo à alegria da fé. Rezam juntas pelas próprias intenções e pelos problemas do mundo. A eucaristia dominical deve ser celebrada por elas junto com a comunidade inteira como fonte e cume de toda a vida cristã (LO 11). No âmbito familiar, celebram o dia do Senhor como dia do repouso, da alegria e da comunhão, assim como também os tempos do ano litúrgico, com os seus ricos costumes (SC 102-111). São lugares de uma espiritualidade da comunhão na qual nos aceitamos reciprocamente em espírito de amor, de perdão e de reconciliação, e em que se compartilham alegrias e dores, preocupações e tristezas, contentamento e felicidade na vida cotidiana, no domingo e nos dias de festa. Através de tudo isso, edificam o corpo da Igreja (LG 41).
A Igreja é, por sua natureza, missionária (AG 2); a evangelização é a sua identidade mais profunda (EN 14; 59). As famílias, como Igrejas domésticas, são chamadas de modo particular a transmitir a fé no seu respectivo ambiente. Elas têm uma tarefa profética e missionária. O seu testemunho é sobretudo o testemunho de vida, através do qual podem ser fermento no mundo (Mt 13, 33; AA 2-8; EN 21; 41; 71; 76; EG 119-121). Assim como Jesus veio para anunciar o Evangelho aos pobres (Lc 4, 18; Mt 11, 5) e chamou de bem-aventurados os aflitos, os pequenos e as crianças (Mt 5, 3 s.; 11, 25; Lc 6, 20 s.), Jesus também mandou os seus discípulos a anunciar o Evangelho aos pobres (Lc 7, 22). Por isso, as Igrejas domésticas não podem ser comunidades elitistas exclusivas. Devem se abrir aos sofredores de todos os tipos, às pessoas simples e aos pequenos. Devem saber que o Reino de Deus pertence às crianças (Mc 10, 14; EG 197-201).
As famílias precisam da Igreja, e a Igreja precisa das famílias para estar presente no centro da vida e nos modernos âmbitos de vida. Sem as Igrejas domésticas, a Igreja é alheia à realidade concreta da vida. Só através das famílias, ela pode ser de casa onde as pessoas são de casa. A sua compreensão como Igreja doméstica, portanto, é fundamental para o futuro da Igreja e para a nova evangelização. As famílias são as primeiras e melhores mensageiras do Evangelho da família. São o caminho da Igreja.
Se pensarmos na importância das famílias para o futuro da Igreja, o número em rápido crescimento das famílias desagregadas parece ser uma tragédia ainda maior. Há muito sofrimento. Não basta considerar o problema só do ponto de vista e da perspectiva da Igreja como instituição sacramental; precisamos de uma mudança de paradigma e devemos – como fez o bom samaritano (Lc 10, 29-37) – considerar a situação também a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda.
Todos sabem que a questões dos matrimônios de pessoas divorciadas em segunda união é um problema complexo e espinhoso. Não se pode reduzi-lo à questão da admissão à comunhão. Diz respeito a toda a pastoral matrimonial e familiar. Inicia já desde a preparação ao matrimônio que deve ser uma atenta catequese matrimonial e familiar. Continua depois com o acompanhamento pastoral dos esposos e das famílias; torna-se atual quando o matrimônio e a família entram em crise. Em tal situação, os curadores de almas farão todo o possível para contribuir com a cura e a reconciliação no matrimônio em crise. O seu cuidado não acaba depois de um fracasso de um matrimônio; devem permanecer próximos dos divorciados e convidá-los a participar da vida da Igreja.
Todos sabem também que existem situações em que toda tentativa razoável de salvar o matrimônio resulta vã. O heroísmo dos cônjuges abandonados que permanecem sozinhos e seguem em frente sozinhos merece a nossa admiração e sustento. Mas muitos cônjuges abandonados dependem, para o bem dos filhos, de uma nova relação e de um matrimônio civil, ao qual não podem renunciar sem novas culpas. Muitas vezes, depois de experiências amargas do passado, essas relações fazem com que eles provem uma nova alegria; até mesmo às vezes são percebidas como dom do céu.
O que a Igreja pode fazer em tais situações? Não pode propor uma solução diferente ou contrária às palavras de Jesus. A indissolubilidade de um matrimônio sacramental e a impossibilidade de novo matrimônio durante a vida do outro parceiro faz parte da tradição de fé vinculante da Igreja, que não pode ser abandonada ou dissolvida, remetendo-se a uma compreensão superficial da misericórdia a baixo preço. A misericórdia de Deus, em última análise, é a fidelidade de Deus a si mesmo e à sua caridade. Como Deus é fiel, também é misericordioso e, na sua misericordiosa, também é fiel, embora nós sejamos infiéis (2Tm 2, 13). Misericórdia e fidelidade vão juntas. Por causa da fidelidade misericordiosa de Deus, não existe situação humana que seja absolutamente privada de esperança e de solução. Por mais baixo que o homem possa cair, ele nunca poderá cair abaixo da misericórdia de Deus.
A pergunta, portanto, é como a Igreja pode corresponder a esse binômio inseparável de fidelidade e misericórdia de Deus na sua ação pastoral com relação aos divorciados em segunda união com rito civil. É um problema relativamente recente, que não existia no passado, que existe apenas desde a introdução do casamento civil mediante o Código Civil de Napoleão (1804) e a sua introdução posterior nos diversos países. Ao responder a tal situação nova, nas últimas décadas, a Igreja deu passos importantes. O Código de Direito Canônico (CIC) de 1917 (cân. 2.356) trata os divorciados em segunda união com rito civil ainda como bígamos que são, ipso facto, infames e, de acordo com a gravidade da culpa, podem ser atingidos pela excomunhão ou pela interdição pessoal. O CIC de 1984 (cân. 1.093) não prevê mais essas punições graves; permaneceram apenas restrições menos graves. A Familiaris consortio (24) e a Sacramentum caritatis (29), enquanto isso, falam de modo até amoroso sobre esses cristãos. Asseguram-lhes que não são excomungados e fazem parte da Igreja e os convidam a participar da sua vida. Eis um tom novo.
Hoje, encontramo-nos em uma situação semelhante à do último Concílio. Também à época existiam, por exemplo, sobre a questão do ecumenismo e da liberdade religiosa, encíclicas e decisões do Santo Ofício que pareciam impedir outras vias. O Concílio, sem violar a tradição dogmática vinculante, abriu portas. Podemos nos perguntar: não seria possível, talvez, mais um desenvolvimento também na presente questão, que não promova a abolição da tradição vinculante de fé, mas leve adiante e aprofunde tradições mais recentes?
A resposta só pode ser diferenciada. As situações são muito diferentes e devem ser distinguidas com cuidado. Uma solução geral para todos os casos, portanto, não pode existir. Limito-me a duas situações, para os quais, em alguns documentos oficiais, já são indicadas soluções. Desejo apenas fazer perguntas, limitando-me a indicar a direção das respostas possíveis. Porém, dar uma resposta será tarefa do Sínodo em sintonia com o papa.
Primeira situação. A Familiaris consortio afirma que alguns divorciados em segunda união estão convencidos, em consciência, subjetivamente, que o seu matrimônio anterior irremediavelmente despedaçado nunca foi válido (FC 84). De fato, muitos curadores de almas estão convencidos de que muitos matrimônios celebrados de forma religiosa não foram contraídos de maneira válida. De fato, como sacramento da fé, o matrimônio pressupõe a fé e a aceitação das características peculiares do matrimônio, ou seja, a unidade e a indissolubilidade. Na situação atual, porém, podemos pressupor que os esposos compartilham a fé no mistério definido pelo sacramento e que compreendem e aceitam realmente as condições canônicas para a validade do seu matrimônio? A praesumptio iuris, da qual parte o direito eclesiástico, não é talvez, muitas vezes, uma fictio iuris?
Como o matrimônio, como sacramento, tem caráter público, a decisão sobre a sua validade não pode ser deixada inteiramente à avaliação subjetiva da pessoa envolvida. Segundo o Direito Canônico, a avaliação é tarefa dos tribunais eclesiásticos.
Como eles não são iure divino, mas se desenvolveram historicamente, perguntamo-nos, às vezes, se a via judiciária deve ser a única via para resolver o problema ou se não seriam possíveis outros procedimentos mais pastorais e espirituais. Como alternativa, se poderia pensar que o bispo possa confiar essa tarefa a um sacerdote com experiência espiritual e pastoral como penitenciário ou vigário episcopal.
Independentemente da resposta a ser dada a tal pergunta, vale lembrar o discurso do Papa Francisco dirigido no dia 24 de janeiro de 2014 aos oficiais do Tribunal da Rota Romana, no qual afirma que dimensão jurídica e dimensão pastoral não estão em contraposição. Ao contrário, a atividade judiciária eclesial tem uma conotação profundamente pastoral. É preciso, portanto, se perguntar: o que significa dimensão pastoral? Certamente, não uma atitude complacente, o que seria uma concepção totalmente equivocada seja para a pastoral, seja para a misericórdia. A misericórdia não exclui a justiça e não deve ser entendida como graça barata e como uma promoção [svendita]. A pastoral e a misericórdia não se contrapõem à justiça, mas, por assim dizer, são a justiça suprema, porque por trás de cada causa elas avistam não só um caso a examinar na ótica de uma regra geral, mas sim uma pessoa humana que, como tal, nunca pode representar um caso e sempre tem uma dignidade única. Isso exige uma hermenêutica jurídica e pastoral que, de um modo mais do que justo e com prudência e sabedoria, aplique a uma situação concreta e muitas vezes complexa uma lei geral, ou, como disse o Papa Francisco, uma hermenêutica animada pelo amor do Bom Pastor, que vê por trás de cada prática, de cada posição, de cada causa, pessoas que esperam justiça. Realmente é possível que se decida pelo bem e pelo mal das pessoas em segunda e terceira instância somente com base em atos, isto é, em papéis, mas sem conhecer a pessoa e a sua situação?
Segunda situação. Seria errado buscar a solução do problema só em uma generosa ampliação do procedimento de nulidade do matrimônio. Criar-se-ia, assim, a perigosa impressão de que a Igreja procede de modo desonesto para conceder aqueles que, na realidade, são divórcios. Muitos divorciados não querem tal declaração de nulidade. Dizem: vivemos juntos, tivemos filhos; essa era uma realidade que não se pode declarar como nula, muitas vezes apenas por razão de falta de forma canônica do primeiro matrimônio. Portanto, devemos levar em consideração também a questão mais difícil da situação do matrimônio ratificado e consumado entre batizados, em que a comunhão de vida matrimonial se despedaçou irremediavelmente e um ou ambos os cônjuges contraíram um segundo casamento civil.
Uma advertência nos foi dada pela Congregação para a Doutrina da Fé ainda em 1994, quando estabeleceu – e o Papa Bento XVI o reiterou durante o encontro internacional das famílias em Milão, em 2012 – que os divorciados em segunda união não podem receber a comunhão sacramental, mas podem receber a espiritual. Certamente, isso não vale para todos os divorciados, mas para aqueles que estão espiritualmente bem dispostos. Contudo, muitos ficarão agradecidos por essa resposta, que é uma verdadeira abertura.
Porém, ela levanta diversas perguntas. De fato, quem recebe a comunhão espiritual é uma coisa só com Jesus Cristo; como pode, portanto, estar em contradição com o mandamento de Cristo? Por que, portanto, não pode receber também a comunhão sacramental? Se excluímos dos sacramentos os cristãos divorciados em segunda união que estão dispostos a se aproximar deles e os encaminhamos à vida de salvação extrassacramental, talvez não colocamos em discussão a estrutura fundamental sacramental da Igreja? Então, de que servem a Igreja e os sacramentos? Não pagamos um preço alto demais com essa resposta? Alguns defendem que justamente a não participação na comunhão é um sinal da sacralidade do sacramento. A pergunta que se coloca em resposta é: não seria talvez uma instrumentalização da pessoa que sofre e pede ajuda se fazemos dela um sinal e uma advertência para os outros? Deixamo-la sacramentalmente morrer de fome para que outros vivam?
A Igreja dos primórdios nos dá uma indicação que pode servir como via de saída do dilema, a qual o professor Joseph Ratzinger já acenara em 1972. A Igreja experimentou muito cedo que, entre os cristãos, existe até a apostasia. Durante as perseguições, houve cristãos que, tendo se tornado fracos, negaram o próprio batismo. Por esses lapsi, a Igreja desenvolvera a prática penitencial canônica como segundo batismo, não com a água, mas com as lágrimas da penitência. Depois do naufrágio do pecado, o náufrago não devia ter à disposição um segundo navio, mas sim uma tábua de salvação.
De modo análogo, entre os cristãos também existiam a dureza de coração (Mt 19, 8) e casos de adultério com consequentes segundos laços quase-matrimoniais. A resposta dos Padres da Igreja não era unívoca. A coisa certa, porém, é que, nas Igreja locais individuais, existia o direito consuetudinário com base no qual os cristãos que, mesmo ainda estando vivo o primeiro parceiro, viviam um segundo laço, depois de um tempo de penitência, tinham à disposição não um segundo navio, não um segundo matrimônio, mas sim, através da participação na comunhão, uma tábua de salvação. Orígenes fala desse costume definindo-o como "não irrazoável". Basílio, o Grande, e Gregório Nazianzeno – dois padres da Igreja ainda indivisa! – também fazem referência a tal prática. O próprio Agostinho, caso contrário bastante severo sobre a questão, ao menos em um ponto, parece não ter excluído toda solução pastoral. Esses Padres queriam, por razões pastorais, a fim de "evitar o pior", tolerar o que, por si só, é impossível aceitar. Portanto, existia uma pastoral da tolerância, da clemência e da indulgência, e há bons motivos para que essa prática contra o rigorismo dos novacianistas tenha sido confirmada pelo Concílio de Niceia (325).
Como ocorre muitas vezes, nos detalhes históricos de questões semelhantes, há controvérsias entre os especialistas. Nas suas decisões, a Igreja não pode se fixar em uma ou outra posição. Todavia, de princípio, é claro que a Igreja continuou buscando sempre uma via para além do rigorismo e do laxismo, fazendo referência nisso à autoridade de ligar e desligar (Mt 16, 19; 18, 18; Jo 20, 23) conferida pelo Senhor. No Credo, professamos: credo in remissionem peccatorum. Isso significa: para quem se converteu, o perdão sempre é possível. Se é para o assassino, também é para o adúltero. Portanto, a penitência e o sacramento da penitência eram o caminho para ligar esses dois aspectos: a obrigação para com a Palavra do Senhor e a misericórdia infinita de Deus. Nesse sentido, a misericórdia de Deus não era e não é uma graça barata que dispensa da conversão. Inversamente, os sacramentos não são um prêmio para quem se comporta bem e para uma elite, excluindo aqueles que mais precisam deles (EG 47). A misericórdia corresponde à fidelidade de Deus no seu amor aos pecadores, que somos todos nós, e do qual todos nós também precisamos.
A pergunta é: essa via para além do rigorismo e do laxismo, a via da conversão, que desemboca no sacramento da misericórdia, o sacramento da penitência, é também o caminho que podemos percorrer na presente questão? Um divorciado em segunda união: 1) se se arrepende do seu fracasso no primeiro matrimônio; 2) se esclareceu as obrigações do primeiro matrimônio, se definitivamente excluiu que volte atrás; 3) se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com o novo matrimônio civil; 4) se, porém, se esforça para viver no melhor das suas possibilidades o segundo matrimônio a partir da fé e para educar os próprios filhos na fé; 5) se tem o desejo dos sacramentos como fonte de força na sua situação, devemos ou podemos negar-lhe, depois de um tempo de nova orientação (metanoia), o sacramento da penitência e depois da comunhão?
Essa possível via não seria uma solução geral. Não é a estrada larga da grande massa, mas sim o estreito caminho da parte provavelmente menor dos divorciados em segunda união, sinceramente interessada nos sacramentos. Talvez, não é preciso evitar o pior justamente aqui? De fato, quando os filhos dos divorciados em segunda união não veem os pais se aproximarem dos sacramentos, frequentemente, eles também não encontram a via rumo à confissão e à comunhão. Não levamos em conta que perderemos também a próxima geração e talvez também a seguinte? A nossa práxis comprovada não se demonstra contraproducente?
Um casamento civil como descrito com critérios claros deve ser diferenciado de outras formas de convivência "irregular" como os casamentos clandestinos, os casais de fato, sobretudo a fornicação e os chamados casamentos selvagens. A vida não é só branco e preto; de fato, há muitas nuances.
Da parte da Igreja, essa via pressupõe discretio, discernimento espiritual, sabedoria e sapiência pastoral. Para o pai do monaquismo, Bento, a discretio era mãe de todas as virtudes e virtude fundamental do abade. O mesmo vale para o bispo. Como o rei Salomão, ele precisa de "um coração dócil para que eu saiba (…) discernir entre o bem e o mal" (1Reis 3, 9). Essa discretio não é um fácil compromisso entre os extremos entre rigorismo e laxismo, mas sim, como toda virtude, uma perfeição para além desses extremos, o caminho da saudável via do meio justificada e da justa medida. Nesse sentido, podemos aprender com muitos e santos confessores, que sabiam bem fazer esse discernimento espiritual (por exemplo, Santo Afonso de Ligório).
Desejo que, na via de tal discretio, ao longo do processo sinodal, consigamos encontrar uma resposta comum para testemunhar de modo crível a Palavra de Deus nas situações humanas difíceis, como mensagem de fidelidade, mas também como mensagem de misericórdia, de vida e de alegria.
Com isso, retorno ao tema "O Evangelho da família". Não podemos limitar o debate à situação dos divorciados em segunda união e a muitas outras situações pastorais difíceis que não foram mencionadas no presente contexto. Devemos tomar um ponto de partida positivo e redescobrir e anunciar o Evangelho da família em toda a sua beleza. A verdade convence mediante a sua beleza. Devemos contribuir, com as palavras e os fatos, para fazer com que as pessoas encontrem a felicidade na família e, de tal modo, possam dar às outras famílias testemunho dessa sua alegria. Devemos entender novamente a família como Igreja doméstica, torná-la a via privilegiada da nova evangelização e da renovação da Igreja, uma Igreja que está a caminho junto às pessoas e com as pessoas.
Em família, as pessoas estão em casa, ou ao menos buscam uma casa na família. Nas famílias, a Igreja encontra a realidade da vida. Por isso, as famílias são banco de teste da pastoral e urgência da nova evangelização. A família é o futuro. Também para a Igreja ela constitui a via do futuro.
A pedagogia de Deus é um tema constante dos Padres da Igreja (Clemente de Alexandria, Irineu de Lyon e assim por diante). A tradição escolástica desenvolveu a doutrina da fides implicita. Ela toma impulso de Hb 11, 1.6: "A fé é fundamento das coisas que se esperam", "de fato, quem se aproxima de Deus deve acreditar que ele existe e que ele recompensa aqueles que o procuram".
Para Tomás de Aquino, o verdadeiro conteúdo da fé é a fé em Deus. Segundo ele, a fé em Deus, como meta e felicidade última do homem, e na providência histórica de Deus, contém implicitamente as verdades de fé que dizem respeito aos instrumentos de redenção, portanto, também a encarnação e a paixão de Cristo (S. th. II/II q.1 a.7). Mesmo que em outras passagens Tomás seja bastante discordante ao elencar as verdades de fé necessárias à salvação (p.e. q. I a. 6 ad I), é possível considerar essa sua afirmação como central sobre o tema da fé implícita (cfr. o apêndice da Deutsche Thomasausgabe, vol. 15, Munique-Salzburgo 1950, 431-437).
Assim, a tese segundo a qual, para que o matrimônio seja válido, é suficiente a intenção de contraí-lo, como fazem os cristãos, fica atrás com relação a esse requisito mínimo. De fato, tal intenção implica, para quem é cristão só por cultura, a mera intenção de contrair matrimônio segundo o rito da Igreja, coisa que muitos não fazem por fé, mas pela solenidade e pelo esplendor maiores do matrimônio religioso com relação ao civil.
Para a eficácia do sacramento, é imprescindível acreditar no Deus vivo, como meta e felicidade do homem e na Sua providência, que quer nos guiar no nosso caminho de vida rumo à meta e à felicidade. A partir dessa convicção de fé inicial, mas fundamental, como requisito mínimo para a recepção eficaz do sacramento, a catequese para a preparação ao matrimônio religioso deve ensinar como Deus nos indicou concretamente essa meta e o caminho rumo a ela e rumo à felicidade em Jesus Cristo, como o seu amor e a sua fidelidade se tornam ativamente presentes através da Igreja no sacramento do matrimônio, para acompanhar os esposos e os cônjuges, com os filhos que Deus lhes quiser dar, no seu futuro caminho de vida comum, e conduzi-los à felicidade, à vida em e com Deus e, enfim, à vida eterna. Desse modo, o mistério de Cristo e da Igreja, que se concretiza no matrimônio, será descerrado passo a passo.
Segundo o Novo Testamento, o adultério e a fornicação são comportamentos em fundamental contraste com o ser cristão. Assim, na Igreja antiga, ao lado da apostasia e do homicídio, entre os pecados capitais, que excluíam da Igreja, havia também o adultério. Como, segundo o pensamento vetero-testamentário judaico, a fornicação de um cônjuge "contaminava" o outro cônjuge e toda a comunidade (Lv 18, 25, 28; 19, 29; Dt 24, 4; Os 4, 2 s.; Jr 3, 1-3, 9), com base nas cláusulas sobre o adultério de Mateus, que escrevia para os judaico-cristãos (Mt 5, 32 e 19, 9), ao homem era permitido, e às vezes até necessário, repudiar a mulher adúltera. A esse propósito, no entanto, desde o início, os Padres atribuíram grande importância ao fato de que, seja para o homem, seja para a mulher, valiam os mesmos direitos e os mesmos deveres.
Porém, não é possível obter dos textos completa clareza sobre a prática da Igreja antiga do repúdio por adultério. Esses textos, de fato, nem sempre distinguem entre adultério e fornicação, bigamia simultânea e consecutiva depois da morte do primeiro cônjuge (esta última, em parte, também era debatida), separação por morte ou por repúdio. Sobre as questões exegéticas e históricas relativas, existem uma literatura ampla – entre a qual é quase impossível se orientar – e interpretações diferentes. Pode-se citar, por exemplo, de um lado, O. Cereti, Divorzio, nuove nozze e penitenza nella Chiesa primitiva (Bolonha, 1977/2013,) e, de outro, H. Couzel, L’Eglise primitive face au divorce (Paris, 1971) e J. Ratzinger, Zur Frage der Unaufloslichkeit der Ehe. Bemerkungen zum dogmengeschichtilchen Befund und seiner gegenwärtigen Bedeutung, in F. Heinrich/V. Eid, Ehe und Ehescheidung (Munique, 1972, 35-56, simile no L'Osservatore Romano de novembro de 2011).
Não pode haver debate algum sobre o fato de que na Igreja dos primórdios, em muitas Igrejas locais, por direito consuetudinário, havia, depois de um tempo de arrependimento, a prática da tolerância pastoral, da clemência e da indulgência. No pano de fundo de tal prática, talvez devesse ser entendido também o cânone 8 do Concílio de Niceia (325), voltado contra o rigorismo de Novaciano. Esse direito consuetudinário é expressamente testemunhado por Orígenes, que o considera não irrazoável (Comentário ao Evangelho de Mateus XIV, 23). Basílio, o Grande (Carta 188, 4 e 199, 18), Gregório Nazianzeno (Oratio 37) e alguns outros também fazem referência a ele. Explicam o "não irrazoável" com a intenção pastoral de "evitar o pior". Na Igreja latina, por meio da autoridade de Agostinho, essa prática foi abandonada em favor de uma prática mais severa. Agostinho também, porém, em uma passagem, fala de pecado venial (A fé e as obras 19, 35). Portanto, ele não parece ter excluído de partida toda solução pastoral. Em seguida, a Igreja do Ocidente, nas situações difíceis, para as decisões dos Sínodos e similares também sempre buscou, e também encontrou, soluções concretas. O Concílio de Trento, segundo P. Fransen, Das Thema “Eheseheidung und Ehebruch”auf dem Konzil von Trient (1563), in: Concilium 6 (1970) 343-348, condenou a posição de Lutero, mas não a prática da Igreja do Oriente. H. Jedin substancialmente concordou com isso.
As Igrejas ortodoxas conservaram, conforme ao ponto de vista pastoral da tradição da Igreja dos primórdios, o princípio para eles válido da oikonomia. A partir do século VI, porém, fazendo referência ao direito imperial bizantino, elas foram além da posição da tolerância pastoral, da clemência e da indulgência, reconhecendo, junto com as cláusulas do adultério, também outros motivos de divórcio, que partem da morte moral e não só física do vínculo matrimonial. A Igreja do Ocidente seguiu outro percurso. Ela exclui o dissolução do matrimônio sacramental entre batizados ratificado e consumado (CIC, cân. 1.141), mas conhece o divórcio pelo matrimônio não consumado (CIC, cân. 1.142), assim como, pelo privilégio paulino e petrino, para os matrimônios não sacramentais (CIC, cân. 1.143). Ao lado disso, há as declarações de nulidade por vício de forma; a esse propósito poderíamos nos perguntar se não são postos em primeiro lugar, de modo unilateral, pontos de vista jurídicos historicamente muito tardios.
J. Ratzinger sugeriu que se retomasse de modo novo a posição de Basílio. Pareceria ser uma solução apropriada, que também está na base destas minhas reflexões. Não podemos fazer referência a uma ou outra interpretação histórica, que continua sempre controversa, e nem mesmo replicar simplesmente as soluções da Igreja dos primórdios na nossa situação, que é completamente diversa. Na mudada situação atual, porém, podemos retomar os conceitos de base e buscar realizá-los no presente, na forma que é justa e oportuna à luz do Evangelho.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Bíblia, eros e família. O discurso do cardeal Walter Kasper no consistório - Instituto Humanitas Unisinos - IHU