02 Julho 2009
O padre jesuíta Antonio Pedraz vive em Honduras e de lá nos conta como está a situação do país que viveu, no último domingo, um golpe de Estado e depôs o então presidente Manuel Zelaya. Pe. Pedraz, em entrevista à IHU On-Line, define o momento como incerto e delicado e retrata o que a população hondurenha está vivenciando durante essa conjuntura e crise política no país. Pedraz destaca que, por exemplo, o movimento popular e o sindicato dos professores de Honduras estão do lado de Zelaya e quer o seu retorno ao governo do país. Já os “golpistas” e quem está deste lado da história reclama que Zelaya é antidemocrático e teve ações inconstitucionais.
A crise em Honduras se deu já na eleição de Zelaya. Ele era tido como um político conservador, mas pôs em prática ações de esquerda, contando com o apoio de Hugo Chávez. Quando defendeu uma reforma constitucional, que previa, entre outras mudanças, a possibilidade de reeleição, foi deposto. Foi preso na madrugada do dia 29 de junho, ainda de pijama, e levado para a Costa Rica. Enquanto o presidente interino Roberto Micheletti continua à frente do país e conta com o apoio dos militares, Zelaya promete voltar ao país e junto com os principais líderes da América Latina.
Segundo Pe. Pedraz, o conflito deve se resolver ainda nesta semana mesmo. “Há um ditado popular em Honduras que afirma que os problemas não duram mais do que uma semana”, conta ele na entrevista que concedeu por e-mail.
Pedraz passou o primeiro semestre deste ano no Brasil, em São Leopoldo, fazendo um curso de atualização teológico-pastoral. Em Honduras, trabalha na formação político-cidadã e muito se interessou pelo trabalho realizado pelo IHU. Ele participou de uma das seis etapas da Escola de Formação Política promovida pela Diocese de Caxias do Sul em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a situação em Honduras neste momento?
Antonio Pedraz – É uma situação incerta e delicada, já que existem dois presidentes, um expulso do país e outro que quer entrar em função. Ambos dizem que são presidentes constitucionalmente, e cada um com sua lógica própria. [Manuel] Mel Zelaya [1] tenta reverter uma situação muito comprometida e aproveitando os foros internacionais como alavanca para poder regressar ao país e terminar seu período presidencial que acabaria em janeiro de 2010. Roberto Micheletti [2], por sua vez, tenta demonstrar que assume o poder sem ser um golpe de Estado e inicia uma ofensiva internacional, argumentando que o que se fez foi para defender a lei, a democracia e a constituição.
Mel Zelaya está se apoiando na rejeição internacional diante do "golpe de Estado". Tanto os EUA como a União Europeia, a Organização dos Estados Americanos, os países centro-americanos, os integrantes da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) rejeitaram o "golpe" e até hoje se mantêm firmes. Depois do discurso na ONU, conseguiram um apoio de toda a assembleia. Se essa posição se mantiver firme, é possível que a situação seja revertida, e que ele possa regressar.
Roberto Micheletti tentará aferrar-se ao poder por todos os meios. Passou, da noite para o dia, de candidato presidencial fracassado a presidente da República. Nas eleições internas do ano passado, as urnas o derrotaram de uma maneira contundente, e, no domingo, o Partido Liberal o colocou como presidente. Ironias da democracia: o que foi derrotado pelo povo é constituído presidente pelos poderes fáticos!
Isso explica as manifestações que estão ocorrendo no país. Por um lado, os partidários de Mel Zelaya, que contam com seus seguidores, um setor do movimento popular e do sindicato dos professores. Além disso, existe outro setor que não está com Mel Zelaya, mas protesta e se pronuncia contra os fatos ocorridos, por considerá-los anticonstitucionais e antidemocráticos. Esses setores estão sendo reprimidos duramente pelo exército. Isso lembra os anos 80, década da insurreição, guerra de baixa intensidade, suspensão das garantias constitucionais, desaparecidos, militarização das zonas conflitivas, polarização ideológica, fechamento de emissoras de rádio, toque de recolher etc. No movimento popular, sobretudo, está ressuscitando algo mais do que fantasmas, e há um grande medo. Alguns deles saíram do país ou estão escondidos.
Por outro lado, hoje (02-07-2009) houve uma grande manifestação em Tegucigalpa [capital de Honduras]. Foram patrocinadas e apoiadas pela empresa privada. Pagaram o dobro aos trabalhadores para que participassem. Numerosos movimentos conservadores da sociedade civil também se uniram. E, infelizmente, numerosas Igrejas a apoiaram. Com isso, entendemos facilmente que a situação está muito tensa com dois projetos contraditórios, mas desnivelados, posto que, nestes momentos, quem tem o poder utiliza o exército e a repressão para se impor sobre toda a sociedade. É bom lembrar o controle e o fechamento dos meios de comunicação desde domingo bem cedo.
Ainda que pareça uma digressão semântica, considerá-lo como "golpe de Estado" ou "restauração da democracia" sempre depende das relações de poder. Aquele que triunfa se considera legítimo, e aquele que perde é desqualificado em sua totalidade. É de se esperar que, nesta semana, o conflito se resolva. Há um ditado popular em Honduras que afirma que os problemas não duram mais do que uma semana.
IHU On-Line – Como o governo de Zelaya, que era conservador, se converteu em “progressista”?
Antonio Pedraz – Aquele que aparecer na mídia como "progressista" não deixa de parecer paradoxal, porque esconde o que não é. Eu qualifico o que ocorreu como um "autogolpe político" no interior do Partido Liberal. Foram as outras correntes do Partido Liberal que derrubaram o movimento de Mel Zelaya, em aliança com o Partido Nacional (o grande opositor), os poderes fáticos, as "instituições democráticas e políticas" do país (Congresso nacional, Corte Suprema de Justiça, Ministério Público, Comissariado dos Direitos Humanos etc. etc.) e o exército. É preciso ter em conta que, em Honduras, existe um sistema político bipartidarista, e tanto o "Partido Liberal" como o "Nacional" são os que repartem e se alternam no poder. Ambos os partidos controlam o Congresso, a Corte Suprema e as demais instituições de Estado, que são repartidas proporcionalmente e de maneira contínua.
O que está por trás do golpe de Estado? Popularmente, denomina-se como "continuísmo". É algo que vem há uns quantos anos. A Constituição proíbe a reeleição presidencial. Os líderes políticos propuseram isso em diversas ocasiões, mas até hoje não havia sido tentado a sério. Parece que Mel Zelaya buscou por diferentes meios a maneira de continuar no palácio presidencial. Em abril deste ano, sua corrente política liberal perdeu o controle do partido. Estava estimulando a realização de uma "consulta popular" (precisamente a que não pode realizar no domingo, pois foi o dia do golpe) sobre se colocar, nas eleições gerais de novembro desde ano, uma "quarta urna", na qual se perguntaria ao povo hondurenho se estava de acordo na conformação de uma Constituinte. Por trás da Constituinte, estava o fato de elaborar uma nova constituição que lhe permitisse continuar no poder. É isso o que está por trás dos fatos do domingo, e que os seus "correligionários" e outros grupos não permitiram que fosse realizado por meio do autogolpe. Não há, portanto, nada de progressista, e, talvez, ele estaria se alinhando político-ideologicamente com Chávez e sua reeleição indefinida.
A partir de dentro e sem ter mais dados, essa é a imagem que se projeta. E o próprio presidente, aproveitando uma conjuntura internacional favorável a seus interesses, capitaliza ao máximo essa imagem midiática. Isto é, suas manobras não tinham nada de progressista, mas sim, talvez, utilizavam a democracia como uma tela que ocultasse seus verdadeiros interesses. E ocorre a mesma coisa com os atores políticos e econômicos que o derrubaram. Tanto o atual presidente "golpista" Roberto Micheletti como Pepe Lobo [3] (candidato presidencial do Partido Nacional) foram presidentes do Congresso Nacional e acomodaram a Constituição para poder se apresentar como candidatos presidenciais, fato que está proibido pela Constituição. E, se recorrermos pormenorizadamente à história política recente do país, encontramos que isso foi uma prática comum durante anos, chegando ao extremo de se tornar famosa a frase de um político que disse que "é preciso violar a Constituição quantas vezes for necessário". O resultado, no fim das contas, é que, tanto uns quanto outros compartilham da mesma maneira de pensar e agir. Portanto, o fato de aparecer como vítima, defensor do poder cidadão, representante dos setores populares, defensor da lei e da constituição não é mais do que pura retórica.
IHU On-Line – Você pode nos falar sobre a reação dos movimentos sociais? Quais foram as medidas mais revolucionárias tomadas?
Antonio Pedraz – O movimento social está muito debilitado neste momento. Por um lado, não há renovação de quadros, militâncias e propostas há muito tempo. Desde os anos 90, em que se começou a impor fortemente os ditados do "Consenso de Washington", não foram feitas propostas claras e eficazes para enfrentar a nova situação paradigmática e se converter em uma oposição verdadeira. A economia globalizada é muito difícil de manejar e enfrentar.
Por outro lado, generalizou-se uma prática entre os líderes do movimento popular, que consiste em se aliar com algum dos partidos tradicionais apresentando-se como candidatos nas planilhas desses partidos. Com isso, neutralizam o potencial de mudança e alternativa no movimento popular, passando a se constituir como servidores submissos dos setores dominantes da sociedade. Diante desse fracasso, os movimentos sociais de caráter territorial estão começando e lutando pela defesa dos recursos naturais ou defendendo a luta contra a corrupção nas instituições do Estado. É de onde pode vir a esperança. Neste momento, é um movimente incipiente e que está conquistando cada vez mais força, peso e possibilidade de uma alternativa política.
Na conjuntura atual, uma parte do movimento popular se uniu ao movimento de Mel Zelaya, trazendo como consequência uma grande confusão e debilidade. Concretamente, é o que aconteceu com um setor do movimento indígena. A única exceção foi a postulação de uma candidatura independente, tentando atrair o voto popular: é o caso de Carlos H. Reyes, sindicalista da capital e militante de muitas batalhas. O fato de ter feito isso tardiamente não parece que possa se consolidar como uma alternativa real. Em consequência, tanto neste momento conjuntural como frente às eleições presidenciais do mês de novembro, não se vê qual pode ser a contribuição do movimento popular e se ele será capaz de contrabalançar uma democracia fraca que se caracteriza pela pobreza, pela desigualdade e pela exclusão.
IHU On-Line – Qual é o papel de Hugo Chávez neste momento para o povo de Honduras?
Antonio Pedraz – A inclinação de Mel Zelaya para Hugo Chávez e o alinhamento com os países da Alba não foi fácil. A aprovação por parte do Congresso Nacional se fez com base em negociações e concessões. Além disso, foi feita no contexto da crise energética, quando os preços do petróleo cresceram de uma forma desmedida. O fato de que a Petrocaribe oferecia um bom preço, crédito cômodo e possibilidade de financiar projetos sociais favoreceu a aceitação da oferta. Foi um período de muitas tensões com as transnacionais do petróleo, em que o governo saiu derrotado e não conseguiu que essas companhias se submetessem às necessidades do país.
Por outro lado, é sabido de todos que a tática de Chávez é conseguir novos membros para a Alternativa Bolivariana mediante os petrodólares. A aproximação se tornou mais forte à medida que as forças políticas, econômicas e meios de comunicação do país foram isolando cada vez mais o presidente Zelaya e a corrente do Partido Liberal em que se apoiava. Isso significou que foram se fechando as portas para levar adiante seu próprio projeto político mediante consensos e aprovações.
O dado que vai aparecendo é que o presidente Zelaya recebeu grande ajuda econômica de Chávez para que ele fizesse a "consulta popular", que foi abortada no domingo passado. O que confirma que o alinhamento com Chávez se tornou mais forte à medida que foi isolado pelas forças políticas.
IHU On-Line – Como você percebe a participação de Honduras na Alba?
Antonio Pedraz – Sempre foi vista com certa precariedade, porque era uma alternativa muito personalizada e presidencialista. Isto é, que mudaria uma vez que fosse eleito um novo presidente das eleições deste ano. Igualmente, muito dependente da evolução política da Venezuela. Lá também a situação está longe de ser consensual e aceita por toda a sociedade.
IHU On-Line – O que o senhor pode nos dizer sobre Roberto Micheletti?
Antonio Pedraz – Roberto Micheletti é um empresário dos transportes da costa norte do país e um líder muito vinculado tanto com a política quanto com a oligarquia. Aproveitou muito bem sua larga estadia no Congresso Nacional, tendo sido seu secretário e presidente. Foi aí onde forjou sua carreira política, unido aos setores conservadores da sociedade. E, como começa a ser habitual na classe política, tenta se afirmar no jogo de poder por meio da incorporação de seu jovem filho à vida política nacional.
A verdade é que o autogolpe lhe deu vida, devido ao fato de ter sido duramente derrotado nas eleições internas no ano passado. Fechou-se-lhe o caminho para chegar à presidência. E, diante da sociedade hondurenha, é indignante que o voto que os cidadãos não lhe deram seja outorgado pelas forças que fizeram o autogolpe. Isso aprofunda a crise de representatividade dos partidos políticos, manifesta o grande desgaste do Partido Liberal, que, mediante esse fato, praticamente entregaram ao partido opositor o resultado das próximas eleições gerais de novembro deste ano.
IHU On-Line – No que consistia a consulta que Zelaya havia programado e que se converteu em razão da sua deposição?
Antonio Pedraz – A consulta popular era uma manobra diante das eleições gerais deste ano. De uma maneira ou outra, consistia na forma de continuar no poder, tanto em nível pessoal quanto no de sua corrente política. Os velhos líderes que controlam o Partido Liberal e o Partido Nacional não permitiram isso. Igualmente, a empresa privada não estava disposta a que as regras do jogo fossem mudadas, pois sempre obteve seu poder mediante sua vinculação com a economia e a política norte-americanas.
IHU On-Line – Existe a necessidade de uma nova Constituição em Honduras?
Antonio Pedraz – É sabido que as constituições são expressão da conjuntura e correlação de forças de um país em um momento dado. A atual constituição foi formulada no início da etapa democrática. Saía-se de um longo período de governos de fato, em que os militares foram os principais protagonistas. Nesse momento, não se permitiu que a reeleição presidencial devesse entrar na nova etapa democrática.
No entanto, é uma questão comum que foi debatida em muitos países latino-americanos. Obviamente, é algo que pode e deve ser proposta, se vermos que é necessário em nível nacional. Mas não era nem o momento nem a forma de realizá-lo. Isso supõe uma participação de todos os setores da sociedade com tempo, transparência, informação ampla e igualdade de condições. Nesse caso, tentava-se mudar a constituição mediante a manipulação da democracia com fins eleitorais e deixando de fora os opositores políticos e a sociedade em geral. O normal é que se proponha isso no início ou uma vez que uma nova legislatura tenha avançado.
IHU On-Line – Do que depende o retorno de Zelaya ao governo de Honduras?
Antonio Pedraz – Dependerá, de maneira fundamental, do "fator internacional". Os dois grupos estão colocando em prática as suas próprias estratégias para se manter em suas posições e isso complexifica a situação. O que seria ideal?
1. Em primeiro lugar, que o presidente Mel Zelaya pudesse regressar ao país e poder terminar seu período presidencial.
2. Se há acusações contra ele, que sejam feitas e que ele as enfrente.
3. Para isso, é fundamental que ele renuncie ao seu projeto de consulta popular e à "quarta urna".
4. Que o setor golpista deixe de lado a repressão e a vingança política e aceite realmente as regras do jogo da democracia.
Notas:
[1] José Manuel Zelaya Rosales, também conhecido como Mel Zelaya, é um político hondurenho que foi presidente da República de Honduras de 27 de janeiro de 2006 a 28 de junho de 2009, quando foi deposto pelo golpe de estado de 29 de Junho. Ao tentar promover um referendo constitucional visando a extensão do seu mandato, Zelaya acabou causando uma crise política, que culminou com o golpe de Estado que o tirou do poder. Apesar de eleito por um partido direitista, Zelaya fez reformas econômicas e sociais de tendência esquerdista, o que o levou a perder popularidade com os donos do poder econômico que sempre comandaram Honduras, enquanto a esquerda passou a apoiá-lo. A oposição direitista ao seu governo recrudesceu à medida que Zelaya se aproximava de Hugo Chávez e, sobretudo, com a adesão hondurenha à Alba e, sobretudo, por seus ataques verbais aos Estados Unidos e ao setor empresarial.
[2] Roberto Micheletti Bain é um político hondurenho. Assumiu a presidência de seu país em 28 de junho de 2009, após um golpe de Estado, que depôs o então presidente José Manuel Zelaya.
[3] Porfirio Lobo Sosa, também conhecido como Pepe Lobo, é líder do Partido Nacional de Honduras e professor universitário de economia. Concorreu à presidência nas eleições de 2005, mas perdeu para Zelaya.
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Honduras."No movimento popular, sobretudo, há um grande medo." Entrevista especial com Antonio Pedraz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU