02 Setembro 2013
A carta provocou muito desgosto para Francisco. Ele sabia que Clara nunca a teria escrito se os fatos não fossem até piores. Elias de Cortona, que estava com ele na Terra Santa, lembra que o amigo, ao lê-la, tinha lágrimas nos olhos, mas não revelou o conteúdo a ninguém. Mas decidiu voltar para a Itália com a primeira nau possível.
O relato é da diretora e roteirista italiana Liliana Cavani, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 30-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Caríssimo irmão em Cristo, que o Pai te dê paz e saúde. Queria te escrever apenas para te dar notícias de alegria, mas este não é o momento. Todas nós juntas, as tuas irmãzinhas, refletimos e sobretudo rezamos muito para te tocar em Espírito para que as palavras que tu leres não te firam demais, mas alcancem o objetivo que é o de iluminar-te sobre a urgente necessidade de deixar a Terra dos Mouros e retornar.
"A fraternitas é como um pobre barco no meio de uma grande tempestade e corre o risco de ser submerso. Eis a causa. Quem o guia na tua ausência dá ordens aos Irmãos e às Irmãs opostos e contrários ao que tu pretendias. Isso provoca discussões e disputas contínuas que conheces, mas que tu sabias gerir com paciência e sabedoria. Três meses depois que tu partiste para a Terra Santa, houve assembleias de Irmãos cada vez mais frequentes, às quais nós, Irmãs, nunca éramos chamadas a participar.
"Leão, Egídio e alguns outros vinham muito tristes nos contar o que acontecia. E tu podes imaginar o que acontecia. Propunham novamente para a Fraternidade uma Regra de vida oposta à que tu tinhas indicado com tanta clareza e paciência. Quem se opunha era calado e expulso. Por isso, muitos Irmãos estão confusos, outros muito tristes e dispersos. Muitos, ao invés, estão contentes em seguir as novas diretrizes.
"A primeira consequência é que a nossa amadíssima Senhora Pobreza, fiel companheira das nossas vidas, foi expulsa com incômodo e até mesmo desprezo. Os Irmãos que continuam a amá-la são acusados de heresia e expulsos, mas o verdadeiro motivo é que são considerados fiéis demais às tuas diretrizes. O coração de toda a questão que tu conheces bem. Eles dizem que tu lhes negavas o direito de estudar e de aprofundar com o estudo a palavra de Jesus Cristo. Eles sabem muito bem que tu dizes coisas bem diferentes. Tu dizias que o estudo é importante quando ajuda as pessoas a serem livres e também dizias que o estudo é até mesmo santo se está a serviço da Verdade e da Vida. E para ti justamente Cristo é a Verdade e a Vida.
"Para muitos deles, ao invés, o estudo é um meio para submeter aqueles que não estudaram e não conhece as palavras para pedir justiça. E é justamente a palavra fraternitas que parece irritar esses doutos, como se não compreendessem o seu significado avassalador, aquele que te avassalou e, através de ti, muitos homens e mulheres, incluindo eu. Isso nos dá uma grande tristeza, e podemos apenas rezar por esses irmãos doutos, para que Jesus Cristo os ilumine, mas por enquanto – é amargo dizê-lo – são vencedores e levados em consideração por Roma.
"E é por causa de tudo isso que a tempestade se abateu também sobre nós, Irmãzinhas tuas. Dois meses atrás, veio de Roma a ordem de fazer de São Damião, que para nós sempre foi simplesmente a Casa, um verdadeiro convento como todos os outros conventos. Se tu lembras bem, já havia uma ameaça no ar mesmo antes que tu partisses, mas, graças à tua presença, a autoridade permanecia firme como uma fera selvagem presa em correntes.
"A ordem de Roma impôs imediatamente que nós, Irmãs, nunca mais saíssemos e não encontrássemos mais os Irmãos, nenhum deles. No entanto, nunca houve escândalo de qualquer tipo, mas sim troca de ajuda e de conselhos, e eles nos ajudavam com os doentes no asilo para casos difíceis como os paralíticos a serem movidos. Éramos, de fato, uma fraternitas. Além dos portões e das cancelas, as grades nas janelas também nos separam de todos. Não pudemos mais ir trabalhar, seja aquelas em serviço em uma casa de ricos, seja aquelas na fábrica para obter o sustento para nós e para os nossos irmãos pobres ou doentes.
"Tu te perguntarás de que vivemos. Eis aqui a maior surpresa. O alimento nos vem das entregas dos 'nossos camponeses' que nos trazem todos os bens de Deus. Tornamo-nos, de fato, as suas 'patroas'. Em suma, a Igreja nos conferiu rendas e assim vivemos de renda. Parece quase uma piada, se pensares que eu e outras irmãs deixamos cômodos palácios e ricas mesas para abraçar a Senhora Pobreza por vergonha diante dos irmãos em desvantagem. Somos novamente privilegiadas e protegidas, e nos sentimos como aquelas bonecas com as quais brincamos quando crianças e que são jogadas aqui e ali.
"O oficial pontifício que nos trouxe o documento a respeito do usufruto das terras que eles nos conferiram riu quando eu lhe disse que não queríamos esse privilégio de renda, mas sim o privilégio de ser pobres. Ele nos indicou que muitíssimos irmãos haviam ficado bem felizes por terem obtido assentos confortáveis para o estudo e a oração. Não houve jeito de fazê-lo entender que estávamos felizes por ganhar a vida como fazem a maior parte dos 'irmãos'. Ele não conseguia entender que eu não me referia a irmãos de sangue, mas sim aos irmãos em Deus, que é bem mais importante. Foi um diálogo impossível.
"Nos primeiros tempos, quase não conseguíamos comer por causa do embaraço. Envergonhávamo-nos e doávamos tudo. Depois, junto com Leão e Pedro, fui ao encontro do Bispo para lhe falar com ele e assim, entrando em acordo com ele, com ele apenas, assim que escurece, eu e algumas irmãs saímos para levar comida e assistência aos nossos irmãos em dificuldade.
"Mas o principal impulso para a nossa resistência é a certeza de que, quando tu voltares, será esclarecido esse equívoco. Uma interpretação tão errada das palavras do Evangelho só pode ser um equívoco. E justamente por causa desse equívoco tantos Irmãos aceitaram casas e até palácios para viver no conforto. Eles dizem que estudam e que, por isso, precisam repousar comodamente, alimentar-se com comidas delicadas e vestir-se com tecidos macios.
"Não pensam assim os primeiros que chegaram à fraternitas, Leão, Rufino, Pedro, Egídio e outros. Eles permaneceram fiéis ao Evangelho ao pé da letra e, portanto, continuam vivendo como antes, mas esperam e rezam para que logo tudo se esclareça. Tu não podes sequer imaginar o quanto é necessário que tu existas.
"Chegou aqui a notícia, graças a um mercador que a espalhou, que tu encontraste o Sultão e que vocês falaram sobre uma possível Paz. O bispo veio para nos relatar isso pessoalmente. Ele exultava de alegria, mas parece que em Roma eles têm outras ideias. É evidente que, na Terra Santa, eles precisam de ti, e eu e as Irmãs corremos o risco de ser inoportunas. Mas é justo que tu conheças tudo para poder decidir, e por isso rezamos muito e...".
* * *
A carta se interrompe aqui. Certamente provocou muito desgosto para Francisco. Ele sabia que Clara nunca a teria escrito se os fatos não fossem até piores. Elias de Cortona, que estava com ele na Terra Santa, lembra que o amigo, ao lê-la, tinha lágrimas nos olhos, mas não revelou o conteúdo a ninguém. Mas decidiu voltar para a Itália com a primeira nau possível.
Essa carta nunca foi lida por nenhum biógrafo. Nas Fontes Franciscanas, no entanto, lê-se uma carta enviada por Clara a Francisco em que ela pedia que ele voltasse. De fato, era o período em que havia grandes desavenças dentro da fraternitas. Eu a escrevi imaginando-a. Agora, parece-me tão verdadeira que não posso destruí-la.
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Clara e Francisco, a carta desconhecida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU