01 Março 2011
Günther Anders centra La obsolescencia del hombre – sua grande obra de antropologia filosófica publicada após sua experiência de guerra e exílio – na dominação universal da técnica.
A resenha é de José Luis Pardo e está publicada no El País, 19-02-2011. A tradução é do Cepat.
Dizia o pensador italiano Franco Volpi que o homem contemporâneo já está, de antemão e em qualquer caso, submetido às coações da técnica, e que tentar refugiar-se diante dessa situação no humanismo tradicional só indica impotência e desejo de fugir da realidade, pois nenhuma ética deste tempo pode ultrapassar a condição de homilia.
O livro de Günther Anders (1902-1992), um judeu polonês que praticou todos os gêneros literários e que se tornou célebre por suas posições teóricas no movimento pacifista na época da estratégia de dissuasão termonuclear, constitui toda ela uma tentativa de se rebelar contra essa fatalidade do advento do niilismo cumprido, odioso hóspede da história europeia ao qual Nietzsche e Heidegger concederam a carta de cidadania ocidental e que a partir de então se tornou forte entre nós. E precisamente porque essa onipresença do niilismo toma corpo graças à tirania dos imperativos técnicos, a forma que o esforço de Anders toma para pensar as bases teóricas de uma possível resistência a esse estado de coisas é a elaboração de uma antropologia (poderíamos dizer “antropologia filosófica”, emulação de O lugar do homem no universo de Scheler, tantas vezes considerado o fundador do gênero); mas teria que se tratar precisamente de uma antropologia apropriada a esta dominação universal da técnica afiançada pelas sucessivas revoluções industriais.
A serviço deste objetivo Anders coloca todos os seus recursos expressivos, que são muitos e muito agudos, desde o sentido do humor até a capacidade para a exortação, escrevendo uma obra cuja indiscutível unidade se sustenta sobre uma variedade de gêneros sabiamente dosados e entremesclados em suas páginas: às vezes summa escolástica, com suas objeções e respostas, às vezes diário pessoal de viagens, às vezes anedotário exemplar ou epistolário moral, e de vez em quando obra de ficção que extrai efeitos de verdade de personagens e territórios fantásticos. E sempre em luta com o tópico que seus críticos hasteiam contra ele: o exagero, mostrando em toda parte que é o próprio mundo que exagera sem cessar para dissimular sua vaidade.
Enquanto os principais argumentos da crítica da técnica que se haviam desenvolvido antes que Anders escrevesse A obsolescência do ser humano aludiam à “coisificação” da vida humana e à “serialidade” da produção em massa, Anders centra seu ensaio, desde o começo, nesta ideia de ser humano que se experimenta a si mesmo como “antiquado” e pequeno diante dos instrumentos técnicos, que se apresentam como os autenticamente “bem dotados” e que o fazem sentir vergonha de sua humanidade: “Não há homem de reposição”, escutamos um doente terminal em um asilo para loucos dizer e o escutamos dizer, como que ruborizado, porque na era da técnica ainda não se tenha inventado nada definitivo contra a caducidade da existência humana. Este sentimento de vergonha, dado que não podemos sentir vergonha, senão diante de um olhar alheio, nos indica que agora são as coisas, as máquinas, que nos olham.
O homem moderno desejaria ser apenas uma engrenagem, deveria ser apenas isso, mas misteriosa e tragicamente ainda não está inteiramente adaptado à exploração mecânica, e é isso que o humilha, sua própria humanidade residual. Por isso, amedrontado e fascinado pelo mundo da produção, o homem “decide” passar à condição de produto, e a chamada “engenharia humana” (human engineering), fisiotécnica e robótica, lhe oferece o modo de fragmentar seu conhecimento em habilidades subumanas que subsistem mecanicamente independentemente da totalidade de onde procedem.
E esta eliminação técnica da humanidade é completamente coerente com o surgimento da bomba atômica, posto que ela mostra melhor que nenhum outro dispositivo o caráter prescindível da humanidade. Nestas circunstâncias, Anders se propõe com sua antropologia a mostrar aos seus leitores porque nos tornamos cegos diante do apocalipse que protagonizamos, e em que condições poderíamos recuperar o papel de agentes históricos que a ilusão de um mundo sem morte nos oculta dia após dia.
La obsolescencia del hombre. Sobre el alma en la época de la segunda revolución industrial (volumen I). Sobre la destrucción de la vida en la época de la tercera revolución industrial (volumen II). Valência: Pre-Textos, 2011, respectivamente 312 e 428 páginas.
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"Não há homens de reposição’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU