27 Março 2009
Para o pesquisador Hugh Lacey, a atitude tomada pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ao liberar as pesquisas com células-tronco embrionárias e afirmar que a religião e a política devem ser separadas das pesquisas cientificas, é ilusória. “É possível deixar a política fora das questões de financiamento (e de prioridades de pesquisa). Seria melhor se isso fosse encarado como um fato, e instituições e procedimentos para tomadas de decisão democráticas fossem desenvolvidas, em vez de fingir que a política pode ser mantida de fora”, opinou ele na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
Lacey faz críticas e põe em questão diversos pontos que envolvem o desenvolvimento das pesquisas com células-tronco. “Quais são as causas, incluindo causas sociais, de doenças que supostamente se tornarão tratáveis como consequência da pesquisa em células-tronco?” e “O ímpeto pela pesquisa em células-tronco embrionárias é principalmente científico ou comercial?” são algumas das perguntas que ele nos deixa a partir da análise desta entrevista.
Hugh Lacey é um filósofo da ciência com doutorado pela Indiana University, nos Estados Unidos. Foi professor no Departamento de Filosofia da USP. Desde 1972, é professor emérito no Swarthmore College (EUA). Trabalha principalmente com questões da interação entre práticas científicas e valores e a interação entre questões científicas e éticas a partir da tecnociência. Escreveu A linguagem do espaço e tempo (São Paulo: Perspectiva, 1972) e Valores e atitude científica (São Paulo: Discurso editorial, 1998), entre outras obras.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como vê essa decisão do presidente Obama em separar a religião e a política das pesquisas científicas, incluindo as pesquisas com células-tronco?
Hugh Lacey – O Presidente Obama, por ordem do executivo, removeu as restrições sobre fomento federal para pesquisas com células-tronco que haviam sido impostas pelo Presidente Bush. Ao anunciar sua decisão, ele sustenta que a posição de Bush representa interferência política e religiosa sobre a ciência, e que ele – no nível que sua autoridade permite – estava se livrando de toda interferência religiosa e política com o fomento federal à ciência. Isso é ilusório. Alguns grupos religiosos certamente apoiaram a posição de Bush e se opuseram à de Obama, e Bush talvez estivesse motivado pelo objetivo de cultivar o suporte de tais grupos. Mas a posição de Bush foi baseada em um relatório de uma comissão especial montada por ele; e seus argumentos (o que quer que se pense de seus valores) não foram baseados em religião, mas em ética. Obama, usando o rótulo de religião, evitou qualquer discussão ética.
Além disso, é difícil não chamar a decisão dele de uma decisão política; a ciência não nos diz que deve haver fundos disponíveis para a pesquisa com células-tronco embrionárias. E, mesmo que se diga, “Deixe que as instituições científicas escolham suas prioridades de pesquisa (e o governo dá o fomento de acordo com elas) sem que tenham que responder diretamente à política partidária ou considerações éticas”, isso é uma posição política, fato que atrai a maioria dos apoiadores de Obama. É possível deixar a política fora das questões de financiamento (e de prioridades de pesquisa). Seria melhor se isso fosse encarado como um fato, e instituições e procedimentos para tomadas de decisão democráticas fossem desenvolvidas, em vez de fingir que a política pode ser mantida de fora. (Note que há restrições do congresso sobre o fundo federal para estas pesquisas que o Presidente Obama não tem autoridade de passar por cima).
IHU On-Line – Do ponto de vista ético, em que se pode fundamentar a utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa?
Hugh Lacey – Obviamente, existem profundas discordâncias com relação a isso. Para muitas pessoas, usar células-tronco embrionárias e pesquisas que buscam a cura para doenças até hoje sem tratamento é obviamente ético. Penso que outros fatores devem estar envolvidos na relevante deliberação ética – incluindo (entre outras considerações):
(1) Existem alternativas para o uso de células-tronco embrionárias? Pesquisas recentes parecem ter aberto a possibilidade de produzirem-se células que sejam biologicamente equivalentes às células-tronco embrionárias sem que se tenha que destruir embriões humanos.
(2) Existe evidência científica de que pesquisas com células-tronco embrionárias prometem levar a descobertas no tratamento de doenças, como Parkinson, em um razoavelmente curto espaço de tempo? Ou isso é só exagero gerado por políticos e pela publicidade? Com base em evidência científica, essa promessa é maior que a de outros métodos possíveis, por exemplo o uso de células-tronco de adultos? Na seção sobre ciência do The New York Times (9 de março de 2009), Nicholas Wade escreveu:
“Membros do Congresso e defensores da luta contra doenças têm falado muito sobre pesquisas em células-tronco embrionárias humanas como se fossem um caminho garantido para a cura rápida para aflições sem tratamento. Os cientistas não fizeram objeção publicamente a essas esperanças tão altas, as quais têm ajudado a incentivar novas fontes de concessão de dinheiro, como a iniciativa de 3 bilhões de dólares na Califórnia para a pesquisa com células-tronco. Em particular, no entanto, vários pesquisadores projetaram metas muito mais modestas para as células-tronco embrionárias. Seu principal interesse é obter células-tronco embrionárias de pacientes com doenças específicas e, rastreando as células no tubo de ensaio, desenvolver conhecimento básico a respeito de como a doença se desenvolve.”
(3) Quais são as causas, incluindo causas sociais, de doenças que supostamente se tornarão tratáveis como consequência da pesquisa em células-tronco?
(4) Quais riscos podem ser ocasionados se a pesquisa com células-tronco embrionárias continuar – levando em consideração não apenas questões a respeito do estátus moral (e os direitos morais) dos embriões humanos, mas também o fato de que qualquer produto eficaz dessa pesquisa irá provavelmente ficar sob o controle (via reivindicação para os direitos de propriedade intelectual) de indústrias farmacêuticas? O ímpeto pela pesquisa em células-tronco embrionárias é principalmente científico ou comercial? No dia anterior ao anúncio de Obama, um artigo no The New York Times foi intitulado “Ações de células-tronco sobem com expectativa de política de Obama [Stem-Cell Stocks Jump on Expected Obama Policy]”
(5) A decisão de Obama não toca na questão de que (nos EUA) os embriões não podem ser criados com o propósito de se obter sequências de células-tronco para pesquisa; apenas embriões que restam de tratamentos de fertilização in vitro podem ser usados para tanto. Por que existem embriões que sobram desses tratamentos? Por que as pessoas os experimentam? Quais são as causas dos problemas reprodutivos que levam as pessoas a fazerem esses tratamentos? Quais são as questões éticas envolvidas nesses tratamentos
(6) Se houvesse deliberação democrática sobre o quadro geral – em que todas essas questões (e outras) fossem consideradas, de maneira esclarecida, de uma maneira informada, e a pesquisa em células-tronco fossem localizadas no contexto de todos os concorrentes para financiamento e todas as abordagens para lidar com o sofrimento humano –, a pesquisa com células-tronco embrionárias seria vista como uma prioridade urgente?
Em minha opinião, a não ser que todo o cenário seja considerado, um julgamento ético sensato não poderia ser feito sobre a legitimidade da pesquisa com células-tronco embrionárias; mas nas discussões que se dão agora, ele tende a ser evitado.
IHU On-Line – Eticamente, até que ponto vai a autonomia dos cientistas?
Hugh Lacey – Por toda a moderna tradição científica, os cientistas pediram por reconhecimento social para a autonomia na condução da pesquisa. Tradicionalmente, a autonomia foi reclamada pelo bem de assegurar a objetividade dos resultados científicos e do alegado valor universal de suas aplicações, que a aplicação do conhecimento científico serve (em princípio) aos interesses de todos e não interesses especiais, tais como os de corporações e governos. Hoje, no entanto, a autonomia tende a ser pensada como liberdade para os cientistas fazerem a pesquisa que eles quiserem, refletindo as prioridades que eles escolheram, sob qualquer se seja o patrocínio institucional que tenham escolhido. Esse tipo contemporâneo de autonomia é compatível com a pesquisa científica na verdade servir a interesses especiais, mesmo em detrimento dos interesses de (por exemplo) pessoas pobres. Em minha opinião, a autonomia que vale preservar (e pela qual vale reclamar) é aquela que responde ao ideal de ciência como servindo a interesses universais. Interesses especiais comerciais e políticos são servidos pela ênfase na noção contemporânea de autonomia. Eles precisam ser combatidos através de uma organização das práticas científicas para que estas tenham influência e supervisão democrática.
Ademais, uma vez que as questões éticas estão claramente envolvidas na pesquisa científica (como estão com a pesquisa com células-tronco embrionárias), não há nenhuma razão “não-política” pela qual a ciência possa ser permitida socialmente a proceder sem que deliberações éticas democráticas sejam feitas. Os cientistas, afinal de contas, não têm competência especial em questões éticas – e o valor que deve ser posto em prática na pesquisa científica nem sempre é suficiente para se sobrepor ao clamor de outros valores, como respeito pelos direitos humanos. Uma autonomia científica apropriada deve ser exercitada no contexto de reconhecimento desses clamores.
IHU On-Line – Que medidas deveriam compor as políticas públicas desenvolvidas pelos governos para que essas pesquisas com células-tronco embrionárias sejam acessíveis à sociedade em geral e não elitizados?
Hugh Lacey – Primeiro de tudo, tudo o que eu disse em resposta à segunda pergunta deve ser mantido em mente aqui. As atuais estruturas – governamentais e comerciais –, nas quais a pesquisa médica está sendo conduzida, asseguram virtualmente que seus resultados serão muito mais acessíveis às elites que aos pobres. A menos que a pesquisa seja reestruturada, para que seja então objeto de influência e supervisão democrática, isso irá continuar. É preciso urgentemente que se faça uma ampla discussão pública sobre como essa reestruturação deve acontecer. Enquanto isso, os governos podem mudar o rumo das coisas proibindo a exploração e o monopólio comercial (conquistando direitos de propriedade intelectual) de avanços médicos, que foram alcançados amplamente com o apoio de financiamento público.
IHU On-Line – Como funciona as alterações numa célula-tronco embrionária? Eticamente, porque essas alterações são tão debatidas e há tantas pessoas e entidades que se manifestam contra?
Hugh Lacey – A questão técnica que é mais controversa vem do fato de que, para obter células-tronco embrionárias para pesquisa, normalmente um embrião humano precisa ser destruído ou, como os que se opõem a isso, assassinados. (Lembre-se: essa não é a única questão ética relevante, apenas a mais reconhecida, e aquela que frequentemente permite aos proponentes da pesquisa pintar seus oponentes como tendo objeções religiosas, em vez de éticas.) Muitos oponentes sustentam que embriões humanos são seres humanos vivos e portadores de direitos humanos. Isso não contradiz nenhum resultado científico; na verdade, a ciência não pode resolver essa questão, de um jeito ou de outro. Os proponentes normalmente negam que embriões sejam portadores de direitos humanos, e, portanto, para eles, pode parecer ser anti-ético não proceder com a pesquisa com células-tronco embrionárias, a qual alegadamente é tão repleta de promessa médica.
Atualmente, nos EUA, células-tronco que se tornam disponíveis para pesquisa vêm de embriões que são “sobras” de tratamentos de fertilização in vitro. (Não é permitido criar embriões para extrair suas células-tronco para fins de pesquisa – embora vários grupos estejam agora fazendo lobby para derrubar as leis que proíbem isso.) Se não usados em pesquisa, esses embriões que sobram serão simplesmente descartados e/ou mantidos indefinidamente em um congelador. De um jeito ou de outro, argumentam os proponentes, esses embriões serão destruídos – não é melhor usá-los para pesquisas que possam levar a salvar vidas de doenças terríveis? Esse argumento não constrangerá aqueles que sustentam que embriões humanos sejam detentores de direitos humanos – mas serve para deixar claro que todo o contexto da discussão deve levar em conta as questões éticas que possam estar envolvidas na criação de embriões em primeiro lugar.
IHU On-Line – Há o perigo se criar um comércio de embriões?
Hugh Lacey – Não é provavelmente um perigo imediato. Mas, caso se torne aceito que é eticamente lícito criar embriões humanos em função de extrair suas células-tronco para serem usadas em pesquisas, é muito provável – dentro das atuais estruturas de pesquisa e desenvolvimento de inovações médicas – que patentes serão reivindicadas para instrumentos e processos que estão envolvidos na criação de embriões.
IHU On-Line – Em sua opinião, que país serve como exemplo para o Brasil no desenvolvimento das pesquisa que envolve células-tronco?
Hugh Lacey – Não estou a par de nenhum país que adote os tipos de medidas que eu descrevi anteriormente, então não tenho nenhum exemplo a oferecer. Se o Brasil reestruturar suas políticas para a pesquisa e desenvolvimento científico e introduzir essas medidas, então poderá servir de exemplo a outros países.
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Pesquisas com células-tronco: da autonomia científica às questões éticas. Entrevista especial com Hugh Lacey - Instituto Humanitas Unisinos - IHU