07 Mai 2013
"Igreja “com CEBs” praticamente existe em todo o país. Elas proliferam, tornando-se pontos vitais de participação, de compromisso, de vida comunitária e de escuta da Palavra. Se quisermos pensar rede de comunidades, então não basta que a paróquia, a diocese “tenham CEBs”, mas que as pensemos em outro esquema de estrutura eclesial, com outras estruturas de mediação decisória e de atuação. Precisamos distinguir entre “Igreja com CEBs” e “Igreja de CEBs” (rede de comunidades", constata Sérgio Ricardo Coutinho.
"Que tipo de rede gostaríamos que as Paróquias se transformassem: naquela que maximiza os interesses dos indivíduos que privilegiam suas redes pessoais (comunidades virtuais) ou naquela que maximiza valores e objetivos compartilhados por meio do debate e das tensões provenientes do “mundo da vida” (comunidades reais)?", questiona. E conclui: "O que marca uma rede são os seus “laços” e não os “pontos fixos”.
Sérgio Ricardo Coutinho é mestre (UnB) e doutorando (UFG) em História Social; professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura e de Formação Política e Econômica do Brasil e de Teoria Política no Centro Universitário IESB, em Brasília; membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil).
Eis o artigo.
O conceito de comunidade nunca foi uma unanimidade. Os autores clássicos, como Ferdinand Tönnies, procuravam conceituar a comunidade em oposição à sociedade. Tönnies procurou criar um conceito “puro” de comunidade, idealizada, oposta ao conceito de sociedade, criado pela vida moderna. Para Tönnies, Gemeinschaft (comunidade) representava o passado, a aldeia, a família, o calor. Tinha motivação afetiva, era orgânica, lidava com relações locais e com interação. As normas e o controle davam-se através da união, do hábito, do costume e da religião. Seu círculo abrangia família, aldeia e pequena cidade.
Já Gesellschaft (sociedade) era a frieza, o egoísmo, fruto da calculista modernidade. Sua motivação era objetiva, mecânica, observava relações supralocais e complexas. As normas e o controle davam-se através de convenção, lei e opinião pública. Seu círculo abrangia metrópole, nação, Estado e Mundo. (1)
No entendimento de Max Weber, o conceito de comunidade baseia-se na orientação da ação social. Para ele, a comunidade funda-se em qualquer tipo de ligação emocional, afetiva ou tradicional (ação arracional): “Chamamos de comunidade a uma relação social na medida em que a orientação da ação social, na média ou no tipo ideal – baseia-se em um sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos participantes”.(2)
Assim, a comunidade só existiria propriamente quando, sobre uma base de um sentimento de situação comum e de suas consequências, está também situada a ação reciprocamente referida e essa referência traduz o sentimento de formar um todo.
A ideia moderna de comunidade começou a se distinguir de seu protótipo antigo, apoiando-se em diferentes princípios de coesão entre os seus elementos constituintes, como o contraste entre parentesco e território, sentimentos e interesses, etc. Este conceito “moderno” de comunidade foi identificado com diversos aspectos complexos como a coesão social, a base territorial, o conflito e a colaboração para um fim comum, e não mais a ideia de uma relação familiar, como na Gemeinschaft tönnesiana.
Palacios (3) enumera os elementos que caracterizariam esse tipo complexo de comunidade: o sentimento de pertencimento, a territorialidade, a permanência, caráter corporativo, emergência de um projeto comum e a existência de formas próprias de comunicação. O sentimento de pertencimento, ou “pertença”, seria a noção de que o indivíduo é parte do todo, coopera para uma finalidade comum com os demais membros (caráter corporativo, sentimento de comunidade e projeto comum); a territorialidade, o locus da comunidade; a permanência, condição essencial para o estabelecimento das relações sociais.
Pode-se observar assim que o termo comunidade evoluiu de um sentido quase “ideal” de família, comunidade rural, passando a integrar um maior conjunto de grupos humanos com o passar do tempo. Com o advento da Modernidade e da urbanização, principalmente, as comunidades rurais passaram a desaparecer, cedendo espaço para as grandes cidades. Com isso, a ideia de comunidade como a sociologia clássica a concebia, como um tipo rural, ligado por laços de parentesco em oposição à ideia de sociedade, parece desaparecer não da teoria, mas da prática.
Ray Oldenburg, citado por Hamman (4) e Rheingold (5), afirma que as comunidades estariam desaparecendo da vida moderna devido à falta dos lugares que ele chama de “great good places” (“lugares muito bons”). Segundo ele, haveriam três tipos importantes de “lugares” em nossa vida cotidiana: o lar, o trabalho e os “terceiros lugares”, referentes àqueles onde os laços sociais fomentadores das comunidades seriam formados, como a igreja, o bar, a praça etc. Esses lugares seriam mais propícios para a relação social que ele julga necessária para o “sentimento de comunidade”, porque seriam aqueles onde existe o “lazer”, onde as pessoas encontram-se de modo desinteressado para se divertirem (lugares de vida pública “informal”, nas palavras do autor). Como esses lugares estariam desaparecendo da vida moderna, devido às atribulações do dia-a-dia, as pessoas estariam sentindo que o “sentimento de comunidade” estaria em falta. (6)
A generalização da atual interconexão entre as pessoas tem chamado a atenção de muitos teóricos sobre seus efeitos no quadro das relações individuais e igualmente na forma como os grupos se comportam quando se constituem como redes de alta densidade. Todos eles apontam para uma mesma situação: estamos em rede, interconectados com um número cada vez maior de pontos e com uma frequência que só faz crescer.
Em função disso, o que os recentes analistas de redes apontam é para a necessidade de uma mudança no modo de compreender o conceito de comunidade: novas formas de comunidade surgiram, o que tornou mais complexa nossa relação com as antigas formas. Para isso, o foco se dirige diretamente para os “laços sociais e para os sistemas informais de troca de recursos”, ao invés de focar nas pessoas vivendo em vizinhanças e nas pequenas cidades. O que se verá é uma imagem das relações interpessoais bem diferentes daquelas com as quais a sociologia clássica se habituou a pensar.
Por isso, as análises recentes remetem para uma transmutação do conceito de comunidade para o de rede social. Se solidariedade, vizinhança e parentesco eram aspectos predominantes quando se procurava definir uma comunidade, hoje eles seriam apenas alguns dentre os muitos padrões possíveis das redes sociais. Atualmente, o que os analistas estruturais procuram avaliar são as formas nas quais padrões estruturais alternativos afetam o fluxo de recursos entre os membros de uma rede social. Estaríamos diante de novas formas de associação, imersos numa complexidade chamada rede social, com muitas dimensões, e que mobiliza o fluxo de recursos entre inúmeros indivíduos distribuídos segundo padrões variáveis.
Deste modo, para estes analistas de redes e sociólogos urbanos, o conceito de redes sociais responderia a uma compreensão da interação humana de modo mais amplo que o de comunidade. Essas reflexões surgiram, de fato, ao mesmo tempo em que se desencadeava uma profunda revolução nos meios de comunicação. Esta acabou por provocar uma mudança determinante na forma de interação entre os indivíduos, no modo como cada um poderia interagir e estar em contato com outros ao seu redor. Isso a vivenciamos hoje, com o surgimento do ciberespaço, a multiplicação das ferramentas de colaboração on-line, as tecnologias de comunicação móvel se integrando às mídias tradicionais etc.
E o resultado mais conhecido de todo esse processo são as comunidades virtuais. Desde seu início, elas sempre foram criticadas pela ausência de contato físico entre seus participantes. Mas para Pierre Lévy (7), as comunidades virtuais são uma nova forma de se fazer sociedade. Essa nova forma é rizomática, transitória, desprendida de tempo e espaço, baseada muito mais na cooperação e trocas objetivas do que na permanência de laços.
Assim, para estes sociólogos, não se trataria mais de definir relações de comunidade exclusivamente em termos de laços próximos e persistentes, mas se deveria mudar o foco em direção às redes pessoais. É cada indivíduo que está apto a construir sua própria rede de relações, sem que essa rede possa ser definida precisamente como comunidade.
A pergunta que fica é: esta nova forma de sociabilidade preencheria a perda do “sentimento de comunidade”? A “permanência de laços”, no tempo e no espaço, não faz mais sentido hoje?
Neste sentido, mostra-se bastante útil o pensamento de Martin Heidegger sobre o modo de ser da existência humana. Para o filósofo, ser-com-o-outro faz parte da existência humana. A vida em comunidade não é uma opção solipsista, pois o cidadão é com o outro cidadão a partir das referências existenciais cotidianas. A comunidade é crucial para a determinação do “mundo”; isto é, o “mundo” é sempre compartilhado, e a comunidade o espaço no qual os elementos compartilhados são construídos. Considerando as características dessa existência humana, compreender a comunidade exige voltar-se para o conjunto de situações concretas em que é construída, sem se esquecer da importância da linguagem, pois toda comunidade é uma instancia discursiva.
Quando no mundo de hoje qualquer grupo social (da família à espécie humana), enfrenta questões fundamentais em relação à própria viabilidade de nosso modo de vida atual, não podemos deixar de nos perguntar o que queremos ser e aonde queremos ir. O que faz de um grupo uma comunidade e não uma simples associação contratual, para a maximização de interesses dos indivíduos envolvidos (como no modelo normativo liberal), é uma preocupação compartilhada com a questão de saber o que fará deste grupo um bom grupo, questão essa que geralmente não é opcional, pelo contrário: da resposta dada a ela depende o próprio futuro do grupo. Desde que obtenha consenso a respeito do bem que deve realizar (o que será sempre contestável e aberto ao debate), torna-se uma comunidade com alguns valores comuns, mas também com objetivos comuns.
Uma boa comunidade é aquela em que há argumentação e até conflito sobre o significado dos valores e objetivos compartilhados, e certamente como serão realizados no dia-a-dia. Comunidade é o lugar em que nos comunicamos com os outros, tomamos decisões, chegamos a acordos sobre padrões e normas, perseguimos em conjunto o esforço de criar uma forma de vida de valor. Este é o “mundo da vida” (o Lebenswelt de Jürgen Habermas) e é lá que se realiza a comunidade.
O que significam essas reflexões para a compreensão atual da Paróquia?
Rede de comunidades (ou redes sociais) nos conduz a pensar em duas realidades. Uma nova maneira de pensar a articulação do tecido social e, que nos interessa aqui de sobremaneira, uma nova maneira de pensar a estrutura eclesial (“um novo jeito da igreja ser”).
Como vimos, apesar de serem estruturadas de forma transitória, desprendida de tempo e espaço, baseada muito mais na cooperação em vista de trocas objetivas que propriamente na permanência de laços, sociologicamente a rede de comunidades desloca o modo de pensar a estrutura social em si. Em vez de assumir a forma piramidal, opta-se pela interligação entre os corpos sociais: a forma rizomática.
A metáfora da rede modifica o esquema fundamental. Os corpos menores relacionam-se entre si e da conjugação de suas deliberações surgem as decisões. Predomina a busca do consenso entre todos. As informações circulam livremente. Evita-se a concentração de poder em determinados cargos. Todos se ligam com todos. Predomina a figura geométrica do horizontal.
Os bispos na Conferência de Aparecida pedem reiteradamente que as paróquias se transformem “cada vez mais em comunidades de comunidades” (DA 99, 179, 309) e, para isso, “exige a reformulação de suas estruturas, para que seja uma rede de comunidades e grupos, capaz de se articular, conseguindo que os participantes se sintam realmente discípulos e missionários de Jesus Cristo em comunhão” (DA 172).
Mas como? Como fazer a paróquia se tornar uma “comunidade de comunidades” naquele “sentido forte” de comunidade enquanto o lugar em que nos comunicamos com os outros, tomamos decisões, chegamos a acordos sobre padrões e normas, perseguimos em conjunto o esforço de criar uma forma de vida de valor e, no nosso caso, de “valor evangélico”?
Em nossas dioceses, temos muitas comunidades. Em muitas delas, costuma-se denominá-las de comunidades eclesiais de base (CEBs), em algumas outras têm-se preferido chamar de “pequenas comunidades eclesiais”.
Para se ter uma ideia, vejamos este pequeno quadro comparativo com algumas dioceses brasileiras:
Igreja “com CEBs” praticamente existe em todo o país. Elas proliferam, tornando-se pontos vitais de participação, de compromisso, de vida comunitária e de escuta da Palavra. Se quisermos pensar rede de comunidades, então não basta que a paróquia, a diocese “tenham CEBs”, mas que as pensemos em outro esquema de estrutura eclesial, com outras estruturas de mediação decisória e de atuação. Precisamos distinguir entre “Igreja com CEBs” e “Igreja de CEBs” (rede de comunidades).
Em vez delas se entenderem a partir do centro – matriz ou catedral –, elas se concebem como conjunto de comunidades entre si ligadas (horizontalidade rizomática) e dessa conexão emerge a ideia de paróquia ou diocese. Ambas não precedem as comunidades, mas o contrário.
Primeiro estão as comunidades que só se compreendem em relação de serviço, de oferta e demanda em relação às outras. E a ideia de diocese ou paróquia surge desse tecido de comunidades. As informações circulam pelas comunidades livremente e desde daí elas decidem as ações, levando em consideração às outras comunidades na dupla atitude de quem oferece e recebe conforme a sua própria possibilidade e necessidade. Desta forma, poderíamos falar de uma “Igreja de CEBs”.
Se quisermos mudanças de fato, devemos descentralizar a experiência de fé em muitas de nossas comunidades paroquiais:
a) Todas as comunidades devem ser estimuladas a dar prioridade à Palavra, para que esta possibilite o despertar e a educação da fé;
b) Descentralizar a celebração dos sacramentos, desde o batismo, passando pelo matrimônio, até a eucaristia, quando possível. Uma comunidade não é mini-matriz, mas tem direito a todos os serviços da fé e caridade;
c) Que as comunidades mesmas administrem suas próprias finanças;
d) Os conselhos, econômico e pastoral, são os grandes meios de representação, de participação e de corresponsabilidade dentro das comunidades e no conjunto da paróquia;
e) Neste processo de descentralização, muda a posição do pároco. Como o bispo tem o seu presbitério e o conselho presbiteral, o pároco deve ter sua equipe de pastoral que o ajude a pensar e a aprofundar a missão da Igreja, e com eles partilhar a missão de articulador das comunidades.
Que tipo de rede gostaríamos que as Paróquias se transformassem: naquela que maximiza os interesses dos indivíduos que privilegiam suas redes pessoais (comunidades virtuais) ou naquela que maximiza valores e objetivos compartilhados por meio do debate e das tensões provenientes do “mundo da vida” (comunidades reais)?
O que marca uma rede são os seus “laços” e não os “pontos fixos”.
Notas do autor:
(1) MERLO, Valério. Rumo à Origem da Sociologia Rural: Vontade Humana e Estrutura Social no Pensamento de Ferdinand Tönnies. In MIRANDA, Orlando. Para Ler Ferdinand Tönnies. SP: EDUSP, 1995.
(2) WEBER, Max. Conceitos Básicos de Sociologia. SP: Editora Moraes, 1987, p. 77.
(3) PALACIOS, Marcos. Cotidiano e Sociabilidade no Cyberespaço: Apontamentos para Discussão. in http://facom/ufba/br/pesq/cyber/palacios/cotidiano.html.
(4) HAMMAN, Robin. Introduction to Virtual Communities Research and Cybersociology Magazine Issue Two in http://members.aol.com/Cybersoc/is2intro.html.
(5) RHEINGOLD, Howard. La Comunidad Virtual: Una Sociedad sin Fronteras. Gedisa Editorial. Colección Limites de La Ciencia. Barcelona, 1994, p. 61.
(6) BAUMAN, Zigmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. RJ: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 48.
(7) LÉVY, Pierre. Cyberdemocratie. Paris: Odile Jacob, 2002.
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Comunidade, rede de comunidades e paróquia: Para uma compreensão sociológica e pastoral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU