Por: André | 04 Abril 2012
Ele está há anos sendo vigiado. Os livros de José Antonio Pagola, que vendem como rosquinhas, sofrem todo tipo de censura eclesiástica, mas ele não sente “ressentimento”. Pelo contrário, os conflitos o ajudam a viver sua fé de uma forma “mais desnuda”. Sempre livre, sofre com a atual situação de involução eclesial e o “abandono do Concílio”. Mas, sempre positivo, acredita em uma Igreja “mais indignada” e “mais samaritana”, ao mesmo tempo que se alegra com o processo de paz que se está vivendo em Euskadi e pede que não se desgastem “palavras tão singelas e evangélicas como perdão e reconciliação”.
A entrevista é de José Manuel Vidal e está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 01-04-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Depois de tantos anos de obscuridade e sofrimento, sente que a paz em Euskadi veio para ficar?
Sim. Agora precisamos consolidá-la dia após dia. Sofremos tanto que não podemos voltar a cair novamente num horror parecido. Frustramo-nos tantas vezes, que não podemos senão trabalhar com todas as nossas forças para conseguir uma convivência digna, mais saudável, mais dialógica.
Reconciliação e perdão têm que andar de mãos dadas para conseguir a paz definitiva?
Tenho a sensação de que estamos desgastando e, inclusive, manipulando estas palavras tão singelas e tão evangélicas. As declarações públicas honestas são necessárias, mas eu creio mais nos pequenos passos de distensão e aproximação que se dão dia a dia nos ajuntamentos, nos bares e em diferentes ambientes dos povos... Creio também na tarefa educadora e conciliadora de organismos como o Baketik, do santuário franciscano de Aránzazu, ou nessa dezena de encontros entre membros do ETA e suas vítimas, realizados pela Secretaria Geral de Instituições Penitenciárias na prisão de Nanclares de la Oca. É necessário criar um clima no qual, deixando de lado ideologias fanáticas e partidarismos viscerais, aprendamos a sentir muito mais o sofrimento alheio. Não superaremos o receio mútuo se não nos sentirmos mais unidos na busca de um futuro mais digno e humano para todos. Eu creio que nesses milhares de pessoas boas e sensatas, que nos podem arrastar para uma convivência reconciliada.
Há resistências à reconciliação também dentro da Igreja?
Não ouço ninguém dizer que seja contra a reconciliação, mas sempre houve entre nós crentes de diversas tendências políticas nas quais a própria ideologia tem mais força que a fé para configurar seu comportamento prático.
A Igreja basca esteve perpassada pela violência, que emperrou seu excelente trabalho pastoral?
Creio que a atividade do ETA prejudicou gravemente e durante longos anos a convivência deste povo, a imagem real do País Basco, o desenvolvimento econômico, a informação veraz, a tarefa educativa e também a ação da Igreja. Eu pude conhecer de perto o esforço que tivemos que fazer para impulsionar a renovação conciliar, sem nos asfixiar com o clima de assassinatos, Estados de exceção, sequestros desumanos, polêmicas alimentadas por interesses alheios à verdade...
A involução eclesiástica, ao menos na Espanha, está colocando na surdina o Vaticano II?
Sim. Na minha opinião, o abandono do Concílio é um dos fatos mais deploráveis na Igreja atual. É um drama que a Igreja pretenda caminhar rumo ao futuro, em meio a uma sociedade plural e secularizada, de costas para a perspectiva, para as linhas de força e para o espírito do Concílio. Se o Vaticano II foi, segundo João Paulo II, a maior graça que a Igreja recebeu no século XX, estamos cometendo um grave pecado contra essa graça. Em muitos lugares a graça do Concílio não está chegando ao povo de Deus.
Como recuperar o dinamismo pastoral daquela primavera eclesial?
Não se deve pensar num novo Concílio nem esperar a liderança de um Papa renovador. Também não podemos sonhar com receitas mágicas. Necessitamos conhecer, o quanto antes, um clima mais saudável e amável, introduzir na igreja a confiança, sentir-nos unidos em torno de um projeto de fundo com o qual possamos nos identificar. Este clima só Jesus pode produzir. A reação virá dos setores mais evangélicos da Igreja: os grupos de pessoas simples, reunidas em torno do evangelho de Jesus. É aí onde se está gestando agora um dinamismo novo por uma Igreja mais evangélica. Creio que a partir desses pequenos grupos vai se caminhar nas próximas décadas rumo a uma nova fase de cristianismo mais fiel a Jesus e ao seu projeto do Reino de Deus.
Há uma tentativa por parte de um setor da hierarquia, capitaneada pelo cardeal Rouco, de mudar a linha pastoral da Igreja basca?
Provavelmente, as coisas não são tão simples. A drástica mudança de orientação pastoral não é um episódio das dioceses bascas. Está acontecendo em muitas dioceses da Espanha, da Europa e da América Latina... Esta mudança não se está produzindo como decorrência de uma evolução da reflexão pós-conciliar. É fruto de uma estratégia decidida às costas das igrejas diocesanas: nomeação de bispos de perfil não conciliar, consignas muito precisas de atuação pastoral, marginalização das gerações de presbíteros do Concílio, imposição de um estilo de governo mais autoritário, o enfraquecimento dos Conselhos de Presbíteros, impulso de práticas pré-conciliares... Provavelmente, tudo isto nasceu da vontade de corrigir abusos e desvios depois do Concílio, mas é evidente que se foi longe demais. Como disse K. Rahner pouco antes de sua morte, eu também creio que se trata apenas de uma “onda passageira de resistência ao Concílio”. Em breve, se imporá uma maior sensatez evangélica e eclesial.
Por que o Jesus da história assusta ainda em certos ambientes eclesiásticos?
O medo de Jesus sempre existiu. É um fenômeno quase inconsciente, mas muito explicável. Jesus torna as pessoas mais livres; atrai para o amor, não para as normas; chama os seus seguidores para colaborar no projeto do Reino de Deus, não em qualquer estratégia pastoral; recorda-nos que os últimos serão os primeiros; centra os seus seguidores no essencial do Evangelho, não em práticas e devoções secundárias... Não há nada mais perigoso para uma Igreja que busca segurança, ordem e disciplina, que uma corrente forte de seguidores e seguidoras de Jesus, que recuperam seu espírito, seu fogo e sua paixão pelo Reino de Deus.
Como lida com os vetos, diretos e indiretos, à sua obra por parte de alguns hierarcas?
Pouco a pouco vou me dando conta de que foi a melhor coisa que podia me acontecer no final da minha vida. Estes conflitos estão me levando a um contato mais vital com Jesus, pois me obrigam a viver a minha fé com mais verdade e de maneira mais desnuda. Se não me apoio em Jesus, minha vida e meu trabalho não têm, nestes momentos, nenhum sentido. Além disso, não sou capaz de sentir ressentimento contra ninguém. Não é ascese. É um presente que Deus me deu através da minha mãe. Ela era assim.
(...)
Como pode a nossa Igreja recuperar a credibilidade e a confiança social, perdidas segundo todas as pesquisas?
As pessoas vão começar a crer em nós no dia em que não nos preocuparmos tanto com a nossa credibilidade. Não podemos continuar vivendo em meio aos sofrimentos, contradições e conflitos desta sociedade com “a ilusão de inocência” própria de “espectadores” que pretendem estar quase sempre acima do bem e do mal. A sociedade vai crer em nós se nos virem vulneráveis e próximos, aceitando nossos erros e ignorâncias, mas sofrendo verdadeiramente junto com os que sofrem. Na Igreja, devemos nos perguntar com quem nos preocupamos, além de nos preocuparmos conosco mesmos. Só a compaixão fará a Igreja mais humana e crível. No dia em que descobrirmos o mundo com os olhos de Jesus e tratarmos as pessoas como ele as tratava, as pessoas vão se aproximar da Igreja. Como vão crer hoje na Igreja as mulheres maltratadas se não sentem a nossa indignação e a nossa defesa?
A que se deve o medo que se sente entre os teólogos, os religiosos e as organizações eclesiais mais abertas e pró-conciliares?
Creio que nem tudo é medo. Em ambientes que eu conheço, percebo um clima complexo de confusão, pena, decepção, orfandade, cansaço... Há comunidades e grupos cristãos que se sentem marginalizados ou suplantados, em sua própria paróquia, por outros grupos e movimentos. Sentem-se perdedores. Sabem que devem sofrer, sem que ninguém ouça seu sofrimento. Recentemente pude ver as lágrimas em dois militantes da Pastoral Operária que se sentem relegados pela Igreja. Mas sei também com que fé muitos acorrem a Jesus para encontrar ânimo e força, como algumas comunidades religiosas rezam por esta Igreja que as faz sofrer... Estes “grãos de trigo”, caídos na terra... darão um dia muito fruto.
Onde estão os profetas da Igreja espanhola aos quais cantava outrora Ricardo Cantalapiedra?
Talvez, o mais preocupante seja que não se sinta sua falta. Pedimos vocações para o serviço presbiteral porque há poucos padres, mas não pedimos que surjam profetas. Não temos necessidade deles? Hoje, uma vez mais, corremos o risco de caminhar para o futuro privados do espírito profético. Mais ainda. Corremos o risco de nos organizar de maneira antiprofética, ficando cegos para discernir os sinais dos tempos e surdos para ouvir o que o Espírito de Jesus está dizendo às Igrejas. Sem profetas, é difícil que a Igreja tome consciência do seu pecado e da sua infidelidade a Jesus. Mas, talvez, necessitamos mesmo é de comunidades proféticas onde aprendamos a viver com indignação, com compaixão solidária, com gestos libertadores, com liberdade de espírito, defendendo os últimos, acolhendo incondicionalmente a todos, semeando na sociedade sinais de esperança. Este espírito profético só pode nascer de Jesus no contato com seu Evangelho.
É pecado ser nacionalista? Porque é isso que setores eclesiais mais conservadores defendem.
Todo o mundo sabe que ser nacionalista não é pecado. Nem em Bilbao, nem em Barcelona, nem em Santiago de Compostela, nem em Toledo ou Madri.
O que sente diante da proliferação de notícias sobre as intrigas vaticanas?
Tristeza e indignação. Costumo pensar em Jesus, que, ao chegar em Jerusalém, se põe a chorar dizendo: “Se compreendesses os caminhos da paz! Mas teus olhos seguem fechados”. Não sei se no Vaticano se sente necessidade de conversão. Seus ouvidos não ouvem os constantes apelos que se fazem em nome do Evangelho. Seus olhos estão fechados: não veem os caminhos que poderiam nos levar rumo a uma Igreja mais fiel ao seu único Senhor. E, contudo, intuo que uma tentativa lúcida e responsável de conversão, promovida pelo Papa, encontraria praticamente a aprovação entusiasta de todos os bispos da Igreja universal.
Para defender aqueles que mais sofrem a crise e o desemprego, a Igreja espanhola e sua hierarquia não teriam que fazer “um gesto forte”?
A crise será longa. Pode nos tornar mais humanos e mais solidários. Para a Igreja, para a Hierarquia e para todos nós, pode ser um tempo de graça. Seria um erro publicar cartas pastorais e exortações para depois permanecer mais ou menos como espectadores da crise. É o momento de dar passos decisivos rumo a uma Igreja samaritana. Em primeiro lugar, temos de aprender a nos relacionar de maneira mais direta com os sofrimentos gerados pela crise (famílias desenganadas, sem renda alguma, necessitados privados de atenção social, imigrantes sem futuro algum...). Em segundo lugar, devemos “cortar” em nossos orçamentos e diminuir o padrão de vida para poder compartilhar mais a nossa vida com os necessitados. Cada um saberá que “gestos fortes” pode fazer. Creio que, nos próximos anos, podemos aprender a viver de maneira mais austera e mais saudável, renunciando a muitos gastos supérfluos e encontrando caminhos simples, mas eficazes, para ajudar as pessoas que se encontram em péssimas situações.
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“O medo de Jesus sempre existiu". Entrevista com José Antonio Pagola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU