27 Agosto 2012
“Um dos grandes problemas religiosos do próximo século será o da relação do indivíduo com a instituição que lhe propicia uma identidade religiosa”, constata o sociólogo e especialista em antropologia da religião.
“Um dos grandes problemas religiosos do próximo século será o da relação do indivíduo com a instituição que lhe propicia uma identidade religiosa”, aponta Pierre Sanchis, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Dizer-se católico ou umbandista, até proclamar-se evangélico, segundo ele, não será mais unívoco. “No caso de uma identidade tradicional, a situação está clara: continua-se aderindo a uma identidade, mas escolhe-se o conteúdo desta adesão”. E mesmo no caso de uma conversão, na medida em que o tempo vai passando, a iniciativa individual na bricolagem de uma cosmovisão de fé e de um mapa de vida tende a se alargar. “Neste sentido, as pesquisas deverão afinar as suas perspectivas”.
Para Pierre Sanchis, são múltiplas as pesquisas que detectam o fenômeno de múltipla pertença quando se trata de identidade religiosa declinada a partir de uma instituição, muito além dos 15.379 casos de “declaração de múltipla religiosidade” mencionados no Censo 2010. “Estas ‘declarações’ terão sido espontâneas? Induzidas? A experiência parece provar que uma pergunta explícita é necessária. Sem dúvida, várias perguntas são possíveis e seriam reveladoras”. E continua: “Lembro-me de uma, que deu sempre amplos resultados. Depois da pergunta clássica sobre ‘Qual é a sua religião?’, aquela outra: ‘Tem outra religião que você diria sua também?’ Afinal, um censo precioso, porque retrato de nossa realidade e incitação a modular este retrato. Em várias dimensões”.
Pierre Sanchis é doutor em sociologia pela Universidade de Paris e especialista em antropologia da religião. É professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, pesquisador do Instituto Superior de Estudos da Religião - ISER e membro do corpo editorial da revista “Religião & Sociedade”. frase
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que maneira o senhor descreveria as principais características do mapa religioso brasileiro que emergem do Censo 2010?
Pierre Sanchis – Impressionou-me a continuidade teimosamente sistemática da mesma transformação: um crescimento do número daqueles que acham agora possível declararem-se não católicos (provavelmente as declarações de catolicismo de outros tempos eram, em muitos casos, mais declarações de identidade do que de convicções); um reconhecimento crescente de nova identidade religiosa, globalmente dita “evangélica”, como numa afirmação de autenticidade (“desta vez, sim!”) da adesão à mensagem de que fala o nome; e o alargamento – embora a um ritmo decrescente – do grupo multivariado dos “sem religião”.
Esta abertura do leque denominacional, detalhada muito além do que falei nas tabelas analíticas, impõe o reconhecimento do fenômeno fundamental de transformação do campo religioso no Brasil. Advento, desta vez inegável, da pluralidade religiosa, melhor ainda, do pluralismo, quer dizer, de uma pluralidade aberta, reconhecida, legítima, e em função da qual as relações sociais entre os grupos religiosos deverão doravante se construir.
Não se impõe mais ao imaginário – político, cidadão, devocional e ético – a equiparação das identidades católica e brasileira. Num prazo mais ou menos longo, essa mudança implica transformações nas visões do mundo, nas convicções, nas atitudes. Por isso a categoria que domina a perspectiva é a da transformação. É das religiões tradicionais, que se confundiam com um quadro, individual e social, recebido (catolicismo, protestantismo importado junto com determinados grupos étnicos, até modalidades mais etnicamente fechadas de religiões-afro), que as pessoas tendem a se afastar. Para escolher autonomamente outra. Ou a mesma, mas numa redescoberta pessoal, cujos passos as dimensões de um censo dificilmente detectariam. Diria, então: pluralismo, transformação, emergência do indivíduo e de suas escolhas.
A notar um último traço: este processo está vigente de modo diversificado nas várias regiões do Brasil. No Nordeste (estendido às Minas) e no Sul, continua mais presente a tradição. A novidade, mais no Brasil Novo.
IHU On-Line – Por que, em seu ponto de vista, a redução católica, que ocorreu em todas as regiões do país, teve queda mais expressiva registrada no Norte, de 71,3% para 60,6%?
Pierre Sanchis – Precisamente!... Brasil Novo: o Norte, e especialmente o Pará profundo, os antigos territórios, os dois Mato Grosso. Populações recém-imigradas, oriundas das terras típicas da tradição: Nordeste, Sul. Cortadas desta tradição, não encontram nas novas terras a implantação da estrutura paroquial clássica, que amparava sua formação, sua vivência, suas expectativas. Vida profissional também em outra escala e em perspectivas dinâmicas de transformação – econômica e social. Neste ambiente novo, são através de outras “tribos”, outras redes, outros ajuntamentos comunitários, que o recém-afirmado “indivíduo” vai se reformulando como pessoa. Pesquisadores são de fato frequentemente surpreendidos pela fermentação da criatividade religiosa nessas regiões. Não necessariamente, aliás, dentro de uma perspectiva afirmativa. Já que é em determinados espaços do Amazonas, do Pará, de Rondônia e do Mato Grosso que, depois do Rio e do seu cinto metropolitano, o grupo dos “sem religião” encontra sua maior concentração.
IHU On-Line – Como avalia o número dos “sem religião”, de acordo com os dados divulgados no último censo?
Pierre Sanchis – Um crescimento significativo, embora menos acentuado do que parecia previsível, sobretudo levando em conta uma idade mediana de 28 anos e uma dominante de jovens adultos (18 a 30 anos). O senso comum, no entanto, pode achar-se surpreendido pela repartição em termos de cultura e também de renda e, correlativamente, de raça. Imaginar-se-ia facilmente a não religião tendo mais afinidade com a modernidade de níveis culturais e econômicos elevados. Ora, os sem instrução são ligeiramente mais representados entre os sem religião do que no total da população, enquanto a curva evolui para uma sub-representação no grupo dos possuidores de instrução superior, completa ou incompleta. Nitidamente mais negros e pardos e menos brancos de que na média nacional.
Se lembrarmos, por outro lado, que assim como o sugerem as limitadas declarações de ateísmo e agnosticismo do presente censo e o afirmam os resultados de numerosas pesquisas, a declaração de não religião não implica necessariamente a ausência de uma dimensão de religiosidade, mas de preferência a não adesão a qualquer instituição religiosa. Podemos fazer a hipótese de que esta categoria recobra em boa parte uma “nebulosa místico-esotérica” próxima daquilo que costumamos chamar de nova era. E que situamos espontaneamente em certa elite cultural. Uma das lições deste censo parece-me então trazer à tona a necessidade de cobrir esta falha, detectando e analisando as especificidades de uma nova era popular.
IHU On-Line – Em entrevista anterior o senhor falava da “larga malha do catolicismo”. Ela aparece nos dados do Censo 2010? Como ela pode ser descrita?
Pierre Sanchis – “Católica Apostólica Romana”, “Católica Apostólica Brasileira”, “Católica Ortodoxa”, três são as modalidades que o censo distingue na Católica. É evidente que estamos longe daquela “larga malha” a que faço alusão. E que o censo não estava destinado a revelar. Outras pesquisas o fazem, a partir de autorreconhecimentos explícitos ou de análises mais sutis de conteúdo. Costuma-se dizer que o gênio protestante se manifesta pelo reconhecimento de diferenças que levam à cisão e à multiplicidade denominacional, e que o gênio católico tende a articular as diferenças na complexidade de uma estrutura hierárquica que, dialeticamente, obstaculiza e promove o diálogo. Pense-se, por exemplo, no Brasil, à convivência, até numa estrutura paroquial, que não esgota o espaço da Católica, das comunidades de base com o movimento carismático.
IHU On-Line – Como podemos definir o pluralismo religioso? De que maneira ele aparece nos dados do Censo 2010? Quais são as suas principais características, possibilidades e cenários futuros?
Pierre Sanchis – Também falei acima em pluralismo. Que diz mais do que pluralidade, simples percepção da existência de uma dimensão plural. Um novo estado do mapa religioso e de suas relações internas – e externas, que implica uma atitude de abertura, de diálogo, de predisposição a certa relativização em função do encontro do outro. Se for assim, é evidente que as instituições, em maior ou menor grau, conforme a sua autodefinição como mediadoras de Sagrado, terão dificuldade em assimilar esta nova situação. Uma dialética tenderá a se instaurar entre afirmações de estrutura identitária e reformulações do estatuto da verdade em modernidade. “A verdade não se impõe senão por si mesma”, chegou a dizer João Paulo II, abrindo assim para sua Igreja uma nova época.
IHU On-Line – O que o censo revela em relação à postura dos jovens diante da religião? Qual é a tendência religiosa a ser seguida pelas novas gerações?
Pierre Sanchis – O grupo que, pela idade mediana dos seus participantes (26 anos) seria o mais afim à adesão dos jovens, seria o da não religião. De fato, várias pesquisas sobre a juventude distinguem entre os jovens uma tendência, às vezes intensa, ao exercício de uma religiosidade de cunho bastante individual ou de pequenos grupos. Este universo da não religião, complexo e multivariado, deverá ser estudado com mais atenção se quisermos mapear os caminhos desta dimensão no futuro próximo. Verdade, em todo caso, é que, ao contrário, o grupo católico é nitidamente menos jovem (idade mediana: 30 anos), o grupo evangélico (e não só “de missão”) parece tender a leve envelhecimento, provavelmente sinal, no primeiro caso, do caráter reprodutor do recrutamento, no segundo, dos anos que já vão passando sobre o período das primeiras conversões massivas. Por sua vez, o envelhecimento dos espíritas (a idade mediana mais avançada: 32 anos) parece opor-se em significação ao crescimento geral do espiritismo.
Mudança cultural
Enfim, não se poderia falar da juventude religiosa sem assinalar outra mudança, a que este censo não podia se referir. Uma mudança cultural de clima na expressão musical, nas assembleias católicas e, muito mais, nos grupos jovens evangélicos. Louvor, gospel, grupos musicais de oração, padres cantores: a modernidade entrou pela música, pretendendo transformar ou confirmar as atitudes. A julgar pelo movimento comercial dos livros e dos CDs, é bem possível que os resultados de frequência deste censo não seriam os mesmos sem este misticismo sonoro. Resta a medir as transformações que ele pode induzir.
IHU On-Line – Qual a peculiaridade dos evangélicos pentecostais em relação aos evangélicos de missão? O que levou, de acordo com dados do último censo, o primeiro a crescer e o segundo a decrescer?
Pierre Sanchis – Os evangélicos de missão, em outros termos, mas analogamente ao catolicismo, representam uma tradição. Em muitos casos até étnica. Ora, vimos que é da tradição, do dado, da identidade recebida, que o moderno “indivíduo” tende a se liberar. Ou pelo menos a reencontrar suas grandes linhas para recriá-las numa versão sua. Por outro lado, o neopentecostalismo parece em muitos casos colar à realidade quotidiana, tanto dos jovens (já falamos da música) quanto das camadas populares. Por sua inserção direta e agressiva na cosmovisão das religiões afro, muito presentes no imaginário popular (exorcismos); por seu cultivo do milagre – até ritual – que atende às preocupações de saúde; por sua insistência na compensação econômica (teologia da prosperidade), que permite até a constituição de uma versão empresarial de classe média, abrindo assim estas igrejas a camadas sociais que não lhes pareciam afins.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Pierre Sanchis – Dois pontos. O primeiro é sobre um necessário esclarecimento pelos pesquisadores analistas do valor das categorias denominacionais presentes neste censo. Um dos grandes problemas religiosos do próximo século será o da relação do indivíduo com a instituição que lhe propicia uma identidade religiosa. Dizer-se católico ou umbandista, até proclamar-se evangélico, não será mais unívoco. No caso de uma identidade tradicional, a situação está clara: continua-se aderindo a uma identidade, mas escolhe-se o conteúdo desta adesão. E mesmo no caso de uma conversão, na medida em que o tempo vai passando, a iniciativa individual na bricolagem de uma cosmovisão de fé e de um mapa de vida tende a se alargar. Nesse sentido, as pesquisas deverão afinar as suas perspectivas.
O segundo ponto é relativo a uma dimensão bem brasileira, que, para ser breve aqui, continuaremos a chamar de sincretismo. São múltiplas as pesquisas que detectam o fenômeno de múltipla pertença quando se trata de identidade religiosa declinada a partir de uma instituição, muito além dos 15.379 casos de “declaração de múltipla religiosidade” mencionados no censo. Estas “declarações” terão sido espontâneas? Induzidas? A experiência parece provar que uma pergunta explícita é necessária. Sem dúvida, várias perguntas são possíveis e seriam reveladoras. Lembro-me de uma, que deu sempre amplos resultados. Depois da pergunta clássica sobre “Qual é a sua religião?”, vinha aquela outra: “Tem outra religião que você diria sua também?” Afinal, um censo precioso, porque retrato de nossa realidade e incitação a modular este retrato. Em várias dimensões.
Nota: a ilustração acima é de http://bit.ly/NvLfvX e divulgada pelo Google.
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Pluralismo, transformação, emergência do indivíduo e de suas escolhas. Entrevista especial com Pierre Sanchis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU