10 Dezembro 2012
A convivialidade como conceito foi posta em circulação por Ivan Illich (1926-2002), um dos grandes pensadores proféticos do século XX que viveu tempos em Petrópolis. Nascido em Viena, trabalhou com os latinos nos EUA, mais tarde no México. Tornou-se famoso por questionar o paradigma da medicina e da escola convencional. Através da convivialidade tentou responder a duas crises: a do processo industrialista e a da ecologia.
O processo industrialista fez com que o domínio do ser humano sobre o instrumento se tornasse o domínio do instrumento sobre o ser humano. Criado para substituir o escravo, o instrumento tecnológico acabou por escravizar o ser humano ao visar a produção e o consumo em massa. Fez surgir uma sociedade cheia de aparatos, mas sem alma. A produção industrial vigente não se combina com a fantasia e a criatividade dos trabalhadores. Ela não os ama. Deles só quer utilizar a força de trabalho, muscular ou intelectual. Quando incentiva a criatividade, é em vista da qualidade total do produto para beneficiar mais ainda a empresa e menos os trabalhadores.
Entretanto, muitos empresários tomaram consciência desta distorção e perceberam o grau de desumanização da sociedade industrial. Começam a colocar na agenda da empresa sua responsabilidade socioambiental, a importância da subjetividade e da espiritualidade, as relações de cooperação entre todos, empresários e trabalhadores ao invés da pura concorrência e acumulação.
Que se entende por convivialidade? Por convivialidade (não consta no Aurélio) se entende a capacidade de fazer conviver as dimensões de produção e de cuidado; de efetividade e de compaixão; de modelagem dos produtos e de criatividade; de liberdade e de fantasia; de equilíbrio multimensional e de complexidade social — tudo para reforçar o sentido de pertença universal contra o egoismo.
O valor técnico da produção material deve caminhar junto com o valor ético da produção social e espiritual. Depois de termos construído a economia dos bens materiais importa desenvolver, urgentemente, a economia dos bens humanos. O grande capital, infinito e inesgotável, não é porventura o ser humano, o capital espiritual?
Os valores humanos do amor, da sensibilidade, do cuidado, da comensalidade e da veneração podem impor limites à voracidade do poder-dominação e à exploração-produção-acumulação.
A convivialidade pretende também ser uma resposta adequada à crise ecológica, produzida pelo processo industrialista dos últimos quatro séculos. O processo de depredação dos bens e serviços naturais pode provocar uma dramática devastação do sistema Terra e de todas as organizações que o gerenciam, um real crush planetário.
Esse cenário não é improvável. Ele ocorreu antes, com a derrocada da bolsa de Wall Street em 1929. Naquela ocasião era apenas uma crise parcial do sistema capitalista e não tocava nos limites físicos do planeta. Agora a crise é do sistema global.
Seguramente, num contexto de ruptura generalizada a primeira reação do sistema imperante será aumentar o controle planetário e usar de violência massiva para assegurar a manutenção da ordem vigente, econômica, financeira e militar. Tal diligência, em vez de aliviar a crise, a radicalizará por causa do crescimento do desemprego tecnológico e da ineficácia dos ajustes fiscais É aquilo a que estamos assistindo na crise dos países centrais.
Alguns têm aventado a hipótese de uma catástrofe de dimensões apocalípticas. Mas isso não é fatal. Importa deixar em aberto a chance de um uso convivial dos instrumentos tecnológicos a serviço da preservação da vida, do bem viver da humanidade e da salvaguarda de nossa civilização.
Esse novo patamar possivelmente conhecerá uma sexta-feira santa sinistra, que precipitará no abismo a ditadura do modo-de-ser-trabalho-produção-material para permitir um domingo de ressurreição: a reconstrução da sociedade mundial sobre a base do cuidado e da real sustentabilidade.
O primeiro parágrafo do novo pacto social entre os povos será o sagrado princípio da autolimitação e da justa medida; em seguida, o cuidado essencial por tudo o que existe e vive, a gentileza para com os humanos e a veneração para com a Mãe Terra.
Então, o ser humano terá aprendido a usar os instrumentos tecnológicos como meios e não como fins; terá aprendido a conviver com todas as coisas sabendo tratá-las com reverência e respeito. Não seria a verdadeira inauguração do novo milênio?
Veja também: Convivialidade e decrescimento. Artigo de Serge Latouche. Cadernos IHU ideias, no. 166
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Para não perecer: a convivialidade necessária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU