Por: Cesar Sanson | 17 Janeiro 2013
Esse prédio (foto) é testemunha da história do branco e do índio no Brasil. O governo do Rio quer derrubá-lo para abrir mais um acesso ao Maracanã. Os índios criaram um centro cultural e querem uma universidade indígena.
A reportagem é de Ciro Barros e Jessica Mota e publicada pelo sítio Pública, 16-01-2013.
Os operários que trabalhavam nas obras do Maracanã se solidarizaram à causa dos índios e pularam o muro que separa o canteiro de obras para fazer quórum no movimento – homenageados pelos índios, José Antônio dos Santos Cezar, de 47 anos, e Francisco de Souza Batista, de 33, foram demitidos na segunda-feira.
As armas e a postura do Batalhão de Choque foram interpretadas pelos ocupantes da Aldeia como estratégia: os policiais estariam aguardando qualquer agressão mínima das pessoas que lá estavam para então justificar uma invasão. “Eu ouvi, isso eu posso te falar porque eu ouvi, eles falando: ‘Que eles taquem a primeira pedra’. Eles estavam esperando que a gente tacasse uma bolinha de papel para que se justificasse a entrada deles”, garante Paula Kossatz.
Ninguém viu cadastro nem assistente social, mas o chefe…
A única manifestação oficial do governo estadual sobre essa ação policial foi uma nota oficial emitida pela assessoria de comunicação da Emop (Empresa de Obras Públicas, vinculada ao governo do estado do Rio de Janeiro): “Representantes do Governo do Estado (Emop e Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos) estiveram no sábado (12/1), no local, para atualizar os contatos com as pessoas que estão no prédio de forma que, durante a semana, seja finalizado o cadastro social e haja remoção das pessoas e, logo que possível, a demolição do prédio.”
Procurada, a assessoria da Emop afirmou que a presença da polícia se deu para garantir a segurança dos funcionários da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos que realizavam o cadastro social e as negociações com as pessoas que ocupam a Aldeia Maracanã. “Não veio ninguém aqui com uniforme para fazer cadastro nenhum. Se houve esse cadastro, a gente não viu”, afirmam o cacique Carlos Tukano e os organizadores do Comitê Popular. O cacique, aliás, não estava na Aldeia desde o início do dia. Quando ele chegou, foi se inteirar da situação com o comandante da operação, o tenente Melo, do Batalhão de Choque, que disse que a polícia esperava uma ordem judicial para agir e não usaria de violência .
Depois de entrar para conversar com os índios, Tukano conta que saiu novamente do prédio e viu dois homens conversando com o tenente Melo. Um deles estava vestindo um colete daqueles típicos de obras da construção civil. E o outro era um senhor grisalho, que usava óculos e vestia um traje social esportivo, com roupas aparentemente caras. Ressabiado, Tukano se aproximou do grupo acompanhado de Paula Kossatz e tentou conversar com o senhor bem vestido. Mas ele se esquivou cercado por cinco policiais, perseguido por jornalistas e curiosos. Um dos jornalistas reconheceu o homem em fuga: Ícaro Melo, presidente da Emop, que aparece em um vídeo da polícia ao qual a Pública teve acesso, esquivando-se de Tukano.
“Sempre tentamos conversar em várias esferas, mas nunca conseguimos nada”, lamenta o cacique. “Em pleno 2013, sendo que o que a gente mais faz hoje em dia é se comunicar, trocar informação, como que o governo não se comunica, não dialoga, já chega com batalhão de choque?”, questiona Paula Kossatz.
Até agora, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, não deu uma declaração pública sobre os acontecimentos do fim de semana.
O que querem os índios
A ocupação indígena, batizada de Aldeia Maracanã, aconteceu no dia 20 de outubro de 2006, após quase trinta anos de abandono do prédio com a tranferência do Museu do Índio para o Botafogo em 1978. A intenção dos indíos é preservar a memória do local, daí a presença de representantes de 17 etnias diferentes (entre elas, Pataxó, Guajajara, Apurinã, Tukano, Guarani e Tupi-Guarani) no interior do prédio. Eles têm acesso a água e eletricidade fornecida pela Conab, e muitos frequentam as aulas do EJA (Educação de Jovens e Adultos).
“É um local histórico, onde muitos líderes indígenas chegaram para reivindicar seus direitos junto ao Estado. Essa é uma memória que o prédio carrega e que não queremos deixar morrer”, afirma Tukano, referindo-se ao antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), antecessor da Funai, que ali funcionava no início do século XX.
Carlos Tukano afirma que os índios também querem dar prosseguimento a um antigo projeto de Darcy Ribeiro de criar, no local, uma Universidade Indígena. “Queremos ter um ponto referencial, porque nós não temos nada como ponto referencial. É um espaço administrado por nós próprios. Foi uma forma que encontramos de retomar e manter a nossa história”, diz o cacique.
Tukano e outras lideranças indígenas estiveram com o presidente da OAB do Rio de Janeiro, Felipe Santa Cruz, e com Marcelo Chalréo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, e solicitaram a eles que intermediassem um contato entre os índios e o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Ambos aceitaram fazer a intermediação e fizeram uma carta de intenção para levar até o governador. A carta foi protocolada na última segunda-feira, às 18h. No entanto, a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro já afirmou, em nota enviada à Pública pela assessoria de imprensa, que vai recorrer da decisão da Justiça e tentar derrubar a liminar obtida pela Defensoria Pública no sábado.
Por ora, os índios seguem alertando corações e mentes para a destruição planejada no Maracanã. Em tupi-guarani a palavra significa “semelhante ao som do chocalho” e foi escolhida pelos índios para o local por causa do barulho dos pássaros que ali viviam.
O que diz a lei
Em 2001, por decreto municipal da cidade do Rio de Janeiro, todas as construções erguidas até 1937 passaram a ser protegidas. Para demoli-las ou alterá-las, a autorização passa pelo consentimento técnico do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (CMPC/RJ) – que publicou semana passada um parecer contrário à demolição.
Mas na última sexta-feira (11), o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, por despacho de duas linhas publicado no Diário Oficial, deu permissão de entrada ao governo do estado para demolição. Segundo o defensor público federal, Daniel Macedo, isso não quer dizer nada.
“A questão tem que ser resolvida no plano judicial”, esclarece Macedo. “Em uma medida política, de forma arbitrária e ilegal, a prefeitura passou por cima de um órgão técnico. O prefeito tem poder, sim, para revogar, não há nenhuma dúvida. Mas primeiro lugar: ele não revogou pela forma correta, ele deveria ter revogado o decreto anterior. E o que ele fez foi publicar um despacho passando por cima de uma decisão colegiada e técnica”.
A entrada do governo do estado só poderá se dar de fato caso haja uma ordem judicial expressa. Para isso, o governo deve agendar uma ação autônoma própria, que o permitiria agir. “Por ora os índios são mantidos lá, até que haja uma ordem judicial específica”, explica o defensor.
Por enquanto, a lei municipal favorece o prédio com o que o defensor público federal chama de “tombamento legal”. O tombamento do patrimônio por órgãos técnicos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) nunca aconteceu. De acordo com a assessoria do Instituto, o assunto foi analisado pelo IPHAN em 2006 e o processo de tombamento foi arquivado. Isso porque, segundo parecer do IPHAN Nacional, foi observada a “irrelevância nacional” e a má conservação do prédio. O patrimônio foi condenado pelo esquecimento.
O tombamento municipal está em andamento. Órgãos como o CMPC e o INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural) já reconheceram a importância histórica e cultural do prédio. Para Macedo, “a coisa não andou dentro do Iphan ou outro órgão técnico por uma questão política”. Ele explica que o correto seria avaliar o valor do prédio de forma técnica. “Se o tombamento não foi avante, foi por decisão obscura. A questão foi solucionada em um plano político. Se fosse pelo plano correto, que é o plano técnico, o prédio já teria sido tombado. Isso foi para atender interesses escusos do capitalismo”, acredita.
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