Por: Cesar Sanson | 22 Janeiro 2013
Enquanto reina a injustiça, a impunidade, o município de Unaí se transformou em campeão na produção de feijão, no uso de agrotóxico e no número de pessoas com câncer. Trabalho escravo e agrotóxicos matam! O comentário é de Gilvander Luís Moreira, Frei e padre da Ordem dos carmelitas e conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais.
Eis o artigo.
Era dia 28 de janeiro de 2004, 8h20 da manhã, em uma emboscada, cinco jagunços dispararam rajadas de tiros em quatro fiscais da Delegacia Regional do Ministério do Trabalho, perto da Fazendo Bocaina, município de Unaí, Noroeste de Minas Gerais. Passaram-se 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 anos. Já foi aprovada a Lei 12.064, que criou o dia 28 de janeiro como Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Mas e a Justiça? Por onde anda? No dia 28 de janeiro de 2013 completam 9 anos da chacina.
Na maior chacina contra agentes do Estado Brasileiro, foram ceifadas as vidas de Erastótenes de Almeida Gonçalves (o Tote), de 42 anos, João Batista Soares Lage, 50, e Nelson José da Silva, 52, além do motorista Aílton Pereira de Oliveira, 52. Por quê? Como servidores éticos, estavam cumprindo seu dever: fiscalizando fazendas do agronegócio no município de Unaí. Multaram vários fazendeiros. A família Mânica, por exemplo, foi multada em mais de 3 milhões de reais. Motivo das multas: trabalhadores em situações análogas à escravidão, sobrevivendo em condições precárias e imersos no meio de uso exagerado de agrotóxicos. Por isso, os fiscais foram ameaçados de morte. O fiscal Nelson chegou a fazer um relatório alertando sobre as ameaças que vinha sofrendo.
Uma Tese de Doutorado, de 2007, em Psicologia Social, pela UNB, da Dra. Magali Costa Guimarães, sob o título “Só se eu arranjasse uma coluna de ferro pra aguentar mais...”, sobre o custo humano – o que acontece com os trabalhadores rurais - na colheita do feijão no município de Unaí, afirma:
“Também se ouviu, por parte dos trabalhadores, muitos comentários e queixas sobre o uso de produtos químicos na planta (denominados por eles como ‘veneno’), alguns relatam que o cheiro faz com que tenham dores de cabeça e mal-estar. Outros se queixam, pois acham que, muitas vezes, os produtores não esperam o prazo correto – período de carência – para colher (segundo alguns, de três dias), daí acabam passando mal na hora de processar o arranquio do feijão. O ‘veneno’ aparece, inclusive, como resposta do trabalhador à pergunta: “o que em seu trabalho não te faz sentir bem?” É o ‘veneno’, junto com outras características das condições de trabalho, da atividade e da organização, gerador de mal-estar no trabalho. Mas, mais do que mal-estar, os problemas de saúde e adoecimentos ligados ao uso indevido ou à exposição a agrotóxicos já foram identificados em diferentes estudos científicos que revelam ser uma ocorrência bastante comum no setor agrícola. Os estudos citados mostram que este uso e/ou exposição tem sido responsável por doenças respiratórias, no sistema reprodutivo – infertilidade, abortos, dentre outras – e diferentes formas de manifestação de câncer.”
Quem matou e quem mandou matar? Um arrojado processo de investigação das Polícias Federal e Civil apresentou um grande elenco de provas robustas, tais como: confissão dos jagunços que estão presos, pagamento de 45 mil reais em depósito bancário, nomes e identidades dos jagunços no livro do hotel, em Unaí, onde estavam hospedados os fiscais, comprovando que lá dormiram também os jagunços; depoimento do Ailton, motorista dos fiscais, que, após recobrar a consciência depois do massacre ainda encontrou forças para dirigir a camionete até a estrada asfaltada, mas morreu sendo levado para socorro em Brasília; uma série de telefonemas entre os jagunços e mandantes, antes e depois da chacina; um automóvel encontrado jogado dentro do lago Paranoá, em Brasília; relógio do Erastótenes encontrado dentro de uma fossa, na cidade de Formosa, GO etc.
No 3º aniversário da chacina, dia 28 de janeiro de 2007, no local onde o sangue dos fiscais foi derramado na terra mãe, Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) alertou: “Os fiscais são mártires da luta contra o Trabalho Escravo. A Comissão Pastoral da Terra diz que há mais de 25 mil pessoas ainda submetidas a situação análoga à escravidão no Brasil. Os fiscais foram vítimas doagronegócio, das monoculturas da soja, do feijão, da cana-de-açúcar, do eucalipto. Exigimos justiça já, em nome do Deus da vida.”
Marinês, viúva do fiscal Erastótenes, com a voz embargada, em meio a lágrimas, clamou por justiça:
“Ao saber que meu amado marido Erastótenes tinha sido assassinado junto com João Batista, Nelson e Ailton, uma espada de dor transpassou meu coração e continua transpassando, porque a justiça ainda não foi feita. A dor e a angústia continuam muito grandes diante da impunidade. Pelo amor de Deus, julguem logo os assassinos, jagunços e mandantes. Os fiscais foram assassinados durante seu trabalho, por trabalharem bem, por serem honestos, por não se corromperem e por cumprirem o seu dever. Exigimos justiça! Que mais este massacre não fique na impunidade.”
A família do Ailton passou necessidades econômicas após a morte dele. As viúvas dos fiscais fizeram “vaquinha” para ajudar dona Marlene, viúva do Ailton. As famílias dos fiscais foram postas em um tipo de prisão domiciliar. O medo de pessoas estranhas, a solidão, a tristeza, a angústia, uma espada de dor transpassando o coração, insônia, problemas de saúde, dificuldades, muitas lágrimas. Tudo isso passou a ser pão de todo dia para as famílias.
Dona Marlene diz que gostaria de se encontrar com os jagunços e com os supostos mandantes e perguntar a eles: “Por que vocês fizeram isso? Por qual motivo? Vocês não tiraram a vida apenas de quatro pais de família. Vocês transtornaram a vida de nossas famílias e de nossos amigos. Meu pai e minha mãe adoeceram e morreram. A mãe do Ailton também. Tenho certeza que também por causa disso.”
Dona Marlene acrescenta:
“Nas festividades - datas de Natal, Páscoa, aniversário dos filhos, na formatura dos filhos – sentimos muito a falta do Ailton. Isso dói muito. Meu filho Ariel, dia 26 de janeiro de 2004, completou 15 anos de idade. Nesse dia, o Ailton saiu de casa para levar os fiscais. Dois dias após, Ailton e os fiscais foram assassinados. Esse foi o presente de aniversário que meu filho recebeu. Por isso meu filho não gosta de falar sobre esse assunto. Hoje, graças a Deus, já formado em Economia, Ariel é um filho exemplar e honrado. Teve que fazer acompanhamento psicológico para superar muitos problemas. Fomos colocados numa espécie de prisão. Espero que também os mandantes sejam presos. Eles precisam experimentar a solidão da prisão. No julgamento não podem condenar só os jagunços, mas também os mandantes. Precisam condenar os pequenos e os grandes.”
Dona Marlene manda também um recado às pessoas de boa vontade:
“Marquem logo esse julgamento. Não tardem mais! Eu peço a todos que perderam algum parente assassinado que venham participar do julgamento. Fiquem ao nosso lado. Espero que todas as pessoas nos ajudem nesse julgamento. Participem. Quem passou pela mesma dificuldade, venha participar conosco do julgamento. Assim poderemos ter um pouco de justiça nesse nosso Brasil.”
Sobre o pai Ailton, o motorista dos fiscais, a filha Rayanne Pereira, já formada em Biologia, diz:
“Meu pai Ailton era um homem de um coração bondoso. Ele estava sempre disposto a ajudar as pessoas e a socorrer quem precisava. No sepultamento do meu pai, aqui em Prudente de Morais, havia gente demais, parecia que tinha morrido uma grande autoridade. É que o meu pai era querido por todos aqui na cidade. Homem trabalhador, Ailton trabalhou na Embrapa, na LBA, no DNER e, por último, no Ministério do Trabalho. Meu pai foi um herói, inclusive, porque, mesmo baleado, dirigiu vários quilômetros rumo ao hospital. Ao ser encontrado por policiais, ele repetia: “Socorre meus companheiros, os fiscais. Cuide deles. Eles não podem morrer.” Assim, meu pai pensava, primeiro, nos outros e não nele mesmo. O Ariel, meu irmão, e eu aprendemos muitos bons valores com nosso pai e com nossa querida mãe que teve força para erguer a cabeça e continuar cuidando de nós. Tudo que sou devo ao meu pai e a minha mãe que me ensinaram a seguir a lado certo da vida. Meu pai foi voluntário no asilo, ajudou a alfabetizar várias pessoas. Ele e minha mãe sempre ajudaram muito a comunidade aqui de Prudente de Morais.”
Morando na cidade de Unaí, Helba Soares da Silva, viúva do fiscal Nelson, ao tentar buscar explicações para tantas perguntas angustiantes, diz: “Eu já consegui perdoar os assassinos. Agora é eles e Deus. Eu me perguntei muito ‘Por que Deus colocou o Nelson no meu caminho para eu viver com ele somente quatro anos?’ Deus me deu a resposta: O Nelson precisaria de alguém em Unaí para continuar gritando por ele.” Nelson conheceu Helba, enquanto fiscalizava um Frigorífico de Unaí, onde Helba trabalhava. De fato, Elba nos últimos nove anos tem sido uma batalhadora incansável para que o julgamento da Chacina de Unaí aconteça e a justiça reine.
A juíza da 9ª Vara Federal de Belo Horizonte, Raquel Vasconcelos Alves de Lima, responsável pela ação penal da chacina de Unaí, prometeu marcar a data do julgamento em fevereiro próximo. Que seja o quanto antes e na capital de Minas, longe do poder do agronegócio de Unaí.
Enquanto reina a injustiça, a impunidade, o município de Unaí se transformou em campeão na produção de feijão, no uso de agrotóxico e no número de pessoas com câncer. Relatório do deputado Padre João (PT) demonstra que o número de pessoas com câncer, em Unaí, é 5 vezes maior do que a média mundial. A cada ano, 1260 pessoas contraem câncer na cidade. Aliás, um hospital do câncer já está sendo construído na cidade, pois ficará menos oneroso do que levar toda semana vários ônibus lotados de pessoas para se tratarem de câncer no Estado de São Paulo. A terra, as águas e a alimentação estão sendo contaminadas pelo uso indiscriminado de agrotóxico. Trabalho escravo e agrotóxicos matam!
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Chacina dos fiscais em Unaí: nove anos depois, justiça à vista? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU