17 Abril 2012
“Enquanto o capitalismo houver, Marx será uma referência importante para a análise da economia”, assegura o pesquisador.
Confira a entrevista.
Ao revistar as teorias marxistas para compreender a causa e as consequências da crise financeira atual, Alex Wilhans Antonio Palludeto constata que é “difícil acreditar que o sistema capitalista está para acabar”. Autor da dissertação de mestrado intitulada Crise e capitalismo contemporâneo: uma revisão das interpretações marxistas da grande recessão (2007-2009), o pesquisador enfatiza que a crise financeira iniciada em 2007, como as demais crises do capital, “será resolvida nos marcos do capitalismo”. Em outras palavras, esclarece, “tudo caminha para que a valorização da riqueza privada continue subordinando as atividades econômicas”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Palludeto discorre sobre duas correntes teóricas do marxismo contemporâneo e explica como elas interpretam as turbulências do mercado financeiro. “De um lado, encontram-se aqueles que atribuem a crise à dinâmica de uma fase particular do sistema capitalista, ao que ficou tradicionalmente conhecido na literatura especializada como neoliberalismo. De outro, há aqueles que creditam a crise à dinâmica do sistema capitalista em geral – e não de uma etapa específica de seu desenvolvimento”, assinala.
Em sua avaliação, as duas correntes teóricas apontam aspectos relevantes para a compreensão do capitalismo contemporâneo e da crise atual. Entretanto, enfatiza, “o declínio da taxa de lucro é a hipótese que mais se adequa aos fatos. Da mesma forma, não me parece que a crise recente seja resultado da dinâmica de uma fase particular do sistema capitalista, isto é, do neoliberalismo”.
Alex Wilhans Antonio Palludeto é graduado em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, e mestre em Economia pela mesma instituição. Atualmente é doutorando em Teoria Econômica.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são hoje as correntes teóricas mais importantes do marxismo contemporâneo e como elas interpretam a causa e as consequências da crise financeira atual?
Alex Wilhans Antonio Palludeto – Parece-me possível identificar a existência de duas amplas abordagens entre os estudiosos marxistas que se dedicam ao exame da crise recente.
De um lado, encontram-se aqueles que atribuem a crise à dinâmica de uma fase particular do sistema capitalista, ao que ficou tradicionalmente conhecido na literatura especializada como neoliberalismo. De outro, há aqueles que creditam a crise à dinâmica do sistema capitalista em geral – e não de uma etapa específica de seu desenvolvimento.
De acordo com o primeiro grupo, as décadas de 1970-1980 marcam o início de um novo estágio da economia capitalista mundial, o neoliberalismo, e são os elementos constitutivos desta fase que conduziram à Grande Recessão. Entre os autores que adotam essa perspectiva, Gérard Dúmenil, Dominique Lévy, Alfredo Saad-Filho, David Kotz, John Foster, Fred Magdoff e David Harvey podem ser considerados alguns de seus principais representantes. Conforme procurei demonstrar em meu trabalho, os estudos que compõem essa vertente argumentam que as últimas décadas assistiram ao fortalecimento da classe capitalista, particularmente aquela fração que se dedica às atividades financeiras cujo poder foi supostamente restringido durante o imediato pós-guerra. Como resultado dessa mudança da relação de poder entre as classes capitalista e trabalhadora, forjou-se um arranjo institucional que provocou um aumento na desigualdade de renda, a elevação da taxa de lucro e a exacerbação da especulação financeira e do endividamento – sobretudo da classe trabalhadora, pressionada pela estagnação dos salários nas últimas décadas. A crise tem origem nesse arranjo, na estrutura institucional neoliberal que, ao combinar uma maior desigualdade de renda a um setor financeiro desregulado, propenso a atividades de maiores riscos, levou a economia a uma trajetória financeiramente insustentável.
O segundo grupo, por sua vez, para o qual a crise é uma manifestação do modo de funcionamento geral do capitalismo, aponta para os movimentos da taxa de lucro e a acumulação de capital como fatores determinantes da Grande Recessão. Entre seus principais expoentes cabe citar Andrew Kliman, Alan Freeman, Guglielmo Carchedi, Nick Potts, Chris Harman, Robert Brenner e Anwar Shaikh. A tese básica, ao contrário da abordagem anterior, é de que a crise atual decorre de uma queda da taxa de lucro – que para muitos, por sua vez, é fruto da substituição de trabalhadores por máquinas. Para esses autores, o declínio da taxa de lucro inibiu o investimento e estimulou as aplicações financeiras, uma vez que a combinação de liquidez e rentabilidade que elas ofereciam tornou-se, então, bastante atraente aos olhos dos detentores da riqueza. A especulação e o subsequente colapso da pirâmide financeira que se erigiu no período foram, assim, apenas os passos seguintes em direção à crise.
Discordância teórica
A implicação dessa discordância teórica me parece bastante evidente. Os primeiros, ao conceberem a Grande Recessão como resultado da dinâmica de uma etapa específica do capitalismo, sugerem a possibilidade de que uma estrutura institucional diversa poderia evitar ou mitigar a crise. Vale dizer que uma reforma adequada permitiria um capitalismo mais estável e, em certa medida, imune à crise. Os segundos, por sua vez, ao estabelecerem como causa última da Grande Recessão o que consideram ser uma tendência imanente ao sistema capitalista em geral – a tendência à queda da taxa de lucro – são levados a argumentar pela inevitabilidade da crise.
IHU On-Line – Após estudar duas correntes marxistas que atribuem causas diferenciadas para a crise financeira, qual delas explica melhor o momento atual que as principais economias do mundo estão enfrentando?
Alex Wilhans Antonio Palludeto – Creio que as duas vertentes teóricas que procurei delinear apontam aspectos relevantes para a compreensão do capitalismo contemporâneo e da crise recente. Com efeito, não é possível negar que a estrutura de classes, a distribuição da renda e a configuração atual do setor financeiro são importantes para a dinâmica econômica atual. Da mesma forma, os movimentos da taxa de lucro e da acumulação de capital não podem ser deixados de lado em qualquer análise que se pretenda séria.
Se me for permitido destacar apenas um fator, no entanto, o declínio da taxa de lucro é, a meu ver, a hipótese que mais se adequa aos fatos. Da mesma forma, não me parece que a crise recente seja resultado da dinâmica de uma fase particular do sistema capitalista, isto é, do neoliberalismo – ao menos não nos termos em que os autores que analisei utilizam o conceito.
Na verdade, a Grande Recessão é uma típica crise capitalista, manifestação da própria natureza do modo capitalista de organização da produção. Os argumentos do segundo agrupamento acima mencionado e as ilustrações empíricas que os sustentam me parecem, assim, mais convincentes para o estudo do momento atual. Esta crise, como qualquer crise tipicamente capitalista, é fruto, em última instância, da incapacidade da riqueza privada de se valorizar a um ritmo considerado satisfatório pelos capitalistas, e não resultado de um arranjo institucional de corte neoliberal.
IHU On-Line – As contradições que Marx evidenciava no capitalismo do século XIX se apresentam nos dias de hoje? Como?
Alex Wilhans Antonio Palludeto – Certamente. Embora tenha escrito em um contexto histórico muito particular, no qual o capitalismo ainda se restringia a determinadas porções do globo – e, mesmo nelas, sua operação se limitava a certas frações da reprodução material da sociedade –, Marx foi capaz de desvendar alguns traços constitutivos desse sistema. A mercantilização crescente da sociedade, o lucro como raison d’être da produção e o conflito entre capital e trabalho são algumas das características do capitalismo identificadas por Marx ainda mais visíveis no mundo atual. O arcabouço político-institucional que dá forma concreta a esses elementos é, naturalmente, diverso daquele da segunda metade do século XIX. Apenas para mencionar algumas dessas mudanças, em contraste com aquele período: o Estado tem uma importante participação na economia como regulador e/ou provedor direto de bens e serviços; a sociedade por ações se tornou uma das principais formas de organização empresarial e, com ela, a bolsa de valores converteu-se no palco privilegiado da concorrência intercapitalista; os sindicatos, ainda que enfraquecidos nos últimos anos, são mais numerosos e atuantes; as firmas se tornaram maiores e o oligopólio comum na maior parte das atividades econômicas. Enfim, de lá para cá, ocorreram inúmeras transformações, mas os aspectos básicos do sistema capitalista, suas contradições fundamentais, não se alteraram – ainda que a forma pela qual elas se manifestam certamente se modificou. Assim, enquanto o capitalismo houver, Marx será uma referência importante para a análise da economia.
IHU On-Line – Você concorda que o capitalismo está chegando ao fim, ou esta é apenas mais uma de suas crises? A partir das teorias de Marx, quais os rumos que podemos imaginar para o mundo capitalista, a partir da crise financeira internacional?
Alex Wilhans Antonio Palludeto – Observando a conjuntura atual, parece difícil acreditar que o sistema capitalista está para acabar. Esta crise, como tantas outras, será “resolvida” nos marcos do capitalismo. Em outras palavras, tudo caminha para que a valorização da riqueza privada continue subordinando as atividades econômicas.
Tentar predizer o que, de fato, ocorrerá é, ao mesmo tempo, tentador e perigoso. Ademais, a experiência demonstra que, pelo menos em relação à economia, tal tarefa geralmente está fadada ao fracasso. No entanto, acho possível que, com cautela, se possam identificar alguns possíveis desdobramentos gerais da crise recente a partir da teoria marxista. Em primeiro lugar, a concentração do mercado deverá aumentar sobremaneira, estimulada pela onda de fusões e aquisições que a crise enseja. De certo modo, esse processo já teve início. Particularmente no setor financeiro norte-americano, as instituições sobreviv
entes aproveitaram a oportunidade para adquirir aquelas à beira da bancarrota e, assim, fortalecer suas próprias posições. Em segundo lugar, uma vez que os Estados têm atuado na tentativa de conter os prejuízos do setor privado e evitar que as falências se multipliquem – socializando as perdas –, é bastante provável que as economias dos países centrais passem por um longo período de estagnação. Ao se impedir que empresas quebrem, evita-se que um dos principais mecanismos “autorreguladores” do capitalismo identificado por Marx opere: a desvalorização do capital.
Com a crise, empresas são fechadas, o capital se desvaloriza, a taxa de lucro se recupera para os capitalistas que restaram e, portanto, se cria um novo ambiente propício ao crescimento. Cabe destacar que esse não é um processo harmonioso ou equilibrado, mas, enfim, permite que se inicie um novo ciclo econômico ascendente. Contudo, na crise atual, ao se evitar que o capital se desvalorize em maior volume, o processo de “restauração” ao qual fiz menção é interrompido e a estagnação se torna o caminho mais provável. Por fim, também é possível que a classe trabalhadora seja ainda mais prejudicada. Com a elevação das taxas de desemprego em virtude da crise – e da estagnação que se espera ocorrer –, cria-se um novo contingente de mão de obra disponível, fato que pressiona os salários para baixo.
IHU On-Line – A crise do capitalismo também representa a crise da esquerda?
Alex Wilhans Antonio Palludeto – Não. A crise atual, na verdade, revela a crise da esquerda, mas não é sua causa. Desde as décadas de 1970-1980, os pensadores e ativistas de esquerda vêm perdendo terreno em todas as frentes: na academia, na cultura, na política, etc. O desmantelamento do bloco soviético e a consolidação do capitalismo em nível mundial na passagem para os anos 1990 reforçaram ainda mais esse movimento generalizado de perda de influência. Com o aparente triunfo do sistema capitalista, restou pouco espaço para aqueles que defendiam sistemas socioeconômicos alternativos. A difusão da ideia de que, com o capitalismo e a democracia liberal, o “fim da história” havia chegado à humanidade (veja-se o livro de 1992 de Fukuyama: The end of history and the last man) é sintomático do enorme enfraquecimento da esquerda nas últimas décadas.
Desestruturação da esquerda
A crise recente põe em evidência esse processo de longa data. A falta de organização dos movimentos de contestação do regime atual, a ausência da definição de objetivos claros e as propostas de transformações socioeconômicas consistentes nos dias de hoje apenas revelam a desestruturação pela qual passou a esquerda. O melhor exemplo disso são, a meu ver, as diversas manifestações recentes inspiradas nos movimentos Occupy Wall Street, dos Estados Unidos, e 15M, da Espanha. A despeito da mobilização inicial de milhares de pessoas, a falta de uma organização que fosse capaz de direcionar o movimento, estabelecer reivindicações claras e, assim, torná-lo efetivo na implementação de mudanças na sociedade – aliado, naturalmente, à forte repressão empreendida por aqueles com compõem o status quo – fez com que em poucos meses as manifestações perdessem fôlego.
Uma crise profunda como a que estamos presenciando sempre abre as portas para que transformações radicais ocorram. Ao demonstrar as fragilidades do sistema atual e possibilitar a união e o consequente fortalecimento daqueles que verdadeiramente sofrem com a crise – e, a classe trabalhadora –, a Grande Recessão se apresentou como uma dessas oportunidades históricas de mudança. No entanto, para aproveitá-la a esquerda precisaria de muito mais vigor do que atualmente apresenta.
IHU On-Line – Por que a economia é uma ciência que, de modo geral, desconsidera as questões sociais?
Alex Wilhans Antonio Palludeto – Não creio que a economia, como ciência, seja particularmente alheia a considerações de ordem social. A impressão que tenho é de que aquilo que ocorreu com ela aconteceu também à ciência política, à sociologia e todas as demais ciências humanas – e naturais. Nos últimos 150 anos, a produção do conhecimento, nos seus mais variados ramos, atravessou um processo de compartimentalização. O trânsito entre as ciências, e até mesmo entre áreas particulares de uma mesma ciência, tornou-se cada vez menos comum. A economia não foi poupada desse movimento. É verdade que esse modo de “fazer ciência” permitiu avanços importantes na nossa compreensão do mundo; no entanto, a ausência de uma visão de conjunto, a incapacidade de pensar o objeto como um todo, trouxe também, a meu ver, diversos prejuízos – sobretudo para as ciências humanas, nas quais o recorte da realidade que se pretende analisar sempre é, de certo modo, arbitrário.
Acredito que esse seja o principal fator que explique a crescente falta de comunicação e intercâmbio entre economistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos... No caso da economia, a especialização certamente trouxe benefícios, mas parece-me cada dia mais necessário um programa de pesquisa interdisciplinar, de forma a impedir a fragmentação do conhecimento e, em última instância, o próprio esvaziamento do significado daquilo que chamamos de Ciência Econômica. É preciso relembrar aos economistas que por trás dos números e modelos há relações humanas, sociais, que transcendem a esfera propriamente econômica.
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A crise capitalista de 2007-2009. As interpretações marxistas. Entrevista especial com Alex Wilhans - Instituto Humanitas Unisinos - IHU