01 Setembro 2017
A Nova Aliança, anunciada por Jeremias, foi realizada por Jesus. Ambos os profetas animados pela mesma paixão, o anúncio da Palavra, e compartilhando da mesma fidelidade para com Deus, apesar da rejeição da qual foram objeto.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 22º Domingo do Tempo Comum, do Ciclo A (03 de Setembro de 2017). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências bíblicas
1ª leitura: “A palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e de chacota” (Jeremias 20,7-9)
Salmo: Sl. 62(63) - R/ A minha alma tem sede de vós como a terra sedenta, ó meu Deus!
2ª leitura: “Eu vos exorto, irmãos, a vos oferecerdes em sacrifício vivo” (Romanos 12,1-2)
Evangelho: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mateus 16,21-27)
A grande virada
Logo após ter Pedro, em nome de todos os discípulos (o «vós» do versículo 15), atravessado a primeira etapa da fé, havendo reconhecido a verdadeira identidade de Jesus - a identidade divina -, o Senhor induz os seus ouvintes a entrarem na segunda etapa.
A partir daquele momento, Jesus Cristo (agora podemos chamá-lo de Cristo, pois Simão já o havia reconhecido como tal) «começou a mostrar a seus discípulos que devia ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da lei e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia.»
Ir para Jerusalém, a cidade que mata os profetas! Estamos por ora em Cesareia de Filipe, o que não é absolutamente destituído de significado. Pois é aí o ponto mais ao norte daquela viagem de Jesus: estamos assim numa grande virada.
O Cristo, de fato, vai «dar meia-volta» e tomar o caminho do sul. É uma virada também para os discípulos: vão ter de mudar de ideia totalmente, a respeito do que é o Messias, o Filho de Deus e a respeito, portanto, do próprio Deus.
O Messias, para eles, seria um rei prestigioso, herdeiro da coragem de Davi e da glória de Salomão; um rei que viria restabelecer a ordem e restaurar a soberania de Israel.
Jesus, no entanto, anuncia-lhes o sofrimento e a morte. Também João Batista havia ficado desconcertado: designara-o como quem viria exercer o julgamento de Deus, mas só lhe falavam de um homem muito atento aos sofrimentos dos outros: «És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro ?» (Mateus 11,3).
Pedro a meio-caminho
Os discípulos recebem, portanto, o anúncio da tragédia pascal. Trata-se do êxodo pascal, do movimento de retorno do Cristo para o Pai. Devemos confessar que é muito difícil aceitar esta perspectiva. Para muitos de nós, ainda hoje, é difícil aceitar o espetáculo da cruz.
Diante dela, muitas coisas se revoltam dentro de nós. Mensuremos bem o que está em jogo: trata-se de passar da imagem de um Deus autocrata, dominador e que faz uso da sua onipotência, para a imagem de um Deus que se põe à mercê dos homens; um Deus que é somente amor e, portanto, desapossamento de Si.
Daí que o «Tu és o Cristo» pronunciado por Simão ganha um sentido novo, inesperado, desconcertante; não se trata mais de pôr ordem no mundo, mas de dar-se em alimento para os outros, para que estes vivam dele.
Falamos muitas vezes sobre a «vontade de Deus», esquecendo que o que Deus quer são homens e mulheres vivos e capazes de aceitarem a vontade de outros, cada vez que estes outros decidam levá-los à morte, retirando de suas vidas a justiça e o amor.
O que é um paradoxo! Pois, é justamente o assassinato que irá provocar a revelação do amor. No evangelho, vemos Simão recusar-se a entrar no jogo.
Preciosa defecção: se ele, sendo a rocha sobre a qual tudo será construído, teve tamanha dificuldade em aceitar a cruz e acabou mesmo assim retornando para o Cristo, e, sobretudo, se o Cristo retornou para ele, não nos amedrontemos demais por causa das nossas incompreensões e das nossas defecções.
A pedra de tropeço
Tendo como pano de fundo este quadro, no qual vimos Simão demonstrar toda a sua repugnância diante da segunda passagem obrigatória da fé, retomemos o diálogo que o texto nos oferece.
Ao anúncio da Paixão, Pedro toma Jesus à parte e lhe diz «Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isso nunca te aconteça!» Não a ti! Podendo, portanto, acontecer aos outros.
Ora, onde estaria o amor de Deus por nós, se Jesus se tivesse esquivado? Se tivesse deixado homens e mulheres sozinhos, carregando as suas cruzes? Simão, e com ele os seus companheiros, queria que Jesus se safasse a tempo daquela situação.
E Jesus o repreende severamente, numa frase de extrema densidade. «Vai para longe», tu que te pões diante de mim como um adversário que vem barrar-me o caminho. «Tu és para mim uma pedra de tropeço»: «pedra de tropeço», ou seja, aquela que, numa estrada mal pavimentada, se põe como um ressalto e faz o pedestre cair.
E é assim que Simão, a Pedra sobre a qual tudo irá se construir, torna-se a pedra contra a qual se dá um tropeção, no caminho de Jerusalém. Omiti a palavra «Satanás» no começo da resposta de Jesus.
Satanás significa o adversário, aquele que nos afronta e põe-se à nossa frente para nos impedir de avançar. Volto a isso porque o «Vai-te, Satanás» encontra-se em Mateus 4, no final do relato das tentações.
E, aqui, Simão é para Jesus um verdadeiro tentador. Com uma nuança, no entanto: o «Vai-te Satanás» torna-se aqui «passa-te para trás de mim». O discípulo não é excluído, mas convidado a seguir Jesus aonde ele for, o que será longamente explicitado na sequência do texto.
Seguir o Cristo
Podemos notar que Jesus experimenta sentimentos que são iguais aos nossos; pois isto existe em Deus, que, afinal, se faz um só conosco. Eis que Jesus agora nos convida a nos fazermos um só com ele, em tudo o que vai se passar em Jerusalém.
Sem qualquer restrição: "Se alguém quer me seguir..." Só tem valor o que se faz livremente, até mesmo quando “seguir o Cristo” se põe como o único meio de "salvar a sua vida".
Estamos sempre diante do mesmo paradoxo: só salvamos o que damos. Mas o que significa "renunciar a si mesmo"? Antes de qualquer coisa, que seja bem entendido, significa tomar distância do que possuímos e em que, com frequência, colocamos a nossa confiança, o nosso orgulho e a nossa alegria.
Pois, tudo isso nos será tirado na hora da nossa morte. O nosso valor está em outro lugar. Está na confiança que os outros podem depositar em nós, na necessidade que têm de nós, o que só encontra a sua verdade se não o buscarmos, se mantivermos os nossos olhos para o outro e não para nós mesmos, servindo os outros.
Que fique bem entendido, dar a própria vida pode ir muito mais longe. Levar a sua cruz e seguir o Cristo comporta também a maneira pela qual superamos as catástrofes que podem acontecer em nossas vidas. Elas não nos vêm de Deus, mas o Deus crucificado está aqui conosco, para atravessá-las.
Pensemos inclusive nos problemas do envelhecimento: eis-nos aqui obrigados a deixar para trás as nossas forças, a nossa agilidade, o bom funcionamento dos nossos órgãos, um a um, até o aniquilamento total.
Tudo isso equivale a carregar, com o Cristo, a nossa cruz. Uma questão: como usar tudo isso para fazer com que os outros existam, a começar pelas pessoas da nossa convivência? Só o Espírito deste que nos deu a sua vida e que segue dando-a para nós, todos os dias, é que nos pode sugeri-lo.
Caminho da cruz, caminho do esvaziamento do "ego"
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