05 Fevereiro 2013
No último dia 14 de janeiro, em Nova York, foi realizada a Conferência Anual John Courtney Murray da Fordham University. O evento é uma homenagem ao jesuíta e teólogo norte-americano conhecido pela sua tentativa de reconciliar o catolicismo e o pluralismo religioso, a ponto de ser um dos nomes-chave por trás do principal documento do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa, Dignitatis humanae.
Intitulada "O que John Courtney Murray disse, não disse e poderia ter dito sobre algumas questões diante de nós hoje", a palestra foi proferida pelo padre norte-americano J. Bryan Hehir. Além de abordar o legado de Murray, Hehir também refletiu sobre o que Murray teria dito hoje sobre as batalhas em torno do aborto, ou da polêmica acerca do mandato do governo dos Estados Unidos que exige que as instituições católicas do país paguem pelos serviços de contracepção de seus empregados.
Hehir é professor da cátedra Parker Gilbert Montgomery de Prática Religiosa e Vida Pública da Universidade de Harvard e secretário do serviço social da Arquidiocese de Boston.
Em entrevista ao sítio da revista America, dos jesuítas dos EUA, 04-02-2013, Hehir comentou alguns pontos centrais de sua conferência. "Eu tomei algumas questões principais e tentei retratar o seu estado atual. Depois, olhei para os escritos de Murray e selecionei aquelas coisas que eu pensei que poderiam ser pertinentes para cada questão, mesmo que Murray não tenha abordado alguns desses temas diretamente".
As quatro questões a que Hehir se refere são: 1) a relação entre a Igreja e o mundo; 2) guerra e paz; 3) a questão do aborto e da lei civil nos Estados Unidos; e 4) o debate sobre a liberdade religiosa em torno do mandato do HHS, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, ao longo do último ano e meio.
"Em algumas dessas questões – afirma Hehir – há recursos diretos de Murray que é possível traduzir para as questões de hoje. Sobre outras coisas, ele simplesmente não comentou nada. Mas, com relação ao mandato do HHS, a minha questão era que conselho ele poderia ter dado sobre como a Igreja deveria se engajar com esse tema".
Publicamos aqui alguns trechos da entrevista, com a edição e os subtítulos da IHU On-Line.
Eis a entrevista.
Relação Igreja-mundo
O tema da Igreja e do mundo é um assunto tão velho quanto a Igreja, começa com o Novo Testamento. Sua expressão mais clássica encontra-se na “cidade de Deus”, de Agostinho. Mas essa tem sido uma questão contínua para a Igreja. E a razão pela qual eu a escolhi é que ela não é apenas uma questão contínua, mas também porque o Vaticano II produziu um documento, a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual, que é a declaração contemporânea da Igreja no mundo.
Murray abordou a questão da Igreja no mundo em diversos momentos da sua carreira. Mas, para a surpresa de muitos, ele nunca foi consultado pelo Vaticano II para a preparação do documento sobre a Igreja no mundo. Obviamente, ele foi a principal pessoa por trás do documento sobre a liberdade religiosa, mas nunca esteve diretamente envolvido – pelo que eu saiba – na preparação da constituição Gaudium et Spes.
No fim de sua vida, na revista Theological Studies, Murray escreveu um longo artigo, intitulado The Issue of Church and State at Vatican Council II (disponível aqui, em inglês), em que ele tomou o documento sobre a liberdade religiosa e o documento sobre a Igreja no mundo e os comparou e relacionou. A partir dessa comparação, ele nos deu um marco para interpretar uma visão contemporânea da Igreja no mundo.
Sua contribuição particular foi se focar no documento sobre a Igreja no mundo, em cujo núcleo, exatamente nos parágrafos 40 a 42, a Igreja faz uma espécie de declaração estrutural sobre como devemos pensar a Igreja e o seu engajamento público. Por um lado, primeiro, o documento diz que a Igreja não é uma instituição política, e o significado disso é que a Igreja não tem um carisma político particular, nenhuma garantia política particular da orientação do Espírito Santo quando ela faz julgamentos políticos, embora seja livre para fazer esses julgamentos.
Em segundo lugar, o documento conciliar diz que a Igreja tem um ministério religioso, e não político. O ministério religioso está a serviço do Reino. Por isso, o marco para se pensar o engajamento da Igreja no mundo é, realmente, como você relaciona o lugar do Reino, que Jesus prega em todos os momentos, na vida da Igreja e, assim, na vida do mundo secular. A Igreja não é uma comunidade política; é uma comunidade religiosa, a serviço do Reino.
Mas, em terceiro lugar, o ponto-chave do Vaticano II é que, enquanto a Igreja busca o trabalho do Reino, ela deve fazê-lo de forma que o próprio ministério da Igreja contribua com quatro coisas: a proteção dos direitos humanos, a promoção da dignidade humana, a ascensão de sentido em todas as áreas dos assuntos públicos e a promoção da unidade da família humana. Esses quatro grandes objetivos compõem o marco para o engajamento da Igreja no mundo.
Guerra e paz
Em 1959, Murray escreveu um artigo intitulado Remarks on the Moral Problem of War (disponível aqui, em inglês), na revista Theological Studies, que foi republicado em muitos outros lugares – sinal da sua importância –, que aborda a questão da guerra e da paz da forma como era estudada à época, ou seja, o conflito de superpoderes, com a possibilidade da emergência do conflito nuclear a partir disso.
Esse artigo é um exemplo clássico da ética da guerra justa, da forma como é sustentada e afirmada na comunidade católica. Os tópicos sobre os quais ele escreveu nesse artigo mudaram com o colapso da Guerra Fria, mas a sua leitura fornece a compreensão das premissas que a Igreja usa para desenvolver a ética da guerra justa.
Na complexidade do mundo em que vivemos, o enorme perigo de um engajamento nuclear cataclísmico, como existia na Guerra Fria, reduziu-se significativamente. Mas vivemos em um mundo que produz três tipos de guerra: 1) a guerra inter-Estados, o tipo de guerra sobre o qual Murray de fato escreveu; 2) a guerra interna, dentro dos Estados, Síria, Líbia, Bálcãs, Estados africanos, que levanta a questão da intervenção humanitária; e 3) o que eu chamo de guerra transnacional, uma guerra conduzida por atores que não são Estados, que comumente é associada com o terrorismo. Murray não escreveu sobre esses dois últimos tipos de guerra.
Aborto
Murray morreu seis anos antes do caso Roe versus Wade [caso judicial pelo qual a Suprema Corte dos EUA reconheceu o direito ao aborto ou interrupção voluntária da gravidez], por isso ele nunca se confrontou com a questão do aborto. Mas, de fato, ele escreveu sobre a questão da prudência jurídica, que é essencialmente a relação entre a compreensão pessoal da lei moral e a compreensão de quanto da lei moral pode e deve ser traduzida em leis civis positivas.
Assim, 40 anos depois da decisão da Suprema Corte, se olharmos para como a questão do aborto é debatida, essencialmente precisamos pensar em três níveis: 1) o nível moral, se o que você pensa sobre o aborto é certo ou errado; 2) o nível legal, o quanto você acha que deve legislar sobre o aborto; e então 3) o nível político, que se sobressai em todas as eleições presidenciais.
Murray escreveu um artigo, que encontramos no livro We Hold These Truths, intitulado Should There Be a Law? (disponível aqui, em inglês), em que ele estabelece um marco legal clássico e natural da jurisprudência. Seu ponto principal era que a lei civil deve atuar enraizada, baseada na lei moral; mas a lei civil tem um foco muito mais estreito do que a lei moral.
Toda ação humana – pública, privada, pessoal, social, pensamentos, palavras e ações – está coberta e pode ser julgada pela lei moral. Mas a lei civil não tenta aprovar legislações sobre todas essas coisas. A lei civil, segundo Murray, só é usada para a proibição ou a prescrição governamentais. A lei civil só pode atuar diante daquelas questões que têm um impacto substancial sobre o bem comum da sociedade.
Com relação à lei e à moral, um dia, o cardeal Richard Cushing, de Boston, no início dos anos 1960, estava diante de uma decisão em que os legisladores de Massachusetts iriam rejeitar uma lei que proibia a venda de anticoncepcionais nesse Estado. O cardeal escreveu para Murray para pedir conselho. Murray disse ao cardeal que a forma para se pensar sobre essas coisas passa por dois pontos.
O primeiro: a questão que tenho em mãos é uma questão de moral pública, que impacta sobre o bem público ou é de moral privada? A moral privada ainda é moral, é preciso fazer julgamentos morais, mas você não tenta incorporar todo o seu ponto de vista sobre a moral na lei civil. Murray argumentou que a contracepção não era uma questão de moral pública, e que o cardeal podia, em certo sentido, apoiar a rejeição da lei, o que ele acabou fazendo. E um editorial do New York Times o congratulou à época. Essa distinção entre moral pública e privada é um dos principais pontos de Murray.
O segundo ponto principal é que, ao pensar sobre que questões fazem parte da moral pública, a categoria que você precisa usar é: essa ação envolve impactos sobre a ordem pública da sociedade? O termo ordem pública está na declaração sobre liberdade religiosa, que questiona: o Estado pode estabelecer quaisquer limites para o exercício da liberdade religiosa? E a resposta que a declaração dá é a seguinte: o Estado só pode limitar o exercício da liberdade religiosa se a ação envolver ameaças ou violações à ordem pública da sociedade. A ordem pública da sociedade envolve três bens: a paz pública, a moral pública e a justiça.
Quanto ao aborto, embora Murray nunca tenha abordado a questão, é possível dizer que ele teria apoiado o ensino moral da Igreja sobre o aborto. Como o aborto envolve a remoção de uma vida humana, ele é uma violação da ordem pública, e Murray teria sentido que essa decisão deveria ser governada pela lei civil e que a posição da Igreja de se opôr ao aborto por meio da lei pública é defensável e necessária.
Liberdade religiosa e o mandato do HHS
Em 2010, o Affordable Care Act [também conhecido como Obamacare, ou Lei de Proteção ao Paciente e Serviços de Saúde Acessíveis] foi aprovado. Essa foi uma questão complicada em si mesma, porque os bispos dos EUA têm defendido o acesso universal à saúde desde 1919 e eles claramente gostariam de ver isso acontecer. Mas a Conferência Episcopal sentiu que não podia apoiar a lei pela forma como esta argumenta sobre a cobertura do aborto.
A meu ver, a lei em si mesma não garantia que estaríamos nessa situação horrível com relação ao mandato em que nos encontramos. Mas é possível argumentar que se apoia o Affordable Care Act, mas se opõe ao mandato que criou a situação atual. Então, como chegamos aqui desde 2010?
O Affordable Care Act possui um mandato individual de que todos devem ter um seguro-saúde ou pagarão uma multa. Os bispos não teriam dificuldade com isso.
Em segundo lugar, o mandato aos empregadores para que providenciem um seguro ou senão pagarão uma multa, de novo, é necessário para cumprir a lei.
Em terceiro lugar, depois que a lei foi aprovada, o Instituto de Medicina, que é uma subdivisão do Instituto Nacional de Saúde, produziu uma lista de serviços preventivos de saúde que deveriam ser cobertos sem nenhum ônus para aqueles que tinham seguro. Ora, serviços preventivos não apresentam um problema moral para a Igreja e, de fato, é algo razoável.
O quarto passo começou a ficar mais complicado. Depois que o Instituto de Medicina submeteu a sua lista, segundo a imprensa, houve um grande debate dentro do governo sobre a adição de serviços de saúde reprodutiva aos serviços preventivos. Isso com certeza levantaria questionamentos para a Igreja, mas no nível geral da lei pública do país a maioria desses serviços seriam apoiados. Mesmo que a Igreja pudesse ter alguma dificuldade com isso, ela provavelmente abandonaria um conflito maior.
O próximo passo é que foi o problema. E o próximo passo foi quando o governo, muito insensatamente, disse que iria exigir que certas agências católicas providenciassem esses serviços preventivos de saúde reprodutiva – contracepção e outros serviços, em instituições católicas. Ora, quando foram exigidas a fazer isso, elas disseram que tinham uma isenção religiosa.
Esse é o ponto-chave. Em uma democracia, a política e a lei públicas são decididas pela maioria dos votos, ou por decisões da Corte. Mas em uma democracia religiosamente pluralista, exatamente o tipo no qual Murray estava interessado, é quase inevitável que certas leis públicas corram em sentido contrário às convicções das comunidades religiosas. O exemplo clássico é a objeção de consciência para menonitas e quackers.
Então, as isenções são cruciais em uma democracia religiosamente pluralista, porque o que uma isenção diz é o seguinte: uma lei pública mais ampla seguirá em frente e governará o país, mas por causa de uma doutrina ou prática religiosa específica de uma comunidade religiosa, esta estará isenta de observar a lei porque, segundo a compreensão norte-americana da liberdade religiosa, a religião é especial e merece proteção.
Então, quando o governo disse, basicamente, que iria isentar dioceses e paróquias, mas não iria isentar instituições de caridade, instituições de saúde ou instituições de Ensino Superior católicas, ele invadiu o espaço de uma comunidade religiosa em seus vários serviços e criou uma crise enorme. Essa crise é mais bem entendida como um caso de estudo de má política pública, porque o governo não apenas está invadindo uma comunidade religiosa e seus afiliados, mas também está se apossando da comunidade religiosa com a maior rede de serviço social e com o maior serviço de saúde sem fins lucrativos do país.
Mas, embora geradas de dentro da Igreja, a forma como nós pensamos sobre as nossas instituições – de saúde, de serviço social e de educação – é que elas são instituições-ponte com relação à sociedade em geral. O que nós buscamos fazer – e isso tem muito a ver com o estilo de Murray – é usar as instituições católicas para colaborar com o Estado pelo bem comum da sociedade.
A isenção que o governo usa é uma isenção que foi definida pela primeira vez na Califórnia, no início deste século. E essa isenção diz: a fim de se habilitar a uma isenção, você precisa ser uma instituição sem fins lucrativos reconhecida, precisa atender e empregar basicamente apenas os seus próprios membros e precisa estar envolvido no ensino dos valores e doutrinas da sua comunidade.
Ora, nós não fazemos isso em nossas instituições. As nossas instituições de caridade católicas não perguntam se você está com fome e é católico; elas apenas perguntam se você está com fome. E as nossas instituições empregam, para nosso orgulho, pessoas de diversas crenças e também sem crença alguma.
Então, o paradoxo dessa isenção estreita é que as instituições de caridade católicas acabam não sendo católicas, e isso parece ser simplesmente ridículo. Como se resolve isso? Não é um problema difícil de resolver, em minha opinião.
Tudo o que precisamos – falo isso em um nível político, sobre o qual, depois, os advogados terão que trabalhar – é que o governo expanda a isenção que cobre a maioria das dioceses e a faça cobrir instituições de saúde, de serviço social e de Ensino Superior. Esse seria o fim do debate. E eu não consigo entender por que o governo não considera essa uma solução negociável.
Por Moisés Sbardelotto
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