31 Agosto 2011
Quando o Vaticano divulgou documentos em meados de agosto relacionados com o caso de Andrew Ronan, padre servita que foi laicizado em 1966 e morreu em 1992 e que agora figura em um processo por abuso sexual no Oregon, isso equivaleu a uma virada histórica: a primeira vez em que o Vaticano abriu seus arquivos em resposta a uma ordem judicial.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 30-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Qualquer esperança de que o lançamento pudesse resolver rapidamente o caso, no entanto, pareceu desaparecer em meio a interpretações dramaticamente diferentes dos documentos entre os advogados da suposta vítima e o Vaticano – sem mencionar as disputas sobre se o Vaticano, de fato, havia reconhecido plenamente as suas responsabilidades.
O caso John V. Doe versus Santa Sé foi originalmente apresentado em um tribunal federal dos EUA em 2002, em nome de um homem de Seattle que afirma que Ronan abusou dele em 1965. Ronan estava nos Estados Unidos nessa época, depois de ter sido transferido da Irlanda em 1959 pelos Servitas (formalmente, a Ordem dos Servos de Maria), depois de ter admitido que havia mantido contatos homossexuais com seminaristas em um convento servita de Benburb, Irlanda.
O caso é um dos poucos em tribunais norte-americanos que busca superar a imunidade soberana do Vaticano e, até hoje, o único em que um juiz permitiu que os advogados exijam os arquivos do Vaticano. Seu núcleo é a afirmação de que Ronan era um "agente" ou "funcionário" do Vaticano, algo que o Vaticano e seu procurador norte-americano contestam vigorosamente.
No dia 17 de agosto, o Vaticano divulgou o que alegava serem todos os documentos de sua posse especificamente relacionados a Ronan. Eles incluem uma nota de permissão do Vaticano, de 1953, para que Ronan atue como mestre de noviços, apesar de ser inferior à idade então estabelecida pela lei da Igreja, e diversos documentos relacionados à sua laicização em 1966. Entre eles, está uma carta de fevereiro de 1966, em que Ronan reconhece "as minhas tendências homossexuais repetidas, admitidas e documentadas e meus atos contra o voto de castidade e o celibato".
Notavelmente, não há documentos que sugiram que o Vaticano autorizou, ou tinha conhecimento, da transferência de Ronan em 1959.
No dia 19 de agosto, o Vaticano disponibilizou mais documentos – milhares de páginas – relacionadas com as suas políticas gerais sobre os abusos sexuais, muitas das quais já são de domínio público.
O advogado Jeffrey Lena, que representa o Vaticano nos tribunais dos EUA, disse que os documentos provam que o Vaticano não estava envolvido na transferência de Ronan, e que o Vaticano tomou conhecimento de todas as acusações contra ele apenas no início de 1966, depois que o suposto abuso citado no Caso Doe havia ocorrido.
Lena também observou que Ronan foi laicizado apenas algumas semanas depois que os relatórios chegaram ao Vaticano.
"Dada a falta de apoio às acusações, os advogados do querelante deveriam agora fazer a coisa certa e remover a sua ação contra a Santa Sé voluntariamente", disse Lena.
O advogado Jeffrey Anderson, que representa o demandante, disse que não só não tem a intenção de fazer isso, mas que insiste no fato de que os documentos reforçam a sua posição.
"Todas as políticas, todos os protocolos, todas as leis referentes ao controle dos padres e dos abusos sexuais vêm de cima – ou seja, da Santa Sé", disse Anderson em uma coletiva de imprensa no dia 22 de agosto.
"O que esses documentos mostram é que o Vaticano e a Santa Sé [...] tomam as decisões, interpretam os protocolos, estabelecem as políticas, fazem cumprir as políticas e as práticas referentes a cada padres em nível mundial e a este padre em particular, e exigem duas coisas: sigilo absoluto e total evitamento do escândalo", disse Anderson.
Anderson citou uma carta de 1963 de uma autoridade servita que dizia que a má conduta de Ronan na Irlanda se tornou conhecida em 1959, levando à sua transferência para os Estados Unidos (Ronan inicialmente atuou em Chicago, mudando-se para Portland como diretor de retiros em 1965). Uma carta de 1966 de um provincial servita para o superior da ordem em Roma, apoiando a laicização, diz que "apenas alguns poucos homens dentro da ordem e da província" sabiam dos problemas de Ronan e expressa a esperança de que ele possa "sair tranquilamente e sem qualquer escândalo aberto".
"Estamos plenamente conscientes das dificuldades e das complicações que podem surgir a partir da sua dispensa, especialmente por parte dos descontentes que estão insatisfeitos com a vida sacerdotal e religiosa, mas esperamos sinceramente que estes nunca saibam das circunstâncias do caso", diz a carta.
Lena disse que esse rastro de papel não oferece apoio para a alegação de que o Vaticano tinha qualquer responsabilidade de supervisão direta sobre Ronan.
Anderson e outros advogados do requerente, no entanto, denunciaram que os documentos divulgados pelo Vaticano não representam todas as informações disponíveis. Lena contestou essa afirmação, chamando as declarações de Anderson de "outra tentativa infeliz de enganar o público".
Desde o ano 2000, o Vaticano ou suas autoridades, inclusive o próprio Papa Bento XVI por duas vezes, foram nomeados como réus em pelo menos 10 ações judiciais norte-americanas, em casos que vão desde disputas comerciais, passando por processos envolvendo bens da era do Holocausto e o Banco do Vaticano, à crise dos abusos sexuais. Seis foram descartadas e quatro permanecem em aberto, geralmente atoladas em disputas sobre se os tribunais norte-americanos podem reivindicar jurisdição sobre o Vaticano, apesar de seu status de entidade soberana segundo o direito internacional.
No ano passado, os advogados de outra suposta vítima de abuso sexual removeram um processo separado contra o Vaticano, O`Bryan versus Santa Sé, citando as dificuldades de superar a imunidade soberana, assim como problemas em encontrar outras vítimas para se juntar à ação. Alguns analistas consideraram esse caso como o desafio mais grave, já que sustentava que os bispos, e não os padres individuais, são "agentes" do Vaticano.
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Divulgação de documentos pelo Vaticano não encerra disputas judiciais sobre pedofilia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU