22 Janeiro 2013
As fés são vastos sistemas de símbolos que falam sobre nós. É daí que as artes visuais devem recomeçar, evitando o kitsch.
A opinião é da escritora norte-americana Camille Paglia, ex-professora da University of the Arts in Philadelphia. O texto que segue é um trecho da introdução de seu livro Glittering Images: A Journey Through Art from Egypt to Star Wars. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 20-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A arte é um casamento entre o ideal e o real. A criação artística é um ramo do artesanato. Os artistas são artesãos, mais próximos dos carpinteiros e dos soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com a sua empolada retórica autorreferencial. A arte usa os sentidos e fala aos sentidos. Afunda as suas raízes no mundo físico tangível.
O pós-estruturalismo, com suas origens linguísticas francesas, tem a obsessão pelas palavras e, por isso, é incompetente para iluminar qualquer forma artística fora da literatura. O discurso sobre a arte deve se aproximar dela e descrevê-la nos seus próprios termos. É preciso encontrar um delicado equilíbrio entre o mundo visível e o invisível. Quem subordina a arte à agenda política contemporânea é tão culpado por literalismo rígido e por propaganda quanto um pregador vitoriano ou um burocrata stalinista qualquer.
Uma das razões da atual marginalização das belas artes é que os artistas se voltam muito frequentemente a outros artistas e perderam o contato com as pessoas comuns, das quais desprezam e zombam os gostos e os valores. A maior parte dos artistas norte-americanos são progressistas que têm um contato mínimo, senão nulo, com quem pensa diferente deles. O progressismo militante antiestablishment e defensor da liberdade de expressão dos anos 1960 (com a qual eu me identifico fortemente) transformou-se no utópico mundo ideal da classe dos profissionais afluentes, com os seus vagos impulsos filantrópicos e uma estranha passividade com relação a governo pomposo e autoritário.
Uma ortodoxia monolítica abandonou os artistas em um gueto de opiniões óbvias e os cortou fora das ideias novas. Nada é mais banal do que o dogma progressista, segundo o qual um valor chocante automaticamente confere importância a uma obra de arte. A última vez que isso foi verdade foi, talvez, no fim dos anos 1970, com as fotografias homoeróticas e sadomasoquistas de Robert Mapplethorpe. Mas a cultura seguiu em frente. No século XXI, buscamos o significado, não a sua subversão.
Os conservadores também, por sua vez, pecaram contra a cultura. Apesar dos seus toques de trombeta por um retorno da educação ao cânone ocidental, eles se comportaram como filisteus provincianos com relação às artes visuais. Embora haja muitos críticos de arte sofisticados entre os conservadores urbanos, o impulso do movimento conservador norte-americano se alimentou sobretudo com as regiões agrárias onde prospera o cristianismo evangélico. O protestantismo tem uma história de iconoclastia: durante a Reforma no norte da Europa, as estátuas das igrejas e os vitrais coloridos foram sistematicamente destruídos por serem idólatras. Com relação ao catolicismo romano, tão rico em arte, o protestantismo norte-americano tradicional é visualmente pobre. As suas imagens de Jesus como Bom Pastor são muitas vezes artisticamente tão fracas que beiram o kitsch.
A maior parte dos conservadores atua em um clima que é indiferente ou hostil com relação à arte. Os principais escritores e críticos conservadores parecem cegos diante da intrincada interconexão entre arte e política na antiga Grécia que inventou a democracia. O nu, baseado no estudo científico da anatomia, foi o grande símbolo do individualismo ocidental que os gregos nos deixaram de herança, mas os conservadores cristãos nunca permitiriam exibir nas escolas públicas os heroicos nus da arte ocidental. O puritanismo norte-americano hesita na suspeita conservadora de que há uma feitiçaria na beleza.
Por outro lado, uma quantidade enorme da melhor arte ocidental foi intensamente religiosa, e os progressistas, que queriam que os presépios fossem tirados das praças, objetariam, por sua vez, contra a instrução doutrinal necessária para apresentar a iconografia cristã na escola pública. Por isso, a educação artística foi obstaculizada nos Estados Unidos, vítima do fogo cruzado da política.
Embora eu seja ateia, respeito todas as religiões e as levo a sério como vastos sistemas de símbolos que contêm uma verdade profunda sobre a existência humana. Embora em seu nome se tenham cometido males, a religião tem sido uma força enorme de civilização na história do mundo. Zombar da religião é algo pueril, sintomático de uma imaginação atrofiada. Porém, essa posição cínica tornou-se de rigor no mundo artístico, um motivo a mais para a banal superficialidade de grande parte da arte contemporânea à qual não restou nenhuma grande ideia.
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Por que a religião ainda pode salvar a nossa cultura. Artigo de Camille Paglia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU