25 Fevereiro 2014
Passei tanto tempo nas últimas semanas conversando com repórteres sobre o legado do Papa Bento XVI que nem tive a chance de colocar meus pensamentos por escrito.
A reportagem é de Thomas Reese, publicada pelo National Catholic Reporter, 21-02-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Sempre que um repórter me pergunta sobre o papa emérito, eu primeiro reconheço que tenho um caso com ele. Uma das últimas ações do cardeal Joseph Ratzinger como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé foi falar ao Superior Geral dos jesuítas que eu precisava ser substituído como editor da revista America, de forma que não posso afirmar ser um analista indiferente. Talvez esta seja outra razão por que eu não cheguei até o final de meu período como editor. Este foi um tempo difícil em minha vida. Desse modo, advirto aos repórteres (e leitores) que esta experiência pode influenciar minhas opiniões.
A tentação com qualquer papa – mesmo com o Papa Francisco – é de vê-lo como preto ou branco, totalmente ruim ou totalmente bom. Na verdade, nada é tão simples assim, especialmente em se tratando de um ser humano.
Há muito o que elogiar no papado de Bento XVI. Se não for por outro motivo, ele será lembrado por séculos como o papa que não temeu renunciar quando sentiu que isso seria o melhor a fazer para a Igreja. Tal humildade, coragem e confiança no Espírito não são virtudes fáceis de se ter quando todos ao nosso redor dizem que somos indispensáveis.
A renúncia fez com que ex-apoiadores se voltassem contra ele assim como fez com que seus críticos o elogiassem. No jornal The Boston Globe, John L. Allen Jr. relata que Antonio Socci, conservador italiano de destaque, lançou a questão de sobre se a renúncia de Bento foi, de fato, válida sob a lei canônica. Este tipo de conversa é muito perigosa e poderia levar a um cisma. No entanto, este tipo de pensamento não encontrará apoio por parte de Bento XVI. Da mesma forma, aqueles que temiam dizendo que Bento iria tentar dirigir as coisas por trás das cortinas provaram não ter razão.
Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger foi a primeira autoridade vaticana a levar a sério a crise advinda dos abusos sexuais. Não foi perfeito, mas escutou os bispos norte-americanos e aprendeu, mais rapidamente do que qualquer outro em Roma – inclusive o Papa João Paulo II. Ele apoiou uma política de tolerância zero contra casos de abuso e expulsou centenas de padres do sacerdócio por abusarem de menores.
O Papa Bento XVI também iniciou a reforma das finanças vaticanas, que só agora está agora começando a dar frutos. Foi Bento quem finalmente disse: “Chega!”, exigindo que o Vaticano observasse os padrões postos por Moneyval, a agência europeia que lida com a questão da lavagem de dinheiro. Até o Papa Bento XVI, o Vaticano sempre sustentou sua particularidade, e que não poderia ser julgado por pessoas ou instituições de fora. Hoje, as finanças vaticanas são revistas periodicamente pela agência Moneyval, que publica seus relatórios para que todos possam ver. Todas as reformas financeiras subsequentes fluíram a partir desta decisão do Papa Bento.
Bento deve ser também elogiado pela clareza de sua escrita. Sua primeira encíclica, “Deus Caritas Est” [Deus é Amor], foi universalmente louvada por sua explicação dos diferentes tipos de amor. A segunda parte foi um excelente guia para o ministério da caridade na Igreja. Nela, o pontífice descreveu o ministério da caridade como tão importante quanto o ministério da Palavra e dos sacramentos. Enfatizou a importância tanto da formação profissional quanto espiritual para aqueles que trabalham junto dos empobrecidos.
Infelizmente, a mídia estava tão focada no que ele tinha a dizer sobre a questão do aborto, dos gays e da camisinha que aquilo que ele tinha a dizer sobre outros assuntos foi ignorado. As pessoas esquecem que ele, assim como João Paulo, se opôs às Guerras do Golfo, o que se mostrou mais certo do que pensavam todos os sabichões da política em Washington.
E enquanto o Papa Francisco está recebendo toda a atenção por suas opiniões sobre o capitalismo, Bento XVI defendeu fortemente o papel do Estado na regulação da economia em “Caritas in Veritate” [Caridade na Verdade]. Ele não era nenhum fã do capitalismo libertário. Foi mais longe ao dizer que o governo tem um papel na redistribuição da riqueza. Nem mesmo os democratas liberais dizem coisas assim. Sobre questões de economia, Bento estava à esquerda do presidente Barack Obama; até mesmo de Nanci Pelosi ele se encontrava à esquerda.
Na verdade, as opiniões de Bento XVI sobre a relação entre religião e política eram bastante sofisticadas, tal como foram articuladas em Westminster (Londres) e no Parlamento Alemão (em Berlim). Ela não era um ideólogo monotemático, e reconhecia o papel da prudência na tomada de decisão política.
As forças e fraquezas de Bento XVI vieram de sua experiência como professor universitário alemão, que constituía sua vida antes do Papa Paulo VI tê-lo nomeado arcebispo de Munique em 1977. Sua vida era dedicada ao trabalho intelectual, onde a clareza de pensamento era louvada.
Como professor alemão, estava acostumado a dar palestras a alunos que anotavam suas palavras, memorizavam-nas e as devolviam nos exames, nas provas. Como professor, usava linguagem técnica que poderia significar uma coisa na sala de aula, mas também outra completamente diferente fora delas. Assim, ele poderia dizer que a maioria das igrejas protestantes não eram verdadeiras igrejas porque ele havia definido “igreja” como uma comunidade cristã com um episcopado legítimo. Ele poderia também usar uma palavra como “desordenada”, que para ele possuía um sentido filosófico, enquanto que fora das salas de aula poderia ser interpretada como um termo psicológico.
Nas universidades alemãs, os estudantes não desafiam ou questionam seus professores, razão pela qual as revoltas estudantis de 1968 em Tübingen foram tão marcantes para ele. A sua opinião sobre o papel do magistério, a autoridade doutrinal da Igreja, era um reflexo de sua experiência como professor alemão. A palavra “magistério” vem de “magister”, que quer dizer “professor, aquele que ensina”.
Como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Bento XVI viu seu papel sendo parecido com o de um professor alemão. Aqueles que questionavam ou não davam as respostas certas eram reprovados e desligados da faculdade. Ele fez com que teólogos que levantaram dúvidas ou que tinham opiniões contrárias fossem removidos das faculdades, dos seminários. Os padres com tais posicionamentos jamais viriam a ser bispos. Nisso, ele e João Paulo estavam em sintonia.
A infelicidade de Ratzinger foi que ele se relacionava com os demais teólogos não como colegas e pares, mas como alunos de pós-graduação que precisavam de correção ou como professores universitários novatos aos quais devia ser negado qualquer promoção. Ele era o presidente do departamento, e seu ponto de vista prevalecia.
A resultado foi devastador para a vida intelectual da Igreja. Mentes criativas foram removidas das faculdades, dos seminários; teólogos sacerdotes foram silenciados ou fizeram autocensura. O livre debate do Concílio Vaticano II foi substituído por suspeita e acusações de heresia. A cooperação entre os teólogos e bispos, que foi um marco do Vaticano II, deu lugar à suspeita e ao antagonismo.
As tentativas de Bento de controlar os teólogos falharam. Criaram-se uma amargura e um abismo entre a academia e a hierarquia, o que será corrigido sob o atual papado. É o que espero. Elas também falharam porque a teologia se tornou uma vocação laica, e teólogos leigos não estão sujeitos à obediência como os padres e religiosos. É impossível silenciar teólogos leigos. Atacá-los apenas irá ajudar a vender seus livros.
Por que alguém deveria se preocupar com as brigas entre acadêmicos e a hierarquia? Se a Igreja deve responder, de forma inteligente, aos desafios do século XXI, então os bispos e teólogos precisam trabalhar juntos como fizeram no Vaticano II. Ambos os lados devem desejar escutar e aprender.
Explicar a mensagem cristã às pessoas do século XXI exigirá o mesmo tipo de criatividade mostrada por Agostinho e Tomás de Aquino. Não podemos simplesmente citá-los; precisamos imitá-los. Santo Agostinho pegou o melhor pensamento de sua época – o neoplatonismo – e o usou para explicar o cristianismo aos seus contemporâneos. São Tomás de Aquino pegou o redescoberto Aristóteles para explicar o cristianismo à sua geração. Os teólogos e teólogas devem ser livres para fazer o mesmo hoje. Lembremos, Aquino teve seus livros queimados pelo arcebispo de Paris.
Em sua primeira homilia de Páscoa como papa, Bento XVI disse que o Cristo ressuscitado é o próximo passo na evolução humana. Eu gostaria que ele tivesse desenvolvido este pensamento, mas esta é uma forma de pensar que seria atraente às pessoas de hoje.
Chamar simplesmente o Papa Bento XVI de conservador é uma forma de evitar a análise cuidadosa de um personagem complexo. Ele deu e continua dando muito à Igreja. Deveria ser respeitado e honrado por isso, embora cientes das suas limitações.
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O legado do Papa Bento XVI feito de tons de cinza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU