18 Dezembro 2013
Durante um mês, o sociólogo Paulo Magalhães, de 61 anos, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), conviveu com 35 moradores de rua, segundo noticiou a coluna de Ancelmo Gois. Concluiu que vivem em grupos e que a melhor solução é manter essas relações afetivas.
A entrevista é de Catharina Wrede e publicada pelo jornal O Globo, 18-12-2013.
Eis a entrevista.
Como surgiu a ideia do projeto? Você desde o início pensava em morar um mês com os moradores de rua?
Foi uma demanda do Adilson Pires (vice-prefeito), que contratou o Iets pra fazer três coisas: uma contagem da população de rua; em seguida, uma pesquisa qualitativa que tenta aprofundar algumas questões; e uma pesquisa quantitativa, um perfil geral. Eu fiquei responsável pela parte qualitativa.
Qual foi a estratégia de pesquisa in loco?
Durante um mês, passeei por locais, convivi com os moradores de rua, me misturei, sentava nas rodas deles. Me concentrei nas regiões do Centro, Largo do Machado e Leme. Eu estava insatisfeito com o que a literatura sobre o assunto colocava, sempre focando no drama pessoal de cada um, querendo saber como eles foram parar ali. Eles são profundamente marcados por essas histórias e revivem a dor sempre que pedem para recontarem tudo. Eu quis saber das relações deles ali nas ruas, sobre o amor. Fiz uma outra abordagem, sem aquele ranço mais clássico. Teve um negro muito sisudo, fechado, que já tinha um discurso pronto quando queriam saber como ele tinha ido para a rua. Eu virei para ele e perguntei: “você já se apaixonou alguma vez?”. Ele mudou o semblante na hora. Mas o que eu queria mesmo entender era por que é bom morar na rua.
E você conseguiu entender? Por que eles preferem continuar na rua a ir para abrigos?
Consegui. Eles são, em primeiro lugar, territorializados. Eles se estruturam em grupos, desenvolvem relações de afeto, comemoram aniversários, datas festivas — menos o Natal, porque remete à família e aí “ferra” com eles —, há uma forte vida grupal. Em segundo lugar, eles têm uma estratégia. Todo mundo diz que a rua é violenta. Então, eles se banalizam, se misturam à paisagem urbana. Como se tornam rostos conhecidos de determinadas regiões, não são mais hostilizados, porque não representam uma ameaça. É uma invisibilidade que se dá na medida em que não representam perigo para os moradores locais. Depois, eles usufruem de uma rede societária de proteção social. Uma rede local de solidariedade, em que ganham quentinhas de comerciantes, usam os banheiros de alguns estabelecimentos, conseguem tomar banho... E existe uma rede maior, privada, que também contribui: instituições que dão sopas, outras que dão remédios, laboratórios que distribuem café de manhã cedo. Com isso, eles se mantêm perfeitamente.
A maioria dos moradores de rua não passa fome?
Não passa mesmo. A autoestima está muito na alimentação. Eles comem quentinhas boas, não existe problema de alimentação. Agora, aquela sopinha rala e amarela do abrigo... Eu vi o que é. Aquilo não segura. Na rua, o difícil é a droga. Isso eles não ganham, então têm que pedir esmola. Um deles falou claramente para mim: “se você me der R$ 50, eu vou cheirar tudo”. Aí, falam que precisam de dinheiro para comprar um remédio e tal, mas não consideram uma mentira no sentido ético. É tudo representação. Eles podem se vestir de uma forma muito melhor do que vemos. Mas precisam cumprir a expectativa social do que é o mendigo. Não é que eles tenham consciência absoluta disso, mas é por aí.
Na sua opinião, qual é o pior momento para eles?
O choque de ordem que acontece a partir de meia-noite, com as vans da Secretaria municipal de Assistência Social, que passam metendo bronca, mesmo. Recolhem eles e levam tudo que eles têm embora, suas preciosidades. Isso eu não vi, mas eles dizem que apanham muito lá dentro.
E qual foi o momento mais difícil para você durante o processo?
Senti medo no hotel (hotéis do governo, que abrigam a população de rua). É uma loucura, rola “porradaria” entre eles, é um ambiente super depressivo. Acompanhei a chegada deles nesse abrigo, para onde são levados até as 22h. Recebem uma sopa rala e vão para os quartos, completamente separados de seus grupos. Para se ter uma ideia, o porteiro fica numa cela, por segurança. O clima é de tensão absoluta, eles não confiam uns nos outros, acham que vão ser roubados. Não é como a rua. Esses lugares não servem para acalmá-los, muito pelo contrário.
Qual a melhor solução para a questão?
Estou totalmente convencido de que é preciso resgatar o grupo. A questão não é individual, é grupal. Não adianta tentar reintegrá-los às antigas famílias. Elas não existem mais. As relações são outras depois que passam a viver na ruas. As políticas públicas deveriam buscar essas novas famílias afetivas formadas por eles. É preciso analisar o grupo e ver o que fazer. Acho muito mais exequível trabalhar com a rede coletiva como forma de saída do que unicamente o indivíduo. Durante o tempo que passei no Leme, conheci um casal que se conheceu na rua. Ele, apesar de muito drogado o tempo inteiro, sempre se dizia apaixonado pela namorada. Ela, mais lúcida, dizia que eles queriam casar e ter um filho. Como separar esses dois? Não dá. Há muita dor, mas muito amor entre eles também.
O que mais te chamou a atenção?
Eles têm retórica. Essa ideia de que os moradores de rua são pessoas hiper despreparadas é furada. Eles têm uma consciência absoluta, sabem da condição deles. Não é aquela imagem de um cara totalmente degradado, que não tem nada. Eles têm uma reflexão. Básica, mas têm. Não são completamente desprovidos do conhecimento, do saber, ainda que de forma precária. E, além disso, a capacidade de vislumbrar uma perspectiva mínima de futuro também me surpreendeu. Eu concebo que quem tem plano para o futuro possui uma vontade e um desejo de se religar com a sociedade. Falta apenas esse gancho.
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Sociólogo fala sobre a experiência de viver um mês com moradores de rua no Rio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU