05 Abril 2011
Germain Grisez, professor aposentado de filosofia moral que trabalhou como assessor de um membro da comissão papal sobre controle de natalidade nos anos 1960, parece estar tentando revisar a história do Vaticano com a revelação de novos documentos que abordam os trabalhos da comissão.
A análise é do advogado norte-americano aposentado Geraldo Slevin, em artigo publicado no sítio National Catholic Reporter, 23-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No entanto, os documentos, aparentemente sem intenção, revelam como uma autoridade poderosa do Vaticano, que trabalhava estreitamente com o Papa Paulo VI, manteve privadamente um controle estrito do processo e dos resultados dos trabalhos da comissão.
A comissão, convocada pelo Papa João XXIII em 1963 e que mais tarde trabalhou sob a égide de Paulo VI, finalmente terminou seu mandato com um relatório que pedia que a proibição da Igreja a todas as formas de controle artificial de natalidade fosse levantada.
Imediatamente, um segundo relatório, que contestava o relatório final da comissão, foi pedido pelo cardeal Alfredo Ottaviani, então chefe da Congregação para a Doutrina da Fé e membro poderoso da ala conservadora da Igreja da época.
O relatório final da comissão vazou e foi publicado no National Catholic Reporter e apareceu em outras publicações em 1967. Um ano mais tarde, depois de uma expectativa difundida de que Paulo VI levaria a sério o relatório da comissão original, ele publicou a encíclica Humanae Vitae, afirmando a proibição oficial da Igreja a todas as formas de contracepção artificial.
Jogo de forças
Os documentos de Grisez, publicados em um artigo online do padre jesuíta John Ford, membro da comissão papal sobre o controle de natalidade (disponível aqui, em inglês http://www.twotlj.org/Ford.html), tentam demonstrar que o chefe da comissão, o padre dominicano Henri de Riedmatten, do escritório da Secretaria de Estado do Vaticano, pressionou fortemente os membros da comissão para aprovar o controle da natalidade.
Nos documentos, Grisez, que foi levado a Roma por Ford como assistente, parece se esforçar para vencer a argumentação que ele e Ford – que foi somado à comissão pelo Papa Paulo VI – perderam há quase 50 anos.
Ford e Grisez chegaram tarde para as deliberações da comissão como parte – pelo que parece – do último esforço do cardeal Ottaviani para salvar o ensino tradicional da Igreja sobre o controle de natalidade, expresso na encíclica Casti Connubii.
Paulo VI e Ottaviani, em 1965, já haviam tentado, sem êxito, reafirmar a Casti Connubi, explícita mas silenciosamente, no Concílio Vaticano II, propondo uma emenda de última hora a um esboço avançado de um dos documentos conciliares finais. A emenda foi, com efeito, rejeitada pelos representantes do Concílio.
Os membros da comissão deviam estar bem cientes em 1965 do que tanto Paulo VI quanto Ottaviani queriam como decisão, mas os membros da comissão original mantiveram a sua posição. Durante vários anos, os membros da comissão original haviam considerado e avaliado cuidadosamente as relevantes evidências teológicas, sociológicas e psicológicas.
Com base nisso, eles ofereceram a sua decisão e relatório a Paulo VI como ele havia pedido e recomendaram enfaticamente que ele alterasse os ensinamentos do Vaticano para permitir o controle da natalidade.
O que é mais significativo nas recentes notas de Grisez no artigo de Ford, talvez uma admissão inesperada, não é uma prova de qualquer manipulação real por parte do presidente, De Riedmatten, mas, ao contrário, uma evidência bastante clara das maquinações secretas que Ottaviani e Paulo VI empregaram em um esforço para minar uma decisão a qual se chegou cuidadosamente depois de mais de quatro anos por parte da comissão nomeada pelo Papa.
A nota biográfica de Grisez inclui as palavras do próprio Ford, afirmando que Paulo VI disse privadamente a Ford, ainda em 1966 (dois anos antes da publicação da encíclica), em termos muito claros, que não iria mudar a Casti Connubii, publicada em 1930, para permitir o controle de natalidade.
O papel de Ottaviani
Grisez também descreve em detalhes como Ottaviani, provavelmente com a bênção do Papa Paulo VI, reuniu-se com Ford e Grisez pouco depois de meia hora da entrega de De Riedmatten nas mãos do Papa do relatório final da comissão favorecendo o controle da natalidade.
Mais significativamente, Grisez, nessa recente nota biográfica, indica que Ottaviani, em um encontro privado logo após a última reunião da comissão, pediu que Ford e ele ficassem mais uma semana em Roma para escrever, na verdade, um relatório (o agora chamado "relatório minoritário") para o Papa Paulo VI, para se contrapor ao relatório que De Riedmatten havia acabado de entregar (o agora chamado "relatório da maioria").
Parece que Ottaviani só pediu isso quando percebeu que a comissão original, nomeada pelo Papa, não poderia ser pressionada a apoiar a proibição do controle de natalidade da Casti Connubii.
Embora isso possa não surpreender alguns, o que é mais digno de nota é que Grisez acaba de dar prova direta dessas maquinações secretas. Ele fornece suporte para algumas especulações anteriores sobre a abordagem de Ottaviani e de Paulo VI a várias decisões importantes do Concílio Vaticano II, a saber, deixar que os mais de 2.500 bispos conciliares e os membros da comissão decidissem o que quisessem.
Se, no entanto, Paulo VI e Ottaviani discordassem de qualquer uma dessas decisões, Ottaviani simplesmente iria se encontrar com o Papa depois que os bispos conciliares e os membros da comissão fossem embora de Roma e minariam as decisões as quais Ottaviani e o Papa se opunham.
Grisez esteve pessoalmente envolvido nas últimas reuniões da comissão, e o seu revisionismo parece fazer parte de um esforço, por parte de alguns católicos tradicionalistas – muitas vezes com as bênçãos do Vaticano –, de reescrever elementos da história do Concílio Vaticano II (1962-1965).
O apoio final da comissão para alterar os ensinamentos da Igreja sobre o controle da natalidade permanece até hoje com um desafio sem resposta para a encíclica papal Humanae Vitae, publicada em 1968 e amplamente rejeitada pelos católicos leigos e clérigos de todo o mundo.
Enquanto a maioria dos católicos norte-americanos e europeus parecem finalmente ignorar a encíclica, alguns a seguiram, e muitos outros sofreram pesos de consciência acerca do controle de natalidade. Mais importante, em todo o mundo, hoje, na América Latina e na África, por exemplo, a encíclica ainda exerce uma influência negativa.
Sexo e religião
Grande parte da história da comissão foi contada em detalhe inicialmente em 1985 por Robert Blair Kaiser em um livro intitulado The Politics of Sex and Religion [A política do sexo e da religião]. Durante os anos 1960, Kaiser foi o repórter de religião das revistas Time e Newsweek.
De acordo com Kaiser, o Papa João XXIII criou a comissão em 1962 para avaliar as implicações morais de certas questões reprodutivas de então, incluindo a nova pílula de controle de natalidade. Nem João XXIII nem Paulo VI queriam que os quase 3 mil bispos e demais clérigos então em Roma para o Concílio Vaticano II abordassem a questão do controle da natalidade, embora muitos desses bispos expressaram seu desejo de trazer essa importante e urgente questão pastoral perante o Concílio.
Uma das principais razões para a preferência de ambos os papas pela abordagem da comissão parece ser muito clara. O Papa Pio XI, em 1930, já havia publicado uma encíclica, Castii Canubii, que muitos católicos consideram como um ensinamento papal "infalível". Essa encíclica foi publicada à luz do declínio da taxa de natalidade europeia pós-Guerra Mundial, resultante principalmente como uma consequência dos milhões de homens jovens mortos na Primeira Guerra Mundial.
O Vaticano, então, também estava preocupado com o aumento do comunismo russo ateu. Nessa encíclica, o Papa Pio XI condenou incondicionalmente todas as formas de controle artificial da natalidade.
Se os bispos do Vaticano II, em 1962, deveriam levar em consideração e inverter a proibição da Casti Conubii emitida apenas três décadas antes, os bispos do Concílio, revertendo a recente proibição de Pio XI, provavelmente também deveriam destruir para sempre a alegação de que os papas são infalíveis – obviamente uma questão muito importante para Papas que procuram preservar seu poder espiritual sobre os fiéis católicos do mundo.
Essa "doutrina da infalibilidade" tinha recém sido declarada formalmente no Concílio Vaticano I, a meros 60 anos antes da encíclica de Pio XI.
"Tabelinha"
A comissão original sobre controle de natalidade tinha apenas seis membros em 1963, incluindo um psicólogo e nenhum teólogo, nem sociólogo ou casais. O jesuíta alemão Josef Fuchs foi adicionado para a segunda reunião, e Patty Crowley e seu marido, Patrick, entraram no quarto encontro.
Os Crowleys eram ativos no Catholic Family Movement [Movimento Família Católica]. O CFM era um grupo de casais católicos de todo o mundo que defendia então o "método rítmico" [vulgo "tabelinha"] para a regulação da natalidade. O método rítmico, que contava com o ciclo de fertilidade da mulher para a regulação da natalidade, não era então proibido pelo Vaticano.
A comissão se reuniu em Roma intensamente até 1966, sob o seu presidente, De Riedmatten, que finalmente entregou a Paulo VI, em 1966, o relatório final da comissão favorecendo o controle da natalidade.
No momento em que a comissão entregou o seu relatório final, a comissão continha 15 bispos e cardeais, sendo que todos os outros membros estavam reduzidos ao nível de periti. No final, os 15 votaram a favor das recomendações da comissão.
Quando a comissão começou em 1963, muitos dos membros originais se opuseram a qualquer mudança na proibição ao controle de natalidade da Casti Conubii. Ao longo do tempo, isso mudou.
O que foi especialmente importante para mudar a opinião dos membros da comissão foi uma importante pesquisa que Patty e Patrick Crowley fizeram com os membros do CFM. Os membros do CFM, em grande número, relataram de forma comovente como o método rítmico não funcionava para eles e como ele inibia a intimidade e prejudicava seus casamentos.
Os resultados dessa pesquisa provavelmente só surpreenderam os clérigos que nunca haviam estado em uma relação heterossexual monogâmica longa e pública.
Finalmente, os membros da comissão original tornaram-se substancialmente a favor de recomendar a modificação da política do Vaticano, permitindo assim o controle de natalidade.
Ottaviani, fidelíssimo de Paulo VI, evidentemente, viu o que estava por vir e tentou impedi-lo com o apoio do Papa por meio uma expansão final da comissão. Essa expansão adicionou alguns conhecidos clérigos apoiadores da Casti Connubii. Um deles era um proeminente teólogo moral norte-americano, o padre jesuíta John Ford, que trouxe consigo, como consultor, um jovem professor, Germain Grisez.
Ford morreu há vários anos. Apesar dessa tentativa de expansão, os membros da comissão original, de modo geral, resistiram a essa pressão papal e finalmente aprovaram, por uma margem esmagadora, um relatório confidencial, em 1966, pedindo a permissão do controle de natalidade.
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Documentos revelam pressão do Vaticano em resultados finais de comissão sobre controle de natalidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU