11 Setembro 2011
Os luteranos são para Bento XVI o que os ortodoxos eram para João Paulo II, os irmãos separados que ele melhor conhece para os quais ele tem maior afinidade natural. Lutero tem tido uma grande importância no pensamento do pontífice; depois de Agostinho, provavelmente não há nenhum escritor cristão pré-moderno que mais exerceu influência sobre os seus pontos de vista teológicos. Bento XVI também admira abertamente vários teólogos luteranos e estudiosos da Bíblia do século XX, como Wolfhart Pannenberg, Wilfrid Joest e Martin Hengel.
Ao mesmo tempo, Bento XVI tem sido cético quanto às perspectivas para uma rápida distensão católico-luterana.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 02-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Acima de tudo, seu julgamento sobre o próprio Lutero é misto. Em seu livro de 1987 Igreja, ecumenismo e política, Ratzinger escreveu que, na verdade, há dois Martinho Lutero. O primeiro é o Lutero dos catecismos, o grande escritor de hinos e promotor da reforma litúrgica. Esse Lutero, escreveu Ratzinger, antecipou grande parte do ressourcement que depois veio à tona no catolicismo antes do Vaticano II. No entanto, há também o Lutero polemista, afirmou Ratzinger, cujo visão radical da salvação individual sai totalmente da vista da Igreja.
Em segundo lugar, Bento, ao longo dos anos, foi ambivalente com relação ao que se poderia chamar de "ecumenismo burocrático", incluindo os documentos conjuntos que os diálogos oficiais entre as diversas confissões produziram. Em sua opinião, esses documentos muitas vezes tentam o impossível, tentando reconciliar posições logicamente opostas do passado. Três décadas atrás, Ratzinger escreveu que a unidade não será encontrada dessa forma, mas sim ao serem dados "novos passos" juntos.
Em terceiro lugar, os cinco séculos desde a Reforma Protestante criaram novos obstáculos para a unidade, principalmente com as principais Igrejas protestantes. Esses desdobramentos incluem mudanças no ensino moral e nas estruturas eclesiásticas, assim como ministérios (mais centralmente, a ordenação de mulheres; um lembrete virá em Erfurt, onde Bento XVI vai ser recepcionado por uma bispa luterana, Ilse Junkermann).
Todas essas forças – o afeto de Bento por Lutero e pelo pensamento luterano, juntamente com a sua ambivalência acerca dos acordos ecumênicos oficiais e as realidades atuais do protestantismo ocidental – foram claramente expostas em sua reação à Declaração Conjunta de 1999.
Declaração Conjunta
Fruto de décadas de diálogo entre teólogos católicos e luteranos, o documento foi projetado para abordar o debate teológico central da Reforma: como a pessoa humana decaída é salva. A ideia era que, embora os católicos e os luteranos possam ter acentos diferentes para responder a essa questão, no fundo eles estão em um acordo substancial. Ao dizer isso em voz alta, a declaração também descartou as condenações mútuas do século XVI.
O momento divisor de águas pareceu ter chegado no dia 25 de junho de 1998, quando o cardeal australiano Edward Cassidy, nesse momento presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, realizou uma coletiva de imprensa em Roma para apresentar o texto. Ela continha 44 "declarações comuns", resumindo as áreas de acordo. Cada lado foi capaz de oferecer a sua própria explicação do raciocínio que lhes permitiram assinar a declaração.
O núcleo do acordo foi esta frase-chave: "Somente por graça, na fé na obra salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para as boas obras".
Cassidy disse que o "alto nível de consenso" permitiu que ambos os lados afirmassem que "as condenações levantadas um contra o outro no século XVI não se aplicam mais ao respectivo parceiro hoje". Ele acreditava obviamente que algo transcendente havia sido alcançado. Cassidy disse na época que, quando ele morresse e enfrentasse o juízo, e Deus lhe perguntasse o que ele havia realizado com a sua vida, sua resposta seria: "Eu assinei a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação".
Resposta
No entanto, como se pôde ver, a volta olímpica foi prematura. Logo depois da apresentação de Cassidy, a Congregação para a Doutrina da Fé sob Ratzinger emitiu uma "resposta" à declaração, que parecia sugerir que o suposto consenso entre católicos e luteranos era artificial.
(Processualmente, é preciso dizer, esse foi um movimento curioso. Alguns se questionavam com justiça que sentido fazia para o Vaticano emitir uma "resposta" a um documento ao qual ele supostamente havia sido um dos autores. Se as autoridades do Vaticano tinham problemas com o texto, questionavam-se, por que o assinaram, em primeiro lugar?
Por outro lado, se o Vaticano iria se afastar dos seus próprios acordos antes ainda que a tinta estivesse seca, por que investir tempo e dinheiro para produzi-los? Esse foi um dos vários episódios dos anos de João Paulo II que ilustram uma crônica falta de comunicação entre os vários departamentos vaticanos, mas essa é outra história.)
A resposta doutrinal, emitido sob o nome de Ratzinger e, obviamente, moldada pelo seu pensamento, enumerou uma série de áreas onde, acusava, sérias diferenças mantinham-se entre as teologias católica e luterana:
A linha de fundo era que Trento continua em vigor: "O nível de concordância é alto", disse a resposta, "mas ela ainda não nos permite afirmar que todas as diferenças que separam católicos e luteranos na doutrina da justificação são simplesmente uma questão de ênfase ou de linguagem [...] As divergências devem, ao contrário, ser superadas antes que possamos afirmar, como se faz genericamente, que esses pontos já não incorrem mais nas condenações do Concílio de Trento".
Muitos luteranos ficaram furiosos. Um afirmou que a Santa Sé havia traído os teólogos luteranos e os católicos romanos que trabalharam no documento, e que levaria décadas para restabelecer a confiança.
Na imprensa alemã, Ratzinger rapidamente surgiu como o vilão da história, o que trouxe um raro lampejo de uma ofensa pessoal. No dia 14 de julho de 1998, ele publicou uma carta no jornal Frankfurter Allgemeine chamando as notícias de que ele havia bombardeado o acordo de uma "mentira suave", afirmando que minar o diálogo com os luteranos seria "negar a mim mesmo".
Retomada do diálogo
Talvez sentindo a reação, Ratzinger entrou em campo para colocar o diálogo de volta sobre os trilhos. No dia 3 de novembro de 1998, ele convocou silenciosamente um pequeno grupo de trabalho para se reunir em Regensburg, na Alemanha, na casa que ele compartilha com o seu irmão Georg. Além de Ratzinger, o grupo era formado pelo bispo luterano Johannes Hanselmann, pelo teólogo católico Heinz Schuette e pelo teólogo luterano Joachim Track.
Track disse mais tarde, em uma entrevista que eu fiz com ele, que Ratzinger salvou o acordo oferecendo três concessões-chave.
Com base nisso, o grupo de trabalho refez a Declaração Conjunta para satisfazer as preocupações de ambos os lados. Dom George Anderson, da Igreja Evangélica Luterana dos EUA, que não estava presente em Regensburg, mas que foi informado pelos participantes luteranos, disse que o papel de Ratzinger foi extremamente importante: "Foi Ratzinger quem desatou os nós [...] Sem ele, talvez nós não teríamos um acordo".
Um ano depois do anúncio original, Cassidy fez uma segunda coletiva de imprensa para apresentar um acordo – desta vez, um acordo que o escritório doutrinal do Vaticano não renegou.
A versão final veio na forma de três documentos: a Declaração Conjunta em si mesma, uma "declaração comum oficial", indicando como as duas partes entendem a Declaração Conjunta, e um "anexo", no qual os pontos levantados na resposta foram abordados, assim como preocupações adicionais do lado luterano. A declaração afirmava que, "entre luteranos e católicos, existe um consenso em verdades básicas da doutrina da justificação".
O anexo oferecia comentário ponto por ponto sobre as questões levantadas na resposta de 1998:
Com isso, a divisão doutrinal aberta pela Reforma foi, com efeito, declarada encerrada.
Na verdade, a Declaração Conjunta não trouxe exatamente uma Nova Jerusalém ecumênica. Alguns luteranos rejeitaram o acordo, incluindo o Conselho Internacional Luterano e a Conferência Luterana Confessional. Do lado católico, a aprovação do Vaticano continua sendo oficialmente vinculante, mas o entusiasmo varia.
Todos os sinais sugerem que as sensibilidades continuam um pouco cruas. Recentemente, o teólogo luterano alemão Reinhard Frieling sugeriu que Bento XVI deveria ser declarado como um "chefe honorário do cristianismo". Isso, é claro, fica muito aquém do "poder ordinário pleno, imediato e universal na Igreja" afirmado para o Romano Pontífice no direito canônico, mas, mesmo assim, a sugestão de Frieling produziu uma tal reação em círculos luteranos que ele foi forçado a esclarecer que ele apoia "a unidade com, mas não sob, o papa".
No entanto, a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação continua sendo o acordo ecumênico no qual o Papa Bento XVI se envolveu mais intimamente, primeiro como crítico e depois como seu salvador. Como tal, ela ilustra tanto as dúvidas quanto as esperanças que o primeiro papa alemão em 500 anos vai levar consigo em sua viagem de volta para casa no final deste mês.
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Bento XVI e Lutero. A doutrina da justificação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU