12 Outubro 2018
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 28º Domingo do Tempo Comum, 14 de outubro (Mc 10, 17-30). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se, no domingo passado, a boa notícia era a da vontade do Deus criador sobre homem e sobre a mulher, unidos na aliança da família (cf. Mc 10, 6-9), hoje o Evangelho nos anuncia que, por causa do reino de Deus, a família deve ser relativizada: se é verdade que o caminho comum do seguimento a Cristo é o matrimônio, no entanto, “por causa de Jesus e do Evangelho”, a família pode ser abandonada (como aconteceu real e concretamente com os 12 discípulos) ou pode não ser escolhida por aqueles que acolhem o chamado a “tornar-se eunucos pelo reino dos céus” (Mt 19, 12).
Além disso, se no Evangelho de domingo passado Jesus, citando o “no princípio” do Gênesis, afirmava: “O homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher” (Mc 10, 7; Gn 2, 24). no início da história de Jesus com os seus discípulos, lê-se uma afirmação significativamente paralela: “Tiago e João deixaram seu pai Zebedeu (...) e partiram, seguindo a Jesus” (Mc 1, 20). Deixar os vínculos familiares anteriores para viver a aventura do matrimônio, deixá-los para viver a aventura do celibato no seguimento de Jesus...
Esse trecho evangélico é tão conhecido, foi tantas vezes pregado e usado para fins vocacionais, que corremos o risco de pensar que já o compreendemos de uma vez por todas e que, portanto, “já o conhecendo”, podemos lê-lo rapidamente. Em vez disso, tentemos, acima de tudo, escutá-lo bem, com coração dócil e aberto.
O episódio narrado por Marcos, situado ainda durante a subido de Jesus e dos seus discípulos a Jerusalém, tem como protagonista “alguém”, um homem anônimo, certamente um judeu, um homem que compartilha com muitos a admiração pelo rabino da Galileia. Com veneração, ele se apresenta a Jesus e, ajoelhando-se diante dele (assim como diante do Senhor na liturgia), chama-o: “Bom Mestre”. Jesus, porém, reage a tal qualificação e recorda que “bom” (agathós) só pode ser dito de Deus, porque só Deus é verdadeiramente a bondade, o amor, a graça (cf. Ex 34, 6-7).
Esse homem faz a Jesus uma pergunta significativa para a fé judaica: “Que devo fazer para ganhar a vida eterna?”. Esse alguém busca “a vida eterna”, a vida para sempre, capaz de vencer a morte, o mal, o sofrimento. É a busca de todo ser humano e de toda humanidade, que sente a morte como uma injustiça, uma contradição, uma ameaça para nós, humanos. Cada um tem em si essa secreta esperança de que a morte não seja a última palavra e, para obter a vida eterna, pensa em uma performance, em um fazer que seja capaz de adquiri-la, de merecê-la. Na verdade, porém, o dom de Deus deve ser herdado, recebido, acolhido, não obtido ou merecido.
Sim, há uma salvação, uma bem-aventurança futura prometida e dada por Deus a quem crê, a quem pertence ao seu povo, mas, concretamente, na vida comum, cotidiana, o que é preciso fazer? Pergunta pertinente também para nós hoje, porque a fé no Deus vivo não pode ser apenas adesão intelectual, desejo dele, sentimento de amor, mesmo que profundo...
O amor comandado por Deus, amor por ele, o Senhor (“Amarás o Senhor teu Deus...”: Dt 6, 5), deve significar um modo de viver, um “fazer”, um comportar-se de acordo com a sua vontade (cf. Jo 14, 15, 1Jo 5, 3). Não é suficiente ter uma fé ortodoxa, pontual, e não basta confessar a Deus com os lábios, no culto!
Por isso, Jesus, como intérprete agudo e fiel da Lei de Moisés, responde citando as palavras da aliança, os mandamentos tirados das 10 palavras, mas significativamente apenas aqueles que dizem respeito às relações com o próximo: “Não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não levantarás falso testemunho” (Ex 20, 13-16; Dt 5, 17-20). Depois, ele resume os preceitos como “Não prejudicarás ninguém” (Dt 24, 14), e, no vértice, coloca aquele que, na lista, é o primeiro em relação ao próximo: “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20, 12; Dt 5, 16).
Esse modo de responder de Jesus a alguém que crê é significativo: ele afirma que a salvação se joga nas relações com os outros, com o próximo. Ele não diz a ele como viver a relação com Deus, nem em que crer ou esperar: para a salvação e a bem-aventurança futura, tudo se decide no amor concreto vivido aqui e agora em relação aos outros, em relação aos irmãos e às irmãs em humanidade. Sim, “não prejudicar ninguém”, “amar o próximo como a si mesmo” (cf. Mt 19, 19; Lv 19, 18) é o que é indispensável para a salvação!
Aquele alguém (somente de acordo com Mateus é “jovem”: Mt 19, 20) então rebate: “Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude”. Palavras objetivamente extraordinárias: quem, de fato, poderia dizer o mesmo sobre si? Palavras, portanto, pretensiosas, desprovidas da necessária humildade? Marcos não nos permite julgar essas palavras, mas talvez sejam precisamente elas que explicam o resultado do encontro com Jesus.
Este último, tendo ouvido a afirmação do outro, “fixou o olhar nele e o amou” (emblépsas autô egápesen autòn). Sim, Jesus o ama profundamente e, nesse fluxo de amor antecipado e gratuito, lhe diz: “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!” (deûro akoloúthei moi).
Não há vocação, chamado, senão no amor: somente amando é que o Senhor chama, somente olhando em profundidade com ternura é que Jesus pede para segui-lo! Mas sabemos o resultado: esse homem se entristece e vai embora abatido. Sim, porque, quando se rejeita o amor, o resultado é a tristeza.
O que era determinante era o amor de Jesus, não as suas palavras, que também podiam ser outras. Jesus o amou, e ele não acolheu esse amor: essa é a causa da tristeza.
Para aquele homem, havia chegado a ocasião da escolha, do discernimento entre o amor, a comunhão, ou a posse de bens na solidão. No entanto, ele não chega a se conhecer, a ousar e a se decidir. Assim, parece fechado ao amor, incapaz de acolher o amor sobre si mesmo, de aceitar ser amado. O amor gratuito – nós o sabemos – pode ferir o nosso narcisismo, pedindo-nos para sair de nós mesmos para nos abrirmos ao outro, para tirarmos tantas máscaras para amar e ser amados na verdade.
O amor passivo é exigente, e nós resistimos a ele, mais do que ao amor que nós mesmos dirigimos com protagonismo aos outros. A verdade é que aquele homem está marcado pela falta que não quer reconhecer: falta-lhe a gratuidade de dar, de se despojar para compartilhar e lhe faltará para sempre a experiência do amor. Por isso, “foi embora cheio de tristeza”.
Então, Jesus revela aos discípulos que, para acolher o amor, é preciso não ter outros amores que seduzem e alienam, como o dinheiro, a riqueza e o poder. Quem possui essas coisas não sabe discernir o amor, que pede acolhida, porque já está saciado, já é autossuficiente, não precisa ser amado por outro.
Pedro, então, se pronuncia para lembrar que ele e os outros deixaram tudo para seguir Jesus: deixaram a casa, a família (mãe, pai, irmãos e irmãs), os filhos que tinham ou aos quais haviam renunciado... Talvez Pedro mendigava um reconhecimento de Jesus pela sua renúncia àquilo que é bom e santo, como uma família, mas que, para eles, era uma perda, não um ganho (cf. Fp 3, 7), quando comparado ao “estar com Jesus” (cf. Mc 3, 14).
E Jesus, em resposta, lhe diz: “Quem tiver deixado tudo isso por causa de mim e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, durante esta vida – com perseguições – e, no mundo futuro, a vida eterna”.
Hoje, esquece-se facilmente demais, também na Igreja (mas ainda se acredita nisso?), que Jesus pode pedir a “quem pode abrir espaço” (ho dynámenos choreîn choreîto: Mt 19, 12) para renunciar à família que tinha e a que poderia ter. O celibato pelo Reino não pode ser reduzido à renúncia ao exercício sexual, mas é muito mais: é uma “não conjugação”, nem psicológica, nem afetiva, é não mais uma família humana, mas viver e sentir como suficiente a família dos irmãos e das irmãs de Jesus. Como ele mesmo anunciou: “Quem é minha mãe e meus irmãos? (...) Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3, 33.35).
No seguimento de Jesus, pode-se abandonar a família carnal por uma nova família, pode-se viver o celibato na fecundidade do amor de Cristo, dos seus irmãos e das suas irmãs. Fiquemos atentos para não diluir o escândalo do seguimento de Cristo, para não esconder a renúncia, que é determinante ao seguir Jesus.
Abandonar tudo pode ser, para alguns chamados pelo Senhor, o seu “fazer” neste mundo: sempre a serviço dos outros; sempre no amor pelo próximo, quem quer que ele seja; sempre mendigando uma salvação que nunca pode ser merecida, nem mesmo vivendo as perseguições.
No seguimento de Jesus, não há primeiros ou últimos por direito adquirido, mas apenas destinatários do amor antecipado de Jesus e da sua misericórdia.
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''Fixou o olhar nele e o amou'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU